A
ética dos trapaceiros
José
Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com
Dá para gargalhar o episódio. O malandro rouba um
automóvel e vai assaltar a farmácia. Regressa apressado com pacote
de dinheiro. Tenta localizar o automóvel roubado. Outro ladrão
havia levado o veículo. Assusta-se, desespera-se. Teme a chegada da
polícia ou cacetadas e chutes da população. Tenta esconder o
pacote. Um terceiro assaltante aparece e leva-lhe a grana. O cara de
pau ousa dirigir-se à delegacia para denunciar os dois que o
assaltaram. Encontra o proprietário da farmácia registrando o
boletim de ocorrência, que o reconhece. Algemado, o malandro
filosofa: “Delegado, será que eu não tenho direito de roubar para
sustentar minha família?”
O risível episódio de ladrão que rouba ladrão
retrata não só uma consciência arruinada dos malandros comuns que
infestam a periferia das cidades, mas de pessoas de todos os níveis
sociais. Clientes que se aproveitam da balconista distraída para
surrupiar produtos. Funcionários, especialmente dos serviços
públicos, que inventam doenças e atestados médicos para fugir ao
trabalho. Autoridades desleais nas licitações e prestação de
contas e receitas.
A etimologia diz tudo: TRAPACEIRO, termo de origem
francesa, TRAPPA, cova para pegar a caça. Sentido figurado: contrato
fraudulento. Quer outro? TAPEAÇÃO, do gótico TAPPA, isto é,
TAPAR, esconder, calar, encobrir.
No Brasil, abundam trapaceiros e tapeadores envergando
terno e gravata, fala bonita, moralidade protegida com emplastro.
Há muitas maneiras de trapacear e permanecer ético,
driblando a própria consciência. Exemplo clássico encontra-se no
livro Atos dos Apóstolos, escrito pelo médico e evangelista Lucas,
contando episódios das primeiras comunidades cristãs. Naquela
época, cristãos costumavam entregar suas ofertas aos apóstolos,
que as distribuíam aos mais necessitados. O casal Ananias e Safira
vendera uma propriedade e entregou a oferta a Pedro, mentindo e
afirmando que se tratava da metade do dinheiro da venda. Resultado da
história? Leia o capítulo 5 do livro. Trata-se de um pecado contra
o espírito de Deus, que é só verdade: “Seja o vosso sim, se for
sim; não, se for não”.
Boa
parte da história humana se disciplinou por diretrizes
religiosas que atuavam como monopólios na sociedade, com
o controle assegurado do pensamento e da ação. Esta situação
modifica-se nos tempos modernos com a afirmação da secularização
e do pluralismo. O traço característico desta nova
situação é a perda da antiga segurança das estruturas
religiosas que garantiam a submissão de suas populações.
Por um lado, há resultados positivos, que geraram paradigmas de
condutas nas constituições dos países. Na contramão, o laicismo e
iluminismo propagam, até hoje, conceitos de total liberdade de
consciência, independente de tradicionais regras éticas e
religiosa, como no trato da sexualidade. Tudo pende para o
relativismo do “se me agrada, estou certo”. Por essa trilha
moral, até assaltante tem suas razões para surrupiar o alheio,
inclusive matar.
Esta crônica é formidável, que bela criação esta de Zé Maria Vasconcelos, meu compadre e amigo.
ResponderExcluirchico miguel