Estranho Homem
Cunha e Silva Filho
Aquele homem
grande, meio calvo, corpulento e de cara amarrada bateu
três vezes na porta
principal com os dedos em punho.
Do lado de dentro, eu achei esquisito a
chegada ali daquela pessoa. O homem foi logo dizendo que
tudo estava errado. Eu e
minha família, isto é, minha esposa e meu filho não entendemos o porquê
do transtorno daquele
homenzarrão de cara feia que, sem
motivos, vinha nos
importunar do nada. “Quem é o senhor? O que quer de nós? Não fizemos nada errado.A casa é
minha, pago meus impostos em dia e
sou um funcionário público em final de carreira”.
“Tudo quase aqui
em sua casa está irregular, até a arrumação
da casa, a mesa não deve estar neste lugar aqui, o sofá
é grande demais pra casa, a geladeira,
o fogão, o tanque, enfim, tudo
na casa está irregular.”
“Mas, por que me diz
tudo isso, senhor?’ “Não quero saber de sua
resposta. O senhor, que se diz
dono da casa deve me acompanhar"
Era noite. Mas, o que
disse era da boca pra fora, pois, como se verá, no final da conversa,
ia exigir que fosse na manhã seguinte prestar declarações ao chefe sobre
todas as
"ilicitudes" que conseguiu anotar numa caderneta.
"Vejo, inclusive,
que sua cama é grande demais, não
tem o tamanho adequado
para um casal tão
pequeno e com pouco peso
se somados os dois. O
quintal está, da mesma
forma, todo fora da lei,
assim como os bichos que cria. Eu
vou precisar de ter documento
seu comprovando que o senhor
foi quem comprou os bichos: galinhas, patos,
uma tartaruga, um cachorro
vira-lata e um gato branco.E até os
passarinhos nesta gaiola não são
permitidos por lei.Vou ter que
levar bichos e aves”.
Esqueci de informar que
o brutamontes estava acompanhado de um
homem pequeno, de olhos
vesgos e trazia, debaixo do braço, uma pasta marrom, dessa pastas que
comumente vemos na
cidade gente carregando cheia de papéis com ares de burocrata
certinho e bem organizadinho.
“Se o senhor não
arrumar sua casa conforme as
recomendações legais, será
daqui expulso e até mesmo, caso
reclame de alguma coisa, sairá preso, perderá o emprego 'para o bem do serviço público.’
E nem pense que
conseguirá algum advogado pra defendê-lo. De nada adiantará, se for o caso de prisão, será prisão mesmo” Habeas corpus para nós, diz o
armário, é conversa mole de excesso de proteção a criminoso”.
“Mas, nada
fiz de errado, levo
uma vida correta, não tenho vícios, não tenho, ao que pareça, inimigos,
e só tenho um hobby,
o de colecionar
velhos livros de matemática, matéria
que sempre estudei, dela fui aluno exemplar. Como são, em geral,
livros raros ou de
décadas atrás, encomendo-os pelas livrarias virtuais. Eles
chegam sem problemas. Veja, ali
naquela estante, quanto
deles coleciono. Se disponho de
mais tempo, leio-os e
resolvo os problemas propostos
por seus autores. Até os mais cabeludos.Alguns deles têm a chave dos exercícios, destinada
aos professores, então designada “Parte
do Mestre” (se não me engano,
introduzida pelos Maristas
da Coleção primorosa, a F.T.D.) para que
confira se acertou
resolver os problemas ou
não.”
“O senhor está me fazendo perder
o tempo com conversa fiada. O meu assunto
aqui nesta casa é vir cumprir
o que meu chefe me determinou e lembre-se de que eles são tão sensíveis
quanto os robôs e os
programas de computador. São frios e
calculistas e, ao lidarem com o ser humano, pouco
ou nenhum valor lhe dão.
Portanto, vá cuidando do que tem a
declarar ao chefe superior. Aqui
está o endereço a que deve comparecer, leve o máximo
possível de documentos e notas
fiscais de compras dos objetos
que a sua casa possui. O
grandalhão entregou-me um papel
timbrado e me pediu
que o assinasse. O comparecimento
ao chefe seria no dia
seguinte, às 9 00:hs.
O brutamontes,
acompanhado do homúnculo, saíra da casa
sem despedir-se. Ao contrário, bateram
com a porta e sumiram para
um lugar desconhecido. Era noite. Em casa, agora sozinhos, não sabíamos
o que dizer, tomados de medo e desespero.
Descobri, de repente, que apenas mal
acordara de um pesadelo e, agora,
nem me recordo bem se os fatos se deram conforme
o relato precedente. Me acuda,
leitor, que o mundo é louco mesmo e sem
sentido.
Não viu o que fizeram com
aquele famoso personagem de Kafka,
preso sem saber por quê? E mesmo a figura real
de Graciliano Ramos, o que de errado fez
pra merecer uma prisão no Estado
Novo? Experiência de preso
injustiçado que lhe rendeu literariamente uma grande
obra, Memórias do Cárcere. O pai deste narrador também foi preso em 1935, no mesmo período
discricionário,
injustamente somente porque
tinha em casa uns livros marxistas que, de resto, tinham
sido deixado na casa dele por um
seguidor do comunismo, o qual por acaso estivera de passagem por Amarante,
cidade piauiense.Um
dedo-duro denunciara meu
pai que, por isso,
amargara um período de cadeia em
Teresina. A experiência de prisão de meu pai o inspirou a escrever um
dos melhores capítulos do seu
livro, Copa e cozinha.
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