quinta-feira, 23 de outubro de 2014

ENFIM, A APOSENTADORIA

Charges da autoria de Gervásio Castro


23 de outubro   Diário Incontínuo 

ENFIM, A APOSENTADORIA

Elmar Carvalho

No dia 10, sexta-feira, após mais de 39 anos de serviço público, aos 58 anos de idade, sem nunca ter sofrido nenhum tipo de punição, nem mesmo advertência ou repreensão, requeri a minha aposentadoria, e imediatamente me afastei de minhas atividades, como determina o CNJ. Silenciosa e anonimamente, bem no final do expediente, sem nada confidenciar a quem quer que fosse, me dirigi ao protocolo.

Eram quase duas horas da tarde, e havia no setor apenas um velho servidor, que me atendeu com presteza, mas sem perguntas e comentários. Apenas apareceu, de passagem, o juiz Antônio Soares, com o seu indefectível chapéu e o não menos habitual bom-humor, que me disse ter lido o meu livro Amar Amarante, que evoca o seu torrão natal, a terra azul do poeta Da Costa e Silva, quase uma ilha, encravada nas confluências dos rios Mulato, Canindé e Parnaíba, e emoldurada por lindas serras.

Cumpri um desiderato que já me impusera alguns meses atrás, sobre o qual não emiti mais nenhum comentário, porquanto desejei sair à francesa, da maneira mais discreta possível. Deus me ajudou para que as circunstâncias conspirassem para isso. Um pouco depois, viajei a Parnaíba, onde passei alguns dias, tanto na velha urbe, como no sítio Filomena, situado na Várzea do Simão, à beira do Velho Monge.

Não recebi nenhum e-mail ou telefonema sobre o meu pedido de aposentadoria, o que prova que o meu desejo de discrição foi alcançado plenamente. Certamente se eu tivesse cometido um crime ou algum fato escandaloso, as notícias na mídia e os telefonemas dos “amigos” não me teriam faltado. Lembrei-me do velho sarcasta Voltaire, que disse com muita verve e ironia: “Que Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu.”

Ingressei no serviço público em 15 de setembro de 1975, no cargo de monitor postal, na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, após haver sido aprovado em curso de três meses em Recife. Trabalhei nessa empresa federal em Teresina e em Parnaíba, para onde me transferi a fim de fazer o curso de Administração de Empresas na Universidade Federal do Piauí, Campus Ministro Reis Velloso.

Desliguei-me da ECT em 9 de agosto de 1982, após aprovação, em concurso feito pelo DASP, para assumir, no dia seguinte, o cargo de fiscal da extinta SUNAB – Superintendência Nacional do Abastecimento (autarquia federal). Hoje eu seria auditor-fiscal da Receita Federal, já que todos os ex-colegas fiscais, mesmo os aposentados, conseguiram, através de ação judicial, essa transposição funcional.

Pedi exoneração do Ministério da Fazenda, órgão para o qual fui redistribuído, após a extinção da SUNAB, no dia 19 de dezembro de 1997. Neste mesmo dia, no gabinete da presidência do Tribunal de Justiça do Piauí, juntamente com mais oito colegas, tomei posse de meu cargo de juiz, às onze horas. Era presidente da Corte o desembargador José Luís Martins de Carvalho, que me tinha grande consideração, a que sempre procurei corresponder na mesma intensidade. Estavam presentes, além dos colegas e familiares, vários desembargadores e outras pessoas e funcionários.

Nessa manhã inesquecível, fui escolhido pelos colegas para fazer a saudação de praxe. Transponho para este texto o que já registrei alhures: “Quando tomei posse de meu cargo de juiz junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, em solenidade singela, contudo para mim memorável, disse que uma dúvida me assaltava naquela ocasião: sobre o que seria mais importante, se a justiça, se a bondade. Mas eu próprio resolvi o aparente paradoxo da equação, ao dizer que quem era bom era justo, e quem era justo necessariamente teria que ser bom.”

Acrescentei, entre outras coisas de que já não guardo lembrança, que o juiz deveria esforçar-se para agir sempre com imparcialidade e justiça.  Acima de uma interpretação meramente literal, deveria o magistrado buscar uma interpretação teleológica, que realmente alcançasse o espírito da lei, como, aliás, preconiza o Cristo, consoante o admitem todos os grandes exegetas, sobretudo quando ele fustigava os fariseus e o apego demasiado à lei mosaica. Disse isso para afirmar que o mero zelo formalista não deveria ser importante para o julgador, mas sim o desiderato maior de fazer justiça, de agir com justiça. Aos aspectos extrínsecos, aparentes e formais, quase ritualísticos ou litúrgicos, deveria preponderar a essência, e a essência é o primado da Justiça.

Agora que requeri minha aposentadoria, posso dizer, com toda a sinceridade, mas também com toda a humildade possível, que não tenho remorsos e nem arrependimentos de minhas decisões interlocutórias e sentenças, pois sempre procurei agir com imparcialidade e com vontade de efetivamente fazer Justiça. Dentro das condições disponíveis, sobretudo a ostensiva falta de servidores, procurei agir com a possível celeridade, porquanto sou consciente de que a demora muitas vezes se transforma em clamorosa injustiça.

Posso ter errado, sim, devo ter errado, porque sou humano, porque não tive inteligência suficiente para alcançar certas sutilezas ou nuanças da lide ou porque a parte não conseguiu provar o seu direito, mas jamais, propositadamente, tirei a razão de quem tinha para dar a quem não a tivesse. Sem dúvida, sempre almejei levar em conta a proporcionalidade, a razoabilidade, e nunca esqueci o velho brocardo de Rui Barbosa: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.”

Em 8 de julho de 2013, quando me encontrava de férias, fui promovido para o Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Oeiras, de entrância final. No dia 6 de agosto tomei posse desse cargo, e logo em seguida recebi a notícia de que fora acometido de um segundo CA. Do primeiro, em Deus, já me considero curado. No dia 20 de setembro do mesmo ano, deixei a amada cidade de Oeiras, que tenho exaltado em verso e prosa, para não mais retornar.

Entrei de licença médica, para tratamento, recuperação e acompanhamento. O procedimento (invasivo) me causou incômodos e efeitos colaterais. Nesse ínterim, tendo idade e tempo de serviço suficiente para me aposentar, resolvi pedir minha remoção, por motivo de minha doença, que por lei é considerada grave, para a Comarca de Teresina. Esse pleito teve apenas um deferimento parcial, com a minha lotação provisória em Teresina.

Quando retornei às minhas atividades, senti que já não tinha o encantamento, o entusiasmo e a motivação, que sempre tive em toda a minha labuta judicante, mesmo quando atuei em longínquas comarcas, como Socorro do Piauí, Curimatá e Ribeiro Gonçalves. Por essas e outras razões, senti que Deus me sinalizava no sentido de desacelerar, de levar uma vida mais light e menos estressante.

Ao pedir a minha aposentadoria, com humildade e discrição, como disse, e consciente de que nada mais fiz do que apenas ter tentado cumprir as minhas obrigações funcionais, não pude deixar de me lembrar dos magistrais versos de Manuel Bandeira: “O major morreu. / Reformado. / Veterano da Guerra do Paraguai./ Herói da ponte do Itororó. / Não quis honras militares. / Não quis discursos. // Apenas / À hora do enterro / O corneteiro de um batalhão de linha / Deu à boca do túmulo / O toque de silêncio.”


Apenas assinalo, entre outras, as seguintes diferenças: não morri, como é óbvio; não sou herói, nem sequer de mim mesmo, e não desejo o toque de silêncio, porquanto pretendo permanecer ativo em outras atividades, sobretudo em minhas lides literárias, como escrevinhador e mormente como leitor, uma vez que tenho mais a aprender do que a dizer.    

7 comentários:

  1. Parabéns Caro Elmar Carvalho, que venceu suas jornadas de trabalhos e agora de um merecido descanso. Desejo que você possa usufruir essa nova etapa de vida com muita saúde e paz, felicidades.

    sp

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  2. Estimado amigo Elmar Carvalho:

    Ainda me lembro do meu primeiro encontro com V. em Amarante. Era o ano de 1990. Data para mim sempre repassada de alguma tristeza, pois foi naquele ano que para aquela cidade me dirigi com familiares a fim de visitar a sepultura de Cunha e Silva, meu pai. Foi o encontro da crítica com a poesia, encontro orque, de certa maneira, para mim poesia e crítica se complementam. Foi um encontro feliz regido pelo mero acaso das circunstâncias da vida terrena.
    Quando lhe perguntei pelo seu nome, V. me respondeu : "Elmar Carvalho". Lhe disse na época que tinha nome de poeta, talvez por associar a sílaba "El" à "mar",, que, para meus ouvidos, me soam liricamente, ou seja, a natureza simbolizada pelo significante/significado "mar" sempre me recorda o apego de alguns poetas ao mar, às ondas, à força da natureza, bela e por vezes desafiadora.Camões, Fernando Pessoa, "Vicente de Carvalho.
    O encontro foi duradouro, permanece até hoje, em outra época, a da pressa, das virtuais formas de comunicação.Porém, o verdadeiro encontro foi com a sua poesia, uma vez é no domínio estético, que os espíritos mais se identificam e se entendem,mesmo no silêncio, mesmo na distância. E a poesia sua me disse o que V. talvez não me pudesse dizer no ramerrão da vida apressada e avassaladora de tempos pós-modernos.
    Li toda a sua poesia que me chegou às mãos vibrei com alguns poemas seus e, de alguma forma, me tornei seu crítico, ou, pelo menos, quem mais tenha escrito sobre o que produziu.
    Reafirmo-lhe que logo senti em V. a força da poesia, tanto na expressividade das metáforas, quanto na originalidade dos ritmos, das aliterações, no jogo complexo da linguagem poética, sempre formulada com o suporte técnico, experimental do fazer poético com a sensibilidade de nos mostrar que se ama a natureza, a geografia poética, os fatos históricos, através da comunicação poética. E, durante os anos de maior fervor de produzir poesia, V. deu muito de si e procurou a companhia das musas por direito do talento e da preparação para esse gênero literário, quiçá o mais importante de todos porquanto é na poesia que se dá o encontro com o visível e o invisível, com a imagem e as virtualidades , com a existência humana e suas contradições e, sobretudo, com o encontro final, , em vida, que é um ajuste de contas com o mundo das palavras pelas palavras, pelo que possam dizer ou ocultar, afirmar e negar, e até mesmo exprimir o indizível, o que, no caso, a leva ao hermetismo, ao puramente estético. A leitura poética não é conduzir o leitor a conhecer uma história, a mas a pensar os sentidos das palavras, ou as formas (metafóricas) de tentar entender o mundo, os seres e sobretudo a magia da linguagem e dos sons tão próximos da música.
    Fico feliz porque cumpriu,na vida pessoal, as funções que exerceu e o seu texto rememorativo o faz com a elegância e a dignidade de um escritor que sabe respeitar-se e respeitar seus pares.
    Um abraço do
    Cunha e Silva Filho

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  3. Meus amigos Horácio Lima e Cunha e Silva Filho,
    Obrigado pelas palavras de solidariedade e de acolhida nesta nova etapa de minha vida.
    O texto do Cunha, devidamente revisto e corrigido por ele, por ser uma verdadeira crônica de crítica literária, de natureza também memorialística, foi publicada no corpo principal do blog.
    Obrigado meus irmãos e amigos!
    Elmar Carvalho

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  4. Primeiro li no "Diário da Justiça", editado pelo TJP, e após no seu conceituado Blog que, diariamente, leio para o meu deleite, a notícia de sua aposentadoria. Embora considerando prematura em razão de sua idade, tendo, ainda, alguns pares (e ímpares) de anos pela frente, curvo-me diante de sua atitude pessoal.
    Conhecendo a sua integridade e sua maneira coerente de pautar a sua conduta pessoal e profissional, (não se esqueça que trabalhamos juntos), chego à conclusão de que não uma atitude impensada ou temerária. Ao contrário, sei que você deve ter sido acometido de alguma angústia antes de chegar ao clímax de sua tomada de posição.
    A magistratura piauiense e, por extensão, a nacional, perde o trabalho cotidiano e diuturno de um dos melhores juízes que conheci em toda a minha carreira.
    As letras e a poesia agradecem pelo prestimoso tempo que doravante a elas será dedicado com inefável tirocínio. Ou em outra atividade laboral que você venha a desempenhar.
    Ao tempo que me solidarizo com o estimado colega e querido amigo, dou-lhe as boas vindas a este grupo seleto daqueles que se dedicaram com afinco e devoção sacerdotal à carreira da magistratura.
    Com o abraço cordial e fraterno do seu amigo
    Orlando Martins Pinheiro.'.

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  5. Dr. Elmar, diz a frase que qualquer mudança torna-se um ato de coragem. Ainda bem, imagino eu, que o senhor vai ter mais tempo para dedicar-se `a escrita, na qual admiro. Continue remando a favor das marolas do tempo, este que continua sempre correndo. Fabricio Carvalho Amorim Leite.

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  6. José Itamar Abreu costa
    Caro Elmar, a aposentadoria em jovens, significa o final de um estágio e o inicio de vários outros: temos agora um "guerreiro", com total liberdade para trabalhar 24h em prol das letras, artes e poder com sabedoria e dedicação trabalhar junto com amigos(as quais me incorporo, Olavo Pereira da Silva e outros), pela preservação dos monumentos, casarios, e o seu grande projeto: preservação e transformação do Cemitério velho de Campo Maior, em ponto de cultura, memória, lazer da terra dos carnaubais.

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  7. Muito bem, caro amigo Dr. Itamar!
    É isto mesmo que já estou fazendo.
    Agora mesmo já estou trabalhando de forma acelerada em um novo livro, em que registro fatos interessantes do que vi em minha carreira de julgador, no qual serão referidos alguns dos assuntos que você abordou em seu judicioso comentário.
    Abraço,
    Elmar

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