sábado, 17 de janeiro de 2015

A fúria pela fé


A fúria pela fé

José Maria Vasconcelos
Cronista

            Não me esqueço daquela cena cruel, no fundo do quintal, cercado de talos de buriti, na minha infância, na Piçarra. Meu pai não queria galinhas de vizinhos em nosso território e me ordenava que as tangessem de volta. Um dia, enfurecido com a persistência de um pinto, torci-lhe o pescoço até morrer. Não senti pena, nem remorso por atender a ordem de meu pai.

         Neste momento, a França ainda chora o ataque bárbaro de três terroristas islâmicos contra jornalistas. O mundo aglomera-se nas praças, reza e protesta. E se pergunta: “Por que tanta fúria, em nome de truculenta obediência religiosa?”

         A paixão determina intenso interesse por um ideal, causa ou atividade, que resulta, muitas vezes, em exacerbada e irracional excitação de descontrole emocional. Paixões -  amorosa, esportiva, política e religiosa - sem freios emocionais,  podem desencadear ódio, vingança, morte e suicídio. Temas de encher páginas de romances, novelas, contos, crônicas, poesias e manifestações artísticas. Inclusive do jornalismo e judiciário.

         O mundo vive de paixões e conflitos amorosos e partidários. O equilíbrio emocional, porém, é resultado da educação sadia dos instintos e temperamento. Na história da educação religiosa, a fé quase sempre se manifesta pela intransigência e conflitos.

         No Antigo Testamento, judeus arvoravam-se únicos herdeiros das promessas divinas. Não entravam nas casas de pagãos, não se aliavam a outros povos, não se uniam em casamento. Em nome de Javé, matavam adversários, conspurcavam bens e territórios. No salmo 138, que retrata a escravidão dos hebreus, na Babilônia, encontra-se o sentimento de ódio e vingança que arrepia: “Ó filha da Babilônia, a devastadora, feliz aquele que te retribuir o mal que nos fizeste! Feliz aquele que se apoderar de teus filhinhos, para esmagá-los contra o rochedo!

         A pregação de Jesus fugia totalmente à intolerância religiosa de seu povo: comia e bebia com os pecadores, entrava nas residências das autoridades romanas, acolhia prostitutas, curava pagãos. Foi condenado à morte, por defender a conciliação, perdão, tolerância, amor aos excluídos e o reino de um mundo sem fronteiras do ódio.

         Na Bíblia do Antigo Testamente, encontram-se mais estímulos à violência do que no Alcorão. De ambos, porém, as paixões religiosas tentam extrair interpretações para a prática do ódio, geralmente alicerçada em domínios e defesa da fé. A Igreja Católica herdou, durante séculos, a crueldade pagã do império romano, com as Cruzadas e Inquisição, esta utilizada, também, por correntes protestantes. Na década de 1960, o candidato à presidência dos Estados Unidos, Robert Kennedy, defendia, em livro, caso fosse eleito, maior aproximação com o Oriente. Segundo Robert, o Ocidente (ingleses, americanos e franceses) devia aos orientais um acerto de contas pelos regimes de escravidão e usurpação no Oriente, acelerado nas descobertas de petróleo. A cultura oriental cultiva anos de paciência para alcançar objetivos. O passado de domínios e humilhações não lhes escapa da memória. Paixões baseiam-se em obediência e interpretações religiosas cegas. Neste caso, nem um pinto se salva de uma degola.      

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