terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Passageiro clandestino


Passageiro clandestino

José Pedro Araújo
Romancista, cronista e contista

Três da tarde, tempo quente, inverno findando, descíamos a pé a inclinada ladeira do Alto da Balança no sentido da cidade. Voltávamos para casa depois de matar a sede dos animais retidos na quinta localizada depois do rio Preguiça, obrigação de quase todos os dias. Foi ai que avistamos o carro que acabava de passar o Riachinho e se encaminhava sacolejando ao nosso encontro. Era um daqueles caminhões boiadeiros, com grades bem altas, e sobre elas vários homens que se seguravam como podiam, dificuldade aumentada pelos constantes solavancos que o veículo emitia ao rolar pela pista esburacada. Atrás de si, uma nuvem de poeira vermelha o acompanhava como uma fiel seguidora, evoluindo e se dispersando ao sabor do vento morno. 

Ao passar por nós, em começo da ladeira íngreme, o carro diminuiu a marcha e o motor agitou-se agoniado, fazendo força para superar a forte subida. Em meio à poeira que ia ficando para trás, ouvi uma voz chamando pelo meu nome. Era o Zé Pretinho. Mulato simpático e muito amigo das crianças que residiam nas proximidades da casa em que morávamos na Rua Grande. Encarapitado lá no alto das grades do caminhão, agora em marcha cada vez mais lenta, ele acenava para mim. 

Joguei o cabresto que trazia comigo para o meu companheiro e corri em direção ao carro. Havia acabado de decidir me juntar ao grupo que se segurava como podia nas elevadas grades. Ia fazer um passeio de carro. Atrás de mim o colega começou a gritar pedindo que não fosse em frente.  Nem me dei ao trabalho de justificar o meu ato, precisava aproveitar que o caminhão ainda estava próximo.

Subi sem muitas dificuldades e, logo, me encontrava do lado do Zé Pretinho. Perguntei-lhe para aonde iam. Ele me respondeu que iam apanhar algumas cabeças de gado numa fazenda um pouco distante. Dei de ombros e me acomodei no poleiro; não importava para onde estávamos indo, contanto que voltássemos logo. Além do mais, estava gostando daquela aventura que estava só no começo e que, como veremos logo à frente, me traria muitos dissabores.

A fazenda, diferentemente do que afirmara o Zé Pretinho, não ficava muito próximo. De onde apanhei o caminhão até lá ainda levou uns bons dez minutos para vencermos a distância. Ficava quase nos Poços, região belíssima e de terras muito férteis. Mas, acabou aí a beleza da minha aventura. Dali para frente as situações foram se encadeando no sentido de me trazer dissabores. Para começar, não havia embarcadouro por lá. Foi necessário cavar um buraco no chão para que o caminhão pudesse penetrar nele e o para que o gado a ser embarcado tivesse acesso à carroceria. Isso demorou muito tempo. Pelo nervosismo demonstrado pelo motorista vi que aquele serviço não estaria completado antes da noite chegar. Ai quem ficou nervoso fui eu.

Cava daqui, discute dali, vi que a tal rampa estava demorando demais para ficar pronta, apesar do terreno ainda está um pouco úmido. A ferramenta utilizada para escavar o chão também não era muito apropriada, e por isso demorou tanto para aquilo ficar do jeito que o motorista achava que estava legal. Trabalho enfim concluído, ai começaria outro trabalhão: o gado não se mostrava muito satisfeito com a possibilidade de entrar naquela carroceria, e os homens encarregados de conduzi-los até lá pareciam pouco afeitos à tarefa.

A minha preocupação somente aumentava com o passar das horas e com a possibilidade da chegada da escuridão. Finalmente deram por completada a empreitada e começaram a arrumação para a partida. Já era quase noite quando terminaram de colocar o gado sobre o caminhão. Agora parecia que tudo havia terminado. Era só acionar a chave no contato e colocar o bicho para funcionar. Até ai, tarefa cumprida: o motor pegou que foi uma beleza. Nesse momento, meu coração já começava a aquietar-se, pois, mesmo chegando já noite em casa, não deveria ser muito tarde, e talvez conseguisse me safar bem.

Mas qual! Ninguém havia contado com um problema a mais: a carga embarcada ficou muito pesada, e isto fez com que o caminhão começasse a afundar no terreno ainda um pouco molhado logo que o motorista deu a partida. Patina daqui, afunda dali, logo vimos que daquele jeito não conseguiríamos jamais sair dali. E como sair daquele imbróglio, foi motivo de grande discursão. Cada um queria dar uma ideia mais estapafúrdia. Até que decidiram aliviar a carga. Aliviar a carga significava retirar algumas reses e colocá-la de volta no curral. Aliviar a carga também significava demanda de tempo.

Nesse momento, meus nervos já estavam em pandarecos. Agora a coisa estava complicada. Era certo que não chegaria em casa tão cedo. E como ninguém sabia por onde eu andava, imaginei como deveria estar os meus familiares, e como seria a minha recepção na volta.

Retiraram a metade da carga. Os animais até facilitaram. Tudo, desde que saíssem daquele aperto. E com isso, já era possível fazer-se uma nova tentativa. Dessa vez foi o caminhão que se negou a colaborar. Parecia que a bateria tinha descarregado. Porca miséria! Meu desespero chegou ao ápice.

O motorista desceu do carro irritadíssimo, e começou a lançar impropérios para todos os lados. E não tendo outra coisa a fazer, pois na situação em que o veículo estava, era impossível empurrá-lo, voltou para a boleia e mais uma vez deu com a chave no contato. Alvíssaras! Não é que o estúpido pegou! E meu herói do dia conseguiu fazer com que o bichão saísse do buraco de uma só tentativa. Gritos de alegria, palmas, assobios, era certo que ninguém queria passar a noite por ali. Eu, mais que todos.

Mas, ai alguém se lembrou de perguntar como iriamos embarcar o restante da carga retirada. Para isso não encontraram respostas. E o motorista resolveu demonstrar a sua autoridade: não levaria mais do que a carga que já estava embarcada. Pronto. E assim fez. Todos a bordo, enfim!

Ai um desgraçado olhou para mim quando subia na carroceria e falou que eu não poderia ir com eles. Não tinha nada a fazer ali, nem havia ajudado em nada! Meu desespero foi ao limite. Aquele infeliz estava se arvorando de dono de uma coisa na qual ele não tinha outra relação a não ser a de ajudante. Mas o Zé Pretinho me salvou daquela situação. Disse que eu havia ido com ele e que ninguém me impediria de retornar com ele também. O imbecil ainda tentou argumentar, mas foi contido pelo meu amigo ao preço de uma cara fechada, de poucos amigos. Pronto, subi nas grades e me arrumei para partir.

A noite estava muito escura, daquele tipo no qual é impossível se divisar algo a dois metros de nós. Mas, o motorista ligou os faróis, acelerou e foi encurtando a distância para a minha casa. Ou mais precisamente, aumentado a proximidade do meu ajuste de contas com meus pais.

Dai a poucos instantes chegamos perto da travessia do rio Preguiça. Precisávamos passar por uma ponte de madeira, velha e carcomida pelo tempo. E isso era também motivo para preocupação de alguns dos que ali estavam. No presente caso, como diz a Lei de Murphy, “qualquer coisa que possa correr mal, ocorrerá mal, no pior momento possível”. Não chegamos a subir na ponte. O caminhão atolou logo na sua cabeceira. E atolou até o eixo naquele massapé que não deixa dúvidas para ninguém: dali para frente somente um trator resolveria o caso.

Não era o meu dia! Resolvemos completar o trajeto a pé. E fomos, rompendo aquela escuridão tremenda, do tipo que se diz de “meter o dedo no próprio olho”. Já havíamos andado alguns minutos quando eu ouvi uma voz conhecida perguntando se eu não estaria naquele grupo. A voz era de um tio meu. Haviam, finalmente, lembrado de perguntar ao rapaz que me acompanhava quando fomos dar de beber aos animais, conforme mencionei no início deste texto, o que ele sabia sobre o meu sumiço. E ele falou que eu havia embarcado em um caminhão ainda no Alto da Balança. Aquele tio meu foi destacado para investigar o caso e terminou por descobrir que o transporte tinha ido apanhar um gado na fazenda do Senhor Raimundo Claro. Foi como ele me encontrou.


Vou parar por aqui. O texto já está muito longo e eu não vou matar a curiosidade de ninguém. Sei que tem muita gente querendo saber o resultado dessa história. Como foi dolorosa demais para mim, não vou atender a ninguém. Imagina!    

4 comentários:

  1. Caro Araújo,
    Por essa peraltice, um tanto grave para os padrões da época, você deve ter ganho uma boa sova...
    Também fiz travessuras similares.

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  2. Francisco Acoram Araújo27 de janeiro de 2016 às 19:20

    Dr. Araújo,

    Lá em Barras, por volta do final da década de 50, pulei do "Horário" em pleno movimento. Esse transporte coletivo diariamente ia a Teresina, voltando à Barras na parte da tarde. Nesse dia resolvi pegar uma carona até ao posto fiscal no pressuposto de que a corrente do posto fiscal que ficava na saída da cidade estivesse derreada. Não estava. Tive que pular do carro que imprimia uma certa velocidade. Arrebentei-me todo; as minhas costas ficaram em coro vivo.

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  3. Caro Acoram,
    Pelo visto você era mais "terrível" do que o nosso JP Araújo.

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    1. Meu caro Poeta, quando o nosso Acoram resolver contar das suas peraltices no nosso blog, nos deixará na poeira. O menino moldou o seu conhecimento sobre malandragem nos morros cariocas. Ainda bem que ele retomou o caminho da retidão e se transformou no homem correto que hoje conhecemos. Benza-me Deus!

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