sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

DILETANTISMO


DILETANTISMO

Jacob Fortes

Principiando, quero pôr em relevo a diferença entre diletantismo e obrigação. A obrigação refere-se a esforço vinculado a um dever. O diletantismo diz respeito a esforço desvinculado, em prol de uma realização pessoal. A obrigação, mais das vezes, sintetiza um meio de vida. O diletantismo uma filosofia que coloca como condição prévia à ação: o prazer, o passatempo, a distração, o hobby, o lúdico. O diletante é capaz de se determinar a agir voluntariosamente em direção a um aprendizado, dominar qualquer técnica, superar obstáculos desde que os esforços exigidos coincidam com o que lhe é aprazível; tragam-lhe mais deleite do que desgosto. O diletante por vezes acalenta sonhos tão estratosféricos que jamais serão atingidos; estão ocultos em colchões de nuvens. Mas é necessário! Os sonhos consolam, (também cavam abismos).
Ao caminho do diletante, não raro, entraves se antepõem, circunstâncias que lhe estorvam o propósito. Ante a essas ocorrências é preciso cautela para esquadrinhar o recomeço: melhores ocasiões e oportunidades. Eu mesmo sou exemplo consumado disso. Ao meu primeiro deletrear na alfabetização senti o despertar, como a uma tendência irreprimível, do gosto pela leitura, mas os reveses que me couberam em sorte impediram-me de regar copiosamente essa inclinação; aplaquei-a, não pude fazê-la progredir plenamente. Gostaria de tê-la posto à frente como a um abre-alas, estadear-lhe o valor, mas era preciso porejar em busca de provisões de bocas, consanguíneas, muitas. É o fado inexorável de quem, despojado de haveres e decalcado de patentes feitas de taipa, sintetiza a privação das massas anônimas e insignificantes. Mas perseverei; não deixei que se estagnassem as necessidades da procura. Feito um passarinho devotado ao fruto preferido, de quando em quando eu engendrava um modo, furtivo que fosse, para degustar colheradas de leitura e, assim, manter o hábito de viajar: deslizando remansosamente nas canoas feitas de folhas de papel, a quem devo muitas consolações e pepitas.
Somente mais tarde, depois de remodelações em todos os níveis, (eu já era aceito em locais de tom) inclusive no bolso, pude dar confiadas asas ao meu diletantismo; que se acentuou com a chegada da aposentadoria; ô adjutório! Esse vezo, a leitura, acabou se tornando o meu avalista nas escritas, que também as faço por divertimento. Aliás, quem se mete a sobreviver da escrita onde se assiste ao fenecimento da leitura insta-se ao aviltado propósito de esmolar.
O desconsolo de ter sido obrigado a embargar o sorriso de um diletantismo que despontou na adolescência, e que fora empurrado, a bem dizer, para o subsolo, impõe-me uma preocupação que pode ser tomada como um lembrete: que os diletantes mancebos — imersos em contendas com os sonhos que lhe aconchegam o peito, mas sem dinheiro para levar a termo as suas vontades lúdicas, — tomem o propósito de estudar demoradamente para desígnios profissionalizantes que lhes assegure futuros auspiciosos; remorem o lúdico para o turno vespertino, transforme-o em intento subalterno. É que certos hobby requerem apostes financeiros e estes defluem do alicerce com que se erige uma qualificação. Antes perder a atualidade dos prazeres que não tê-los nunca.
Muitíssimo se poderia dizer acerca das diferenças que marcam a obrigação e o diletantismo, mas, em síntese, fico com estas particularidades: a obrigação é sisuda; o diletantismo ridente. A obrigação é reservada; o diletantismo espontâneo; a obrigação entedia, o diletantismo recreia; o braço que se há fraco na rotina da obrigação se faz vigoroso no ânimo do diletante.

Mas se o diletantismo é tão prodigioso, cheio de benignidade, por que não aplicar os seus efeitos sobre a obrigação, isto é, o esforço vinculado a um meio de vida? Simples. Basta que o diletante faça da sua obrigação o seu prazer. Mas como fica a aptidão; a disposição natural, o gene, que orienta as pessoas no sentido de uma atividade: pendor, propensão, tendência? No reservatório secreto, o íntimo de cada um, alojam-se intentos lúdicos, alguns inconfessáveis, quem sabe escrever o poema da miséria moral ou, em vindita a Jesus Cristo, estripar um traidor, feito de capim, no Sábado de Aleluia.

Que neste ano de 2015, e seguintes, não nos falte saúde necessária ao diletantismo, este ser alado; inelutável. O diletantismo é mãe invisível que fecha os olhos para que a gratuidade da infância não perca a validade; se estenda até a desmotorização da existência.

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