sábado, 1 de agosto de 2015

OPERAÇÃO CATA PIOLHO


OPERAÇÃO CATA PIOLHO

Jacob Fortes

Notório para os que viajam de automóvel por esse Brasil afora é o fato de que as rodovias federais, invariavelmente, passam ao largo das urbes populosas, mas tratando-se dos vilarejos e demais aglomerações rarefeitas do interior cortam-nas ao meio. É justamente nessas povoações ralas que se percebe, desde que desapressadamente, o estranho, particular e simiesco hábito que vige nessas comunidades vilarinhas e interioranas. Trata-se da tarefa (a batizei de “operação cata piolho”) de expurgar das densas cabeleiras femininas, raramente das masculinas, os infestos ectoparasitas: piolhos, lêndeas e animálculos em geral. Executada com raro zelo e prazer, a tarefa, que mais parece uma diversão, inicia-se no principiar das tardes dominicais.  Para tomar conhecimento da inusitada prática não precisa ao transeunte ter olhos de tetéu, nem ser observador arguto, pois o procedimento, ritualístico, ocorre à evidência, em alto relevo (na calçada, no terreiro, nos desvãos das portas), enfim em todos os locais onde habitam os que ainda não suspenderam a greve de assepsia. Tão logo a hospedeira, mais das vezes de cabeleira em tempestade, senta-se ao chão e espalda-se na entreperna da catadora, esta sentada à calçada ou num tamborete, dá-se início ao paciente trabalho de garimpagem. Enquanto a catadora, prazerosamente, vai arrepelando aquela cabeleira (poenta por falta de asseio) para subtrair e despejar as manadas invasoras, aninhadas no interior do latifúndio capilar, a hospedeira, por esquecidas horas, vai gozando, queda, as delícias de uns cochilos. Haja habilidade e dedos para filar tanto inseto! Melhor para as galinhas que espreitam, impacientadas, a colheita das larvas e pupas capturadas no interior do enorme cipoal. Afinal, neste mundo nada se perde, exceto vontade de pobre e guimba de cigarro. Mas a cabeça da catadora há de estar protegida por uma toca, ou pano, pois os fugitivos, em demanda de novos esconderijos, se abismam feitos pulgas e vão-se homiziar na maçaroca mais próxima. As cabeleiras densas e ingentes somente podem ser garimpadas por eito ou por talhão, hipótese em que a catadora carece de certos instrumentos de trabalho: pente de ferro tipo rastelo e piranha reforçada para piquetear o terreno. Sobre cada talhão arrepelado a catadora aplica um líquido oleoso e malcheiroso, símile ao azeite de mamona. A desconfortante cena, porém, mais inestética que estética (protagonizada pelas camadas mais puídas da sociedade), apenas vivifica legado reinol: a esquadra que trouxe a família real para o Brasil veio abarrotada não apenas de pessoas, mas principalmente de piolhos: “Afligida por tempestades e infestações de piolhos, a corte atravessa o oceano. Para combater a praga, as mulheres nobres tiveram de raspar os cabelos e untar as cabeças carecas com banha de porco e pó antisséptico à base de enxofre”.

A natureza dos fios capilares constitui curiosidade acessória: uns rijos e grossos semelhantes à cerda do caititu; uns negros da cor do azeviche; uns fulvos remetendo ao sarará; uns riçados, outros desenriçados e assim por diante.

Na falta de um parasitologista ou de um Ministério da Saúde para acudir na tarefa de despejar esses inquilinos parasitários — que dia e noite castigam os hospedeiros comichando-lhes a cabeça, — melhor fariam os donos desses latifúndios se derrubassem em corte cerce as suas florestas capilares e, na sequência à raspagem, aplicar produto desinfetante de enérgica propriedade antisséptica, a bem dizer o detefon.


Digno de espanto ou admiração, apupo ou ovação, conforme a opinião que se tem, verdade é que o costume é exemplo frisante desse enorme mosaico nacional: a identidade cultural brasileira.   

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