segunda-feira, 11 de maio de 2015

CONFISSÕES DE UM JUIZ

Elmar Carvalho, Antônio de Pádua, José Hamilton, Cajubá Neto e Lili Machado



CONFISSÕES DE UM JUIZ (*)

Alcenor Candeira Filho

            No início de 2010 o poeta Elmar Carvalho criou por sugestão de sua filha Elmara o “poetaelmar.blogspot.com.br”.
Ao longo desses cinco anos de existência o blog do poeta vem divulgando textos em prosa e em verso de sua própria lavra e artigos e poemas de intelectuais do Piauí e de outros Estados brasileiros.
           Os textos escritos por Elmar Carvalho e postados na internet fazem parte do que ele chama de “Diário Incontínuo”. Esses trabalhos, se enfeixados em livros, formariam vários volumes.
          Muitos escritores conciliaram a burocracia com a literatura, como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, para citar apenas três dentre os melhores da literatura brasileira.
          Pois Elmar Carvalho também se realizou profissional e artisticamente usando como instrumento de trabalho a Língua Portuguesa, que tanto serve à literatura como à ciência e à filosofia. Correção, coerência, concisão, objetividade e clareza são virtudes de estilo que não podem ficar ausentes da linguagem filosófica, científica, jornalística, burocrática.
          Tais virtudes devem também caracterizar a expressão literária, que por sua própria natureza comporta o apelo a outros recursos, como a transgressão gramatical em favor do estilo, a incoerência, a conotação, a subjetividade, o hermetismo... Quer dizer, o que vale mesmo no trabalho do escritor é a ampla e irrestrita liberdade de criação estética.
          Já me manifestei por escrito sobre a obra literária de Elmar Carvalho em três momentos, todos revestidos de caráter solene e público: 1994, com o discurso de recepção na posse do poeta na Academia Parnaibana de Letras; 1996, com a apresentação de A ROSA DOS VENTOS GERAIS na noite do  lançamento  em Parnaíba;  2010, com a apresentação de POEMITOS DA PARNAÍBA  no lançamento ocorrido no auditório da APAL.
          Poucos intelectuais piauienses da atualidade possuem  fortuna crítica tão expressiva quanto  a de Elmar,  constituída  por comentários  de  escritores , poetas, ensaístas, professores, magistrados, advogados. De modo que o poeta teria facilmente outras opções para o convite que acabou endereçado a minha pessoa.
          Por que novamente recaiu sobre mim o privilégio de fazer a apresentação de mais uma obra do grande escritor e respeitado juiz?
          Atribuo a escolha a uma amizade de quatro décadas, preservada em elevado grau de respeito, admiração e confiança mútuas, - amizade  jamais   arranhada  por qualquer  desavença,  com cada um se mantendo fiel às  próprias  idéias, várias  convergentes  outras  não.  Se pensássemos sempre de forma idêntica nossa amizade só nos teria trazido prejuízo, porque ficaríamos impedidos de desfrutar do aprendizado recíproco, que só se efetiva plenamente entre pessoas que cultivam sem nenhum preconceito idéias próprias e respeitam as alheias. Além da vocação comum para o serviço público e para a poesia, as afinidades que tanto nos aproximam decorrem também da fidelidade a pensamentos grandes, retilíneos, utópicos às vezes mas sempre  isentos  das  impurezas  do branco.
          CONFISSÕES DE UM JUIZ é um livro de quase duzentas páginas que reúne parte dos textos postados no blog: crônicas, comentários, reminiscências, confissões, reflexões sobre pessoas, bichos e lugares, ou ainda, como assinala o professor Cunha e Silva Filho, “histórias vividas ou inventadas na cidade ou no campo, narradas com limpidez estilística”, e apresenta as seguintes partes: I. “Confissões de um Juiz”; II. “Memórias Afins”; III. “Memórias Afetivas”.
          A obra enfatiza na parte inicial as lembranças do burocrata, sobretudo do julgador, do que tem a responsabilidade superior e constitucional de “atribuir a cada um o que é seu”. Responsabilidade imensa a do juiz, que raramente é reconhecido pelo que faz no desempenho da profissão.
          Vale a pena a leitura das seguintes palavras de Martinho Garcês, transcritas no livro ESCRITOS DE VÁRIO ASSUNTO, de Cristino Castelo Branco, magistrado e escritor piauiense: 

           “Todo homem de mérito no Brasil tem o seu historiador e o seu biógrafo, menos o jurista, seja ele magistrado ou advogado. (...) O jurista nada tem. O juiz que estuda,  consola-se com o juízo que da sua inteligência, probidade e saber possa fazer as partes que perante ele pleiteiam,  e os advogados pagam-se generosamente dos seus esforços com os louvores dos seus constituintes,  quando, por uma questão de ajuste de honorários, eles, depois  de  bem servidos, não se tornam seus inimigos.”

          No livro citado, Cristino Castelo Branco completa o pensamento de Garcês ao tempo em que amplia o rol dos injustiçados,  fazendo    referência  a profissionais de diversas áreas  prejudicados  pela falta de reconhecimento a seus méritos. Só o literato, segundo o texto de Cristino, é capaz de conquistar com facilidade a  notoriedade, a  fama:

           “Salta aos olhos de toda a gente que a literatura amena  rende muito mais para a vaidade humana, para a sede de glória, que o direito,  a medicina, a matemática, qualquer outra ciência.  Pertencer à Academia Brasileira de Letras  é, entre nós, considerado muito mais importante que pertencer   à Academia Nacional de Medicina, ao Instituto dos Advogados, ao Clube de Engenharia. Por que? Segredos da vaidade humana, ou melhor, da futilidade de todos nós.”

          A respeito desses mistérios ou sutilezas da alma humana, capazes de determinar ações e reações que ora engrandecem ora amesquinham o homem,  Elmar Carvalho  conta no livro um fato acontecido durante casual e rápido encontro que teve com a desembargadora Eulália Ribeiro Gonçalves Pinheiro, que, diante de um  ato de cordialidade recebido, reagiu com gesto nobre de simplicidade, simpatia e gentileza, e não com aquele ar  de  superioridade peculiar a algumas  autoridades:
          “Outro dia, quando eu me preparava para sair do elevador, no subsolo, encontrei a desembargadora Eulália Ribeiro Gonçalves Pinheiro.  Cumprimentei-a, e  lhe dei  passagem , mas ela, de maneira lhana, disse:   ‘Não, primeiro os poetas.’ Foi a primeira vez que eu vi a espada da Justiça  se curvar  perante a frágil pena da Poesia.”

         Numa época em que repercutem no país inteiro notícias de que alguns juízes, felizmente a minoria,  se arvoram de “deuses”,  justifica-se  a menção a comportamentos exemplares por parte de magistrados,  como podemos ver em outro episódio, contado na página 40:

          “Certa ocasião,eu me encontrava numa roda de conversa, na varanda de um dos andares do tribunal . Logo depois chegou o desembargador Santana, que, após cumprimentar-nos, disse, dirigindo-se a mim, como costumava fazer: ‘ Como  é que vai, poeta maior?’
          Estava a meu lado outro poeta, cujo nome já não recordo. O vate franziu o cenho, empertigou-se todo, retorceu-se como se estivesse com forte cólica intestinal, e, virando-se para um lado e outro, resmungou/rosnou: ‘É, quer dizer que eu devo ser um poeta menor...’  Sepulcral silêncio acolheu as suas palavras.”

          Destaca-se nas primeiras páginas do livro a revelação, em tom de quase desabafo, feita por quem laborou durante quatro décadas na vida pública e dela teve de se afastar em razão de aposentadoria fundamentada em tempo de serviço mas motivada verdadeiramente  por razões que a própria razão desconhece.
          O juiz Elmar teria ainda outro argumento para justificar a aposentadoria, se esse fosse o seu objetivo: doença grave.
          Mas no fundo o que ele pretendia apesar dos pesares ou principalmente por isso mesmo era continuar servindo ao país como magistrado culto, íntegro, justo, bom. Estava plenamente motivado para o trabalho forense  por mais algum tempo.
          O comovente depoimento de Elmar sobre os fatos e circunstâncias que precipitaram o pedido de aposentadoria aos 58 anos de idade  repercutiu no meio forense e intelectual,  com opiniões postadas na internet  e  comentários inseridos no livro, como estes:

           “A magistratura piauiense e, por extensão, nacional,perde o trabalho cotidiano e diuturno de um dos melhores juízes que conheci em toda a minha  carreira.
           As letras e a poesia agradecem pelo prestimoso tempo que doravante a elas será dedicado com inefável tirocínio. Ou em outra atividade laboral que você  venha   a desempenhar.” (juiz  de  direito Orlando Martins Pinheiro).

           “Não tenho dúvida de que chega à fronteira de fatigante jornada com  a dignidade inteira,  sem  mossas e sem fissuras morais porque, agindo sempre como uma espécie de artesão, exerceu a judicatura como se fosse um apostolado;  restabeleceu patrimônios desperdiçados e recompôs sociedades  conjugais  esfaceladas, sem alienar sentenças ou hipotecar despachos.” (desembargador Valério Chaves)

           “Caro Elmar, da mesma forma com que me emocionei quando li algumas passagens do livro já citado, há poucos   dias  também  me emocionei com a postagem acerca de seu pedido de aposentadoria (...)  Já começo a sentir saudades do brilhante vate do TJPI.” (juiz de direito Antônio Oliveira)

          Os professores/escritores Cunha e Silva Filho, José Maria Vasconcelos e Nelson Rios, dentre outros, também se manifestaram sobre o episódio.
          Na 2ª e 3ª partes do livro, o autor selecionou textos escritos há algum tempo, vários deles complementando e elucidando fatos focalizados na parte inicial.
São belas pelo refinamento estilístico e pela suavidade do lirismo encantador as páginas elegíacas inseridas na 3ª parte, páginas que falam tanto da morte de pessoas quanto da de animais. Em ambos os casos o autor se expressa com formidável equilíbrio emocional, jamais se derramando em sentimentalismo exacerbado, em pieguice.  São textos que brotam d’alma, é verdade, mas ditado sobretudo pela razão.  Lirismo “direcionado mais pela inteligência do que pelo sentimentalismo”, como disse o escritor e crítico literário Fábio Lucas a propósito de A LUTA CORPORAL, de Ferreira Gullar.
           Desejo encerrar minha fala com a seguinte declaração: considero CONFISSÕES DE UM JUIZ, de José Elmar de Melo Carvalho, um dos melhores livros que li nos últimos tempos.
_________
Discurso de apresentação do livro Confissões de um juiz, pronunciado na solenidade de lançamento em Parnaíba, ocorrida no dia 8 de maio de 2015.   

4 comentários:

  1. Caro amigo Elmar,
    Parabéns pelo lançamento do "Confissões de um Juiz". Endosso as palavras felizes do ilustre poeta e escritor (e também meu ex-professor no Curso Cobrão em 1979) Alcenor Candeira Filho, proferidas no seu discurso de apresentação do livro.
    Para deleite dos amantes da literatura, resta aguardar agora o lançamento da sua próxima obra.
    Abraços. Ben-Hur Sampaio.

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  2. Uma síntese grandioso, plena de agudeza e percuciência de um poeta sobre outro poeta. Como é bom juntarem-se num só escritor (Alcenor Candeira Filho), o poeta, o ensaísta e o crítico a falar sobe um livro de memórias de um poeta, um ensaísta e um crítico (Elmar Carvalho) a propósito do mais recente livro do segundo, que é "Confissões de um juiz."
    A apresentação de Alcenor Candeira, pelos ângulos enfocados na apreciação das memórias de Elmar Carvalho, ainda que numa síntese, praticamente esgota as possibilidades da sondagem dos valores humanos e estéticos dessa obra de Elmar.
    Cunha e Silva Filho

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  3. Companheiro Elmar,

    A maioria pensa que um juiz, acadêmico, poeta ou escritor vive numa dimensão diferente das outras pessoas. Ledo engano, como seres humanos que são, passam pelas mesmas alegrias, desafios, provações e dilemas humanos.

    Além do mais, o curioso e admirável é que o homem detentor de missões tão dignificantes neste caminho, de forma simples e verdadeira, transforma as palavras em arte. E, não só por meio da leitura de um Camões, Fernando Pessoa ou de tantos outros pensadores que passaram nesta Terra.

    Mas, ainda, através de uma simples prosa com o José, do Antônio e, talvez, do Fabrício, quando os encontram, por exemplo, numa simples caminhada despretensiosa na rua.

    Concluímos que, na Obra "Confissões de Um Juiz", o termo "Juiz", poderia, até mesmo, ser interpretado como não só aquele que é investido na autoridade pública e equidistante, mas a do ser humano simples e humilde que, no seu mister, sofreu as dores que não eram suas, - como um poeta que desceu às entranhas de sua sensibilidade espiritual humana a fim de descortinar o véu da obscuridade mundana para tentar romper com as estreitezas entre os homens -.

    Parabéns pelo livro, a caminhada é eterna.

    Fabrício Carvalho Amorim Leite

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  4. Caros amigos Ben-Hur, Cunha e Silva Filho e Fabrício,
    Muito obrigado por suas excelentes e belas palavras de apreço e estímulo.
    O nosso bravo Alcenor Candeira Filho, além de grande poeta, é igualmente um notável ensaísta, orador, cronista e articulista, além de um dos melhores professores de literatura do nosso estado. Sua apresentação vale mais para mim do que certas honrarias e ouropéis.
    Abraço,
    Elmar

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