quarta-feira, 1 de abril de 2015

O coice


O COICE (*)      

            Antônio de Pádua Ribeiro dos Santos
            Poeta e contista

Massaud Moisés, no seu livro A Literatura Portuguesa Através dos Textos, conta curiosa passagem da vida de Sócrates, o modesto grego considerado o mais sábio de todos os do seu tempo, com estas palavras: “Caminhando Sócrates, um atrevido se descomediu com ele, e lhe deu um coice. Estranhando alguns a paciência do filósofo, disse:
        - Pois eu que lhe hei de fazer depois de dado?
        Responderam:
        - Demandá-lo em juízo pela injúria.
        Replicou:
        Se ele em dar coices confessa ser jumento, quereis que leve um jumento a juízo?”
             Devemos agir de igual modo. Os coices – pancadas que certos quadrúpedes nos aplicam com os cascos traseiros - merecem o nosso perdão. Merecem porque eles, como dissera o renomado filósofo quando falava sobre si mesmo, devem saber que nada sabem.
            No sertão nordestino, onde existem animais sempre prontos a coicear, é comum a existência de casas residenciais com portas cortadas ao meio, no horizontal, ficando uma parte sobre a outra, de modo que se possa abrir cada uma por sua vez, para que assim, estando aberta apenas a de cima, a ventilação entre por ela, enquanto que a de baixo permanece fechada, evitando a entrada de bichos, coiceiros ou não.
            Raimundo Alvino, mantendo em sua casa portas do tipo acima descrito, recebeu certa tarde a visita de um compadre seu, homem de olhar ligeiro e sagaz. Conversaram bastante, sobre assuntos diversos, e na hora da despedida já a tarde encontrava-se bastante avançada.
- Compadre, acho que o amigo deve dormir e sair somente amanhã. A casa é de pobre, mas sempre tem lugar para mais um...
Ante esta esperada sugestão do dono da casa, o visitante tentou esboçar uma falsa alegação de que não deveria aceitar, mas logo cedeu ao convite. Sua intenção era mesmo de ali pernoitar, por força do adiantado da hora e também porque já havia sutilmente observado a beleza da filha do anfitrião, a quem culpava de haver-lhe olhado com olhos pidões. Quimera que ao invadir sua cabeça desvairada ali gerava pensamentos medonhos.
Tratava-se de uma moçoila ainda em formação, porém de formas bem feitas, com ancas e peitos capazes de mostrar, através do apertado do vestido de pano fino e florido, empinadosmondrongos benignos que facilmente enchiam os olhos do vaidoso e audacioso que ali pernoitaria.
O curioso visitador, enquanto palestrava ficou sabendo que o compadre Alvino dormia com a esposa em um quarto dos fundos, a moça em um quarto do meio, e que ele, como visita e por falta de outro aposento, deveria dormir na sala da frente.
Aconteceu que o oportunista não se entregou ao sono. Mais ou menos meia-noite, quando os outros dormiam, saiu sorrateiramente da sua rede e rumou ao quarto da moça. Caminhando agachado, quase rastejando, transpôs uma das ditas portas de duas bandas, da qual abriu somente a parte de baixo, deixando a de cima fechada para evitar uma possível entrada de vento ou qualquer claridade no corredor que logo atravessou para chegar à porta do cômodo da inocente presa.
Penetrando na alcova, aproveitando-se da escuridão do recinto, começou deslizando a mão no pano da rede da jovem para em seguida prosseguir pela parte de trás de suas coxas, haja vista que esta dormia de bruços. Neste instante aconteceu o previsível: a adolescente acordou assombrada e tratou de gritar desesperadamente, dizendo em voz alta:
- Chega papai, que aqui tem um bicho mexendo comigo!...
O agressor, ciente da besteira que havia feito, tratou de sair desenfreadamente no rumo de sua rede armada na sala e, para tanto, teve que passar correndo - e desta feita se esquecendo de se agachar ou de rastejar, até porque o momento não permitia - pela mesma porta que havia deixado aberta somente na parte de baixo.
O dono da casa, ao ouvir os aterrorizantes gritos, partiu apressado, foi até o quarto da filha e esta, bastante assustada:
 - Papai, foi um bicho que esteve aqui! Buliu nas minhas pernas e saiu correndo no rumo da sala!...
O pai afobado, seguindo no mesmo percurso do tal bicho, encontrou a referida porta totalmente aberta, inclusive com a tramela da parte de cima arrancada do prego e atirada ao chão. Ao chegar à sala e ao ver o seu compadre embolado no fundo da rede, com uma mão no rosto que sangrava, indagou:
- Compadre, você viu algum bicho passando por aqui?
A resposta do frustrado conquistador barato foi imediata e precisa:
- Vi, compadre! Era um bicho brabo e ligeiro. Passou aqui correndo feito o cão e ainda deu um coice no meio da minha testa...


(*) Conto premiado no XVI Concurso Nacional de Contos Jorge Andrade – Barretos – São Paulo.

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