quarta-feira, 11 de junho de 2014

A ética dos trapaceiros


A ética dos trapaceiros

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

          Dá para gargalhar o episódio. O malandro rouba um automóvel e vai assaltar a farmácia. Regressa apressado com pacote de dinheiro. Tenta localizar o automóvel roubado. Outro ladrão havia levado o veículo. Assusta-se, desespera-se. Teme a chegada da polícia ou cacetadas e chutes da população. Tenta esconder o pacote. Um terceiro assaltante aparece e leva-lhe a grana. O cara de pau ousa dirigir-se à delegacia para denunciar os dois que o assaltaram. Encontra o proprietário da farmácia registrando o boletim de ocorrência, que o reconhece. Algemado, o malandro filosofa: “Delegado, será que eu não tenho direito de roubar para sustentar minha família?”
          O risível episódio de ladrão que rouba ladrão retrata não só uma consciência arruinada dos malandros comuns que infestam a periferia das cidades, mas de pessoas de todos os níveis sociais. Clientes que se aproveitam da balconista distraída para surrupiar produtos. Funcionários, especialmente dos serviços públicos, que inventam doenças e atestados médicos para fugir ao trabalho. Autoridades desleais nas licitações e prestação de contas e receitas.
          A etimologia diz tudo: TRAPACEIRO, termo de origem francesa, TRAPPA, cova para pegar a caça. Sentido figurado: contrato fraudulento. Quer outro? TAPEAÇÃO, do gótico TAPPA, isto é, TAPAR, esconder, calar, encobrir.
          No Brasil, abundam trapaceiros e tapeadores envergando terno e gravata, fala bonita, moralidade protegida com emplastro.
          Há muitas maneiras de trapacear e permanecer ético, driblando a própria consciência. Exemplo clássico encontra-se no livro Atos dos Apóstolos, escrito pelo médico e evangelista Lucas, contando episódios das primeiras comunidades cristãs. Naquela época, cristãos costumavam entregar suas ofertas aos apóstolos, que as distribuíam aos mais necessitados. O casal Ananias e Safira vendera uma propriedade e entregou a oferta a Pedro, mentindo e afirmando que se tratava da metade do dinheiro da venda. Resultado da história? Leia o capítulo 5 do livro. Trata-se de um pecado contra o espírito de Deus, que é só verdade: “Seja o vosso sim, se for sim; não, se for não”.

               Boa parte da história humana se disciplinou por diretrizes religiosas  que atuavam como monopólios na sociedade, com o controle assegurado do pensamento e da ação. Esta situação modifica-se nos tempos modernos com a afirmação da secularização e do pluralismo.  O traço característico desta nova situação é a perda da antiga segurança das estruturas religiosas  que garantiam a submissão de suas populações. Por um lado, há resultados positivos, que geraram paradigmas de condutas nas constituições dos países. Na contramão, o laicismo e iluminismo propagam, até hoje, conceitos de total liberdade de consciência, independente de tradicionais regras éticas e religiosa, como no trato da sexualidade. Tudo pende para o relativismo do “se me agrada, estou certo”. Por essa trilha moral, até assaltante tem suas razões para surrupiar o alheio, inclusive matar.   

Um comentário:

  1. Esta crônica é formidável, que bela criação esta de Zé Maria Vasconcelos, meu compadre e amigo.
    chico miguel

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