A VIDA E SEUS CAMINHOS - CRÔNICA
Francisco Miguel de
Moura*
Passei a manhã de hoje
numa livraria. Não vou dizer o nome pra não fazer propaganda, que eles pagam
caro, mas se colocar aqui não recebo nem um “tostão furado”. Vá traduzir esta
expressão e verá que não tem boa correspondência em outra língua, senão em espanhol,
a mais próxima de nós.
Não foi uma manhã
agradável como as de outrora, de quando eu entrava numa boa livraria com
deleite, permanecendo como que enlevado. Corri os dedos e os olhos por todas as
estantes ou prateleiras e não encontrava o que queria: um livro de crônicas, de
autor brasileiro. De autores tupininquins, só vi o surrado Paulo Coelho, que
não escreve crônicas (e nem sei se seus livros são de boa ficção). Tudo mais
era “best-sellers” americanos ou de outras paragens. Biografias de cantores, livros
políticos e midiáticos.
Já na saída, por muita
sorte, li na carneira o nome de um: “O mundo é o que é”, de Gilmar
Marcílio. Dentro, na primeira linha da
crônica: “Uma das coisas mais bonitas da vida é beijar”. Tive tempo de ler a
primeira crônica e gostei. Fechei-o com cuidado. Pus o volume debaixo do braço,
desci as escadas já procurando onde pagar, com a frase da primeira crônica na
cabeça: “Uma das coisas mais bonitas da vida é beijar”.
Gosto de crônicas
porque a leitura é mais amena. Na minha idade... O cronista trabalha com a
matéria viva – a vida e seus passos. A vida física em toda parte é objetiva, as
alterações são naturais. Mas a vida social, cultural, os acontecimentos são
diferentes em cada lugar do mundo. Dizem que a crônica é um gênero menor, não
sei por qual motivo. Creio que pode tornar-se maior sem exagerar na extensão.
Pode ser universal sem ser de autor que só publique por famosas editoras.
Geralmente a crônica vai do jornal para o livro, se for boa, bem escrita,
trabalhada com estilo. Foi assim que ela começou no Brasil, com Machado de
Assis. E continua ora de costumes, ora poética, ora filosófica, aqui e acolá
ilustrada por ditos populares e anedotas.
Abdias Lima, escritor cearense, conta uma anedota que vai dar um tom
menos rígido a esta minha e esclarece porque a crônica é crônica. Escreveu ele:
“O menino lê o jornal,
talvez deliciando-se com uma crônica, e de repente levanta a cabeça para
perguntar ao pai:
- Crônica? Que quer
dizer isso?
- Crônica é o que passa
– resposta do pai.
- E como é que a asma
da vovó nunca passa e o médico diz que é crônica”?
Crônica é tudo que
passa aos nossos olhos exteriores e internos a cada dia. E é “crônica” porque
não passa. Talvez seja a melhor definição do gênero. Talvez seja o mais antigo
gênero literário em prosa.
Quando apresentei o
livro à moça do caixa, pedi um desconto porque o pagamento ia ser à vista. E
ela prontamente concedeu. Agora não consigo lembrar como entrei no assunto
literatura. Disse-lhe certamente que era escritor.
- Talvez esta livraria
tenha alguns livros meus.
- O senhor escreve o
quê? – falou como se já me conhecesse.
- Escrevo crônicas e
romances. Este é de crônicas - expliquei – e estou levando porque gosto de ler
crônicas, normalmente são curtas, a gente lê na rede e até mesmo no banheiro.
Moça branca,
comunicativa, risonha, bonita para mim, naquela ocasião. E interessou-se mais:
- Como são seus
romances? São românticos?
- São românticos até
certo ponto, pois geralmente há casos de amizade, namoro e casamento. Mas pode
haver romance sem romance. O que não se deve é escrever um romance sem
mistério. É uma arma para levar o leitor até a página final.
Como sou conversador
quando o assunto é livro, literatura e leitura, fui respondendo à curiosidade
da moça até que, afinal, escapuli e descrevi um pouco da história do meu
primeiro romance.
- Meu primeiro romance
tem nome de “Os estigmas”. Sabe o que são os estigmas? Não a deixei falar,
prossegui. Os estigmas com que trabalhei estão patentes nos personagens
principais: uma moça negra que morava numa pensão e termina na “zona de
mulheres”, uma aleijada que quis namorar o rapaz, no caso eu próprio, feio e
pobre, que ficou com a negrinha, entre outras formas de estigmas.
- Mas o senhor não é
feio, não.
- Bondade sua! São seus
olhos. Mas já fui melhor quando era jovem de 20 anos.
Olhando para o meu
relógio, abreviei a despedida. Nosso papo terminara por ali mesmo. Mas, se “uma das coisas mais bonitas da vida
é beijar”, com diz o autor logo na primeira crônica, confesso que me deu vontade
de beijá-la. Em seu lugar, beijei o livro.
A manhã, a partir dali,
ficou mais prazerosa. Voltei pra casa alegre, lembrando as palavras da moça.
Mas não foi o principal sentimento. Saí pensando sobre a vida e seus caminhos.
Principalmente os caminhos da leitura. Será que a influenciei? Pelo que sei,
quem vende livros não os lê. Quando muito passa um vista pelas orelhas, nome do
autor, título e editora. E pronto.
Já li quatro crônicas
que eu chamaria de ensaios à la Montaigne e gostei do estilo, dos temas e da
maneira de focá-los. Vou continuar até o fim. Depois, volto a ela, a moça, para
recomendar a leitura. Para mim, só existem três coisas que me fazem entender
bem a vida: o toque, a vista e o ouvido. E fora dos órgãos físicos, a leitura.
Nenhum discurso ouvido, por melhor que seja o orador, não se concatena na minha
cabeça. É como se entrasse por um ouvido e saísse por outro. Melhor do que a
leitura silenciosa não existe.
A leitura silenciosa é
uma conversa com o autor, com o mundo do texto e consigo mesmo – o próprio
leitor. E cada releitura é um novo caminho para desvendar mundos diferentes,
vidas interessantes, luzes que mais brilham, gente que vive, sofre, ri e canta.
E dança. Às vezes conforme a música, outras vezes infelizmente não.
Na leitura de Gilmar
Marcílio encontro tudo isto, talvez até mais do que meu olho interno enxergava
antes, pregado ao meu chão, a mim mesmo e ao meu egoísmo.
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*Francisco Miguel de
Moura, brasileiro, casado, bancário aposentado, escritor (prosa e poesia),
publica uma crônica ou um artigo a cada sábado, no jornal "O DIA".
Esta foi publicada em 19-7-2014, página 6 - Coluna "Opinião". Também
foi publicada no blog Cirandinha, do qual a extraímos.
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