segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

POLÍTICA E CULTURA NO JORNAL INOVAÇÃO

Membros do Jornal Inovação, sob o cajueiro de Humberto de Campos, vendo-se, da esquerda para a direita, no 1º plano: Bartolomeu Martins, Vicente de Paula (Potência), Elmar Carvalho e Canindé Correia; 2º plano: Danilo Melo, Francisco (Neco) Carvalho, Diderot Mavignier, Franzé Ribeiro, Sólima Genuína, Bernardo Silva, Reginaldo Costa e Paulo Martins; 3º plano: Jonas Carvalho, Israel Correia, Porfírio Carvalho, Wilton Porto, Alcenor Candeira Filho e Flamarion Mesquita. Percebe-se, nesta fotografia, a felicidade dos retratados com esse reencontro, posto que vários moravam em outros estados e municípios. Hoje, a maioria já não reside em Parnaíba
O mesmo grupo do Jornal Inovação, em confraternização, no bar Recanto da Saudade, do saudoso Dom Augusto da Munguba



POLÍTICA E CULTURA NO JORNAL INOVAÇÃO

Teresinha Queiroz
Professora da UFPI e historiadora

O livro Inovação e seus dardos de fogo, de Reginaldo Ferreira da Costa,  tem como centro a rememoração da saga inventada e vivida por ele e por muitos de seus contemporâneos, em recentes tempos heróicos de resistência democrática e de construção de um novo Brasil, mais rico de experimentações sociais e mais livre de seculares amarras políticas e culturais. Entretanto, não é ao livro, especialmente, que gostaria de fazer menção, mas ao contexto mais amplo que possibilita esses novos experimentos coletivos, dos quais o autor é, sem dúvida, um atuante sujeito.
A história brasileira do século passado, vista do final da década de 1970 até meados da década de 1980, tanto num ângulo geral quanto em suas particularidades, é de uma extraordinária riqueza de nuances e de grande velocidade de transformação, sendo os anos compreendidos entre 1978 e 1985 absolutamente representativos quanto às mudanças do cenário político. Das promessas de abertura do regime ao movimento “diretas já”, a presença e a consistência das aspirações e da ação populares denotam aquela mudança e dão o diapasão das novas regras que se insinuam no ordenamento político do país.
Em suas grandes linhas e em escopo macroscópico, trata-se de uma história tanto vivida quanto exaustivamente escrita e registrada em vários suportes e linguagens. É possível acompanhá-la, entretanto, de um ângulo particular, definido segundo lugares especiais – o sentimento e a participação de jovens, numa cidade média em inegável retrocesso econômico, contida e controlada menos pelo rigor do sistema tal qual era então instituído e mais pelas forças petrificadas da dominação sociopolítica dos enraizados nos poderes locais. Ao historiador é dado o privilégio de ter acesso a fontes ciosamente preservadas, como a coleção completa do jornal Inovação e ainda a informações orais acerca da imprensa dita menor, no período, que veiculam e explicitam as interdições e os possíveis daquele momento de veloz transição.
O que pretendo esboçar neste breve estudo, cuja base é o corpus quase completo do  Inovação,  é a síntese do panorama composto nessas quase 1200 páginas de sonhos juvenis, que expressam da maneira mais honesta o inconformismo e a sede de transformação social e política daquele recanto do Brasil – Parnaíba - sonhos, porém, que são emblemáticos de denso conjunto de desejos que é nacional, em grande medida.
Ao percorrer, com acuidade, dez anos de aguerrido jornalismo, deparo-me, ao mesmo tempo, com um sólido e bem definido projeto político, e com um variado conjunto de propostas sociais, alcançando desde a inserção cultural do jovem na vida da cidade a escolhas de caminhos e percursos que associam as propostas ali colocadas às transformações mais gerais da própria sociedade brasileira. O conjunto de temas abordados é exaustivo, e o autor do livro em parte a eles se refere – mas é possível sugeri-los com o fim de situar o próprio alcance do jornal e as principais linhas de atuação a que se propunha a equipe responsável.
Em face da velocidade das transformações no quadro geral brasileiro, e até por causa disso, é possível visualizar, o que também é percebido pelos articulistas, o contraste com a morosidade da vida local parnaibana em quase todos os seus aspectos. Em razão desse distanciamento, os temas tratados recortam, em especial, as dimensões mais arcaicas e contraditórias da vida local, evidentemente em leitura cujo foco é o da vanguarda sociopolítica tal qual ela se expressava no país e mesmo fora dele.
Não é intenção deste estudo tratar dos projetos sociais, políticos e culturais do  Inovação conforme vistos e sugeridos pelos redatores e colaboradores do jornal, desde que o livro de Reginaldo Ferreira da Costa já recupera essa história com o sentimento e a vivência de fundador, em memória cuja feição apaixonada ainda guarda o calor das lutas e das emoções da juventude, em boa medida dedicada à causa do Movimento Social e Cultural Inovação (MSCI). O que é necessário realçar é justamente que esse conjunto completo e rico de 75 exemplares do periódico – vindo a público entre 1977 e 1992 – ilumina de um modo muito especial a trajetória e as várias direções da experiência política parnaibana, piauiense e brasileira, as características e as agruras da administração local, os limites diversos da privação humana nas comunidades urbanas e rurais do município, a expansão e a natureza do movimento popular e comunitário que então se institui, o despertar das discussões em torno da questão ecológica, o lugar ambíguo e fundamental da presença e da atuação da Igreja, os entraves e as conquistas inegáveis de cidadania no Brasil a partir do final da década de 1970, os sonhos alimentados no movimento  “diretas já”, a esperança e a desilusão com a chamada Nova República, além do enfoque já conferido às minorias – índios, leprosos, camponeses sem terra, prostitutas, e outros sem voz da história. Destaque também para as entrevistas, muitas delas surpreendentes e primorosas, e igualmente para a produção literária, sobretudo a poética.
É interessante observar, ao longo da década da existência do jornal, a construção paulatina de um projeto político, social e cultural coeso, visando, às vezes, “a marretadas”, interferir e, no limite, superar as condições de existência então postas e transformar radicalmente a sociedade, no sentido proposto pelo grupo. Projeto consistente e, em boa medida, utópico, configurando para os seus autores, a condição, já identificada no passado para algumas gerações de pensadores, de “mosqueteiros intelectuais” . Construtores de sonhos, terminaram por arquitetar, para os leitores do hoje e do amanhã, uma realidade que, vista do agora, antecipa cursos e percursos que só o tempo pôde evidenciar com clareza e precisão. E, como é interessante e desalentador perceber que aquela Parnaíba, tanto no seu formato político quanto na sua miséria social era só um fragmento exemplar do que é o Piauí hoje – conduzido em seus altos escalões pelos mesmos personagens já tão conhecidos e da convivência do pequeno grupo que fazia o Inovação! Porque, se há um aspecto de notável atualidade na vivência dos piauienses, muitos anos depois do fim do pequeno jornal, é a continuidade indiscutível da dominação das velhas estruturas oligárquicas parnaibanas.
Entretanto, não é esse quadro de misérias que pretendo realçar e, antes, o conjunto extraordinário de informações que permite deslindar parcialmente a teatralização exuberante dos poucos personagens que compõem a cena política do Estado do Piauí nas últimas quatro décadas. Se os personagens locais e suas práticas políticas remetem a um domínio quase inerte de mentalidades consolidadas no longo tempo da história, a fluidez e a velocidade são as marcas dos multifacetados arranjos da política nacional nesses anos tão intensos da vida brasileira, com a inserção inquietante e nova das sugestões, demandas e imposições das massas populares – esse novo sujeito insurgente e desconfortável – que buscava seu espaço político e um novo lugar social. É desses espaços que se expandem, a duras penas e de forma a tornar cada vez mais visíveis as presenças de novos atores, que trata essencialmente o pequeno jornal em apreço. O diapasão da política brasileira, em tudo que ela então apresenta de novo e de rebelde ao instituído, é a matéria-prima da informação passível de ser localizada e analisada pelos leitores e estudiosos do Inovação.
De maneira apenas exemplificativa, é possível acompanhar pelo jornal, nos momentos finais da década de 1970, a crítica que se insinua aos grilhões da dominação política pré-abertura, muitas vezes matizada e protegida pelos artifícios poderosos da linguagem e que deságua nas  lentas, mas perceptíveis, mudanças rumo à liberdade de expressão. A despeito das dores ditas e vividas, é inegável, no próprio percurso do periódico, observando o conjunto de ações e relações sociais ampliadas que acontecem em torno dele, o ocupar de brechas que insinuam a mudança. A documentação desse rico momento da história brasileira permite rememorar, dentre outros aspectos, a feição bipartidária da década de 1970 e todo o movimento de conquista que adentra a década de 1980, no sentido do pluripartidarismo, do nascimento e consolidação das agremiações partidárias que ainda se impõem como força nos anos atuais. Destaque para os primeiros momentos do Partido dos Trabalhadores (PT) – no ABC e no Piauí, do Partido Popular (PP) e de sua fusão com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), do Partido Democrático Trabalhista (PDT), na época já chamado de PDT de Brizola, do Partido Democrático Social (PDS), visto como continuidade das Arenas I e II, expressões do conservadorismo no registro dos jornalistas-estudantes do Inovação.
A vida política brasileira é de uma inegável intensidade entre 1978 e 1985, enquanto 1986 já registra os ganhos das lutas intensas e dos arranjos do período aludido. Se, nos anos anteriores, a marca mais visível da ebulição social e política é talvez a criação e a consolidação das agremiações partidárias e a assunção continuada de suas lideranças – que permanecem - os meados da década de 1980 trazem a tensão catalisadora do movimento constituinte, filho desejado e promessa de catarse das frustrações advindas do “diretas já”, e efeito das imediatas decepções com a denominada Nova República, sob a tutela de José Sarney.
O jornal Inovação, nascido em dezembro de 1977, registra, participa e sobretudo permite acompanhar, nos momentos críticos iniciais, todo esse conjunto de transformações, às vezes subterrâneas, no quadro político brasileiro conforme foi se instituindo no pós-64. Assim, o sugestivo ano de 1977 vai retratado em suas ocorrências mais significativas: o Presidente Ernesto Geisel lança o seu Pacote de Abril; o Ato Complementar 104 proíbe as lideranças partidárias de se expressarem no rádio e na televisão; o Ministro Sílvio Frota, do Exército, é exonerado; deputados do MDB são cassados pelo AI-5; Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro e cerca de 10.000 brasileiros são considerados politicamente indesejáveis, e boa parcela deles está exilada em diversos países europeus e americanos. Na contramão dessa organização militar, frações do corpo político, da sociedade civil e da Igreja constroem, e com extraordinária habilidade, as mudanças que já advirão, em parte, no governo subseqüente de João Batista Figueiredo. É o período heróico do MDB e da atuação exaustiva de suas lideranças regionais e nacionais. Sobem as estrelas de Ulisses Guimarães e de Paulo Brossard, Tancredo Neves afirma-se como articulador político, enquanto o senador piauiense Petrônio Portella, da Arena, já personagem nacional, alinha alguns dos pontos na costura da transição “gradual e lenta” que se insinua. As bandeiras então desfraldadas, mesmo que timidamente, e que agregam representantes da Igreja, estudantes, algumas lideranças políticas do MDB e a resistência civil exilada são as dos direitos à liberdade de expressão e à liberdade individual de ir e vir, da volta do pluripartidarismo, do retorno das práticas democráticas, enfim, do vigor do estado de direito.
É curioso observar que o jornal e o movimento nascem justamente como componente e sob os auspícios do MDB jovem  de Parnaíba e seus primeiros números respondem perfeitamente a essa vinculação política. A batalha proposta tinha um lugar de origem muito definido. Ao longo dos números, essa vinculação se esvai, e o liame institucional com a Prefeitura de Parnaíba, administrada pelo MDB, transforma-se em crítica permanente até o final da gestão do Prefeito João Batista Ferreira da Silva.
As informações acima aparecem menos com a feição de rememorar e reescrever a página vívida e intensa da história política brasileira nesses tempos de abertura e mais para definir os contornos e as ricas possibilidades informativas do jornal em estudo. Em paralelo à riqueza e à variedade de sugestões nesse campo da história política, percorre-se também todo um emaranhado de informações acerca da situação político-partidária estadual, evidentemente, vista a partir daqueles interesses parnaibanos. Destaques especiais são conferidos às vicissitudes da  administração de Batista Silva, aos principais projetos tidos como capazes de promover a recuperação econômica do município, à situação particular da vida dos pobres nos povoados e nos bairros populares da cidade. É notável a participação dos poetas e a freqüência das matérias literárias.
São perceptíveis a permanência e a solidez de alguns temas, nos dez anos de circulação ininterrupta do periódico – política partidária, projetos sociopolíticos para transformar o país, sindicalismo, movimentos sociais e comunitários, retratos do cotidiano das populações pobres rurais e urbanas. Ao longo do tempo, alguns interesses, como os de natureza ecológica e o realce ao lugar das minorias foram ganhando espaço, ao lado das entrevistas, que se consolidaram e que constituem um conjunto informativo de riqueza ímpar.
A partir mesmo de seus primeiros números, o Inovação anuncia sua máxima concepção sociopolítica: política é cultura. E é para esta direção, educativa e interventiva por excelência, que o conjunto do jornal se dirige e é por ela que ele se pauta. Até porque, visto como conjunto, verifica-se a extraordinária coerência do periódico e sua fidelidade às primeiras e ainda pouco elaboradas posições. Ao romper com o governo municipal, o jornal encontra o seu caminho, de que não mais se afastará até os últimos números.
Os anos de 1978 e 1979 podem ser tomados como exemplares para a análise dos conteúdos preferenciais do jornal e como indicativos de opção sociopolítica do grupo, que castiga os costumes principalmente a partir de três focos: o do conjunto de transformações políticas da época; o da expressão poética, fortemente crítica e social; e, através de intensa e continuada focalização dos problemas urbanos e rurais de Parnaíba e de sua administração municipal.
O viés conjuntura política – local, estadual, nacional, internacional – esclarece da forma mais meridiana o lugar da fala dos responsáveis pelo jornal, ao tempo em que ilumina também o cenário ampliado das mutações por que passa o Brasil no seu enraizamento ocidental. O quadro brasileiro é de uma riqueza dificilmente perceptível nos anos anteriores, quando a sinalização das falas, dos discursos e das práticas era a da disciplinarização imposta pelos governos militares, cuja exacerbação de ânimos e de recursos compressores pode ser evidenciada no governo Ernesto Geisel (1974-1979), de extraordinária força da censura sobre os meios de comunicação – rádio, TV, jornais, música, peças teatrais, artes em geral – sem dúvida grande momento de limitação à expressão das subjetividades. Entretanto, 1978 já é também um marco de inflexão e um ano em que as falas públicas, institucionais e dos movimentos sociais, em incipiente processo de organização, começam a ganhar corpo. Impõem-se, aliados às insurgentes práticas sociais, as novas e cristalinas linguagens reivindicatórias, que suplantam o domínio das metáforas advindas das décadas precedentes. As palavras-símbolo desse momento crucial da história do Brasil são “distensão lenta e gradual”, “anistia ampla, geral e irrestrita”, e que, evidentemente, já fazem parte do repertório do futuro presidente João Batista Figueiredo. Os significados dessas mudanças já são compreendidos nesses signos verbais. Ivan Lins, entrevistado pelo jornal, naquele ano, em Teresina, afirmava ser importantíssimo o uso das palavras, que as palavras eram fundamentais. Referindo-se a 1968, considerava os limites então impostos à linguagem e que, por conta da censura, metáforas e hermetismos a dominavam de modo que ninguém entendia nada. Entretanto, 1978 estava muito longe de ser um mar de rosas. Em que pesem as reformas do senador Petrônio Portella, as promessas do candidato João Batista Figueiredo e algum grau de liberdade na imprensa, os propugnadores das mudanças políticas eram tidos como comunistas e subversivos, e o MDB  considerado o grande guarda-chuva a abrigar e a dar vez a esse coro de descontentes. Insinuava-se então a necessidade do pluripartidarismo, pois tanto Arena quanto MDB eram agregados de interesses díspares e posições contraditórios.
A cena política de 1979 aprofunda as contradições latentes dos anos anteriores e define os novos rumos da política nacional – cuja centralidade é a abertura, com todo um leque de desdobramentos que se prolongarão nos anos seguintes, até talvez fechar-se o ciclo da transição por volta de 1985-1986. Eleito João Batista Figueiredo, a luta do MDB, presidido por Ulisses Guimarães, tem como metas a Constituição, o pluripartidarismo, a liberdade sindical, a legalidade, a anistia, a reconquista dos direitos individuais, evidentemente que o MDB catalisando as forças da resistência nacional no período. O ano é intenso em conversas,  entendimentos e negociações e figuras centrais nesses esforços foram, sem dúvida, Petrônio Portella, Aureliano Chaves, na condição de vice-presidente, Ulisses Guimarães e Tancredo Neves, cujos talentos diplomáticos se exercitaram incessantemente. A senha para a redemocratização do país e para a abertura de um diálogo negociado já havia sido colocada por Figueiredo na retumbante promessa de fazer do país uma democracia.
Se até 1979, o jogo político estava marcado pela atuação de apenas dois partidos – MDB e Arena – sem embargo das divisões internas de cada agremiação, o ano seguinte já é de extraordinária ebulição e de vigor do pluripartidarismo. No segundo semestre, o cenário político já conta com partidos de diferentes colorações ideológicas, com espectros ora mais à direita, ora mais à esquerda e que correspondem a toda uma fragmentação dos interesses nacionais. Os agrupamentos agora ocorrem em torno do PDS, do PP, do PMDB, do PDT e do PT.
Nesse período, os temas do Inovação eram a anistia, a liberdade de imprensa, a constituinte, a redemocratização do país, o fracionamento interno dos partidos políticos, os direitos humanos, os impasses da política partidária nacional. Ao desfraldar a bandeira da liberdade em suas várias expressões, enunciava a insatisfação com os representantes políticos locais. Já estavam também em cena os problemas que viriam a se agravar nos anos subseqüentes: a inflação, o desemprego, a dependência ao Fundo Monetário Internacional (FMI), as soluções através dos “pacotes” econômicos. As grandes questões políticas apontavam para as eleições diretas de governadores, já com vistas às eleições para a Presidência da República, movimento que será a nota dos primeiros anos da década de 1980, até culminar com o momento síntese do “diretas já” e a construção do mito de Tancredo Neves.
Ao tempo em que essas tramas da cultura política nacional se articulam e indicam a modificação no cenário das relações de poder, no âmbito do Estado do Piauí consolidam-se os representantes da cidade de Parnaíba como figuras de destaque na administração pública.
Evidentemente, nem só de política vive o jornal. A literatura se fez presente desde os números iniciais, destacando-se especialmente a poesia com feição de denúncia social. O registro da miséria humana, em todas as suas gradações, atravessa as inumeráveis contribuições de Elmar Carvalho, Alcenor Candeira, Paulo Couto, Ednólia Fontenele, Wilton Porto e muitos outros. Essa vontade de expor as entranhas dos poderes faz com que essa colaboração literária seja, logo nas décadas de 1970 e 1980, levada a um público mais amplo, por meio de publicações de obras coletivas, como Poemágico  e Poemarít(i)mos,  que agregam alguns daqueles poetas citados e outros que orbitavam em torno do movimento jovem parnaibano do período. Muito dessa poesia ainda guarda extraordinária atualidade estética e política. É na linguagem literária que ocorre a principal síntese da proposta centro do jornal e se atualiza o seu pressuposto – política é cultura. E a cultura, no grupo e no jornal, é concebida como uma teia de relações sociais em que os costumes, as posturas éticas e mesmo as escolhas das formas de lazer sinalizam para significados políticos.
Ao longo de dez anos ininterruptos, Parnaíba é descrita, perscrutada, mostrada e lamentada em todos os seus quadrantes, sobretudo nos seus aspectos de miséria e privação. As comunidades urbanas e rurais são expostas em suas condições de vida e sobrevivência: pescadores, agricultores, vazenteiros, artesãos, comerciários, modestos funcionários públicos, feirantes, canoeiros, estivadores, estudantes, mulheres pobres e prostitutas, desfilam em seus dramas e em seus esforços cotidianos de inventar e reinventar a sobrevivência. Os principais logradouros urbanos são objeto de constante atenção e de solicitação de interferência por parte da administração municipal, com especial realce para os problemas de saneamento e de limpeza pública. As comunidades rurais são visitadas e inquiridas através de questionários que buscam recolher informações sobre os modos de viver, de enfrentar as dificuldades e registrar as expressões dos desejos dos seus habitantes.
O olhar inquieto e insatisfeito dos articulistas do Inovação sobre Parnaíba desvenda todo um universo de outras questões cruciais da cidade. Dentre elas, destacam-se as preocupações com o desenvolvimento urbano, acompanhadas de propostas de solução; a natureza da vida política local, amplamente criticada em seu modelo clientelista, assistencialista e nepotista, com seus personagens que se perpetuam no poder local; as limitações da vida cultural e o pequeno espectro de possibilidades de lazer para os jovens; a vida estudantil e os prementes e visíveis problemas da educação no município. A ecologia, que emerge enquanto tema, já é abordada em diversas facetas.
O conjunto do jornal, por consolidar informações contínuas para uma década, permite acompanhar as discussões, no governo e fora dele, acerca das possibilidades e das propostas de ação pública de intervenção sobre a vida econômica da cidade. As questões e as soluções parnaibanas giram em torno do porto de Luís Correia – de proposição secular -, da instalação e do fortalecimento de um distrito industrial, dos incentivos ao turismo e ao artesanato. Entretanto, nesses aspectos, a contabilidade não é favorável à cidade e, das inumeráveis matérias que se reportam de forma direta ou indireta à situação econômica de Parnaíba, ressumbram, de um lado, o canto melancólico de uma volta ao passado mistificado e glorioso da velha Parnaíba do charque, da navegação fluvial e da exportação dos extrativos e, de outro, o cenário desesperançado da terra do “já teve”, de passos lentíssimos para um futuro mais promissor e objeto do desamor e da incúria de seus representantes políticos e dos administradores do momento. Não se trata, pois, de um quadro lisongeiro e alentador. Alentador só o sonho de mudanças que perpassa a atitude dos jovens articulistas do Inovação.
A análise da política e da administração no âmbito local constituem o mote para avaliar as misérias e mazelas a que estavam (e estão) submetidas especialmente as populações pobres, objeto constante e do maior interesse no conjunto do periódico, conforme já foi realçado. Um olhar de quase duas décadas após ainda se depara com características muito próximas dos quadros delineados, com a continuidade dos modelos de gestão e a permanência, por anos a fio, dos mesmos personagens políticos, agora com maior expressão estadual e nacional, mas configurando as mesmas práticas e os mesmos objetivos do passado.
Jornal de jovens, voltado também para os leitores com esse perfil, o Inovação traz em muitos de seus números preocupações com a vida estudantil em todos os seus níveis, refletindo sobre o sentido político das práticas educativas, a importância da participação nas entidades representativas de estudantes e professores, enunciando as pautas dessas instituições e as modificações que vão ocorrendo em seus interesses, à medida que os processos de abertura política e de reconquista dos espaços democráticos vão possibilitando a emergência de novas reivindicações coletivas.
Nessa mesma direção, nos primeiros anos de circulação do jornal abre-se coluna para notícias sobre a organização e ação sindical em Parnaíba e no Piauí, num tempo em que, discutidas no cenário nacional, essas temáticas são repercutidas e comentadas. É a partir da vertente sindical, que aparece o metalúrgico Lula pela primeira vez em suas folhas, em matéria que precede as relacionadas à visita do líder sindical do ABC a Parnaíba, no final de 1980, já na condição de fundador do PT, articulando a criação de diretórios do partido no Piauí. Este já é o momento do pluripartidarismo, embrião da complexa discussão da ordem política que marcará a primeira metade dos anos 1980.
A sensibilidade no perscrutar a vida local em toda a sua variedade de manifestações conduz ao tratamento, às vezes irreverente e criativo, das chamadas questões ecológicas, hoje ambientais. Assim, é notável a graça com que Sólima Genuína faz o quadro da conversa casual entre o Ganso e a Garça, duas figuras de louça que habitam a Praça da Graça – símbolo da cidade e ícone do jornal – e desse ângulo privilegiado observam a vida urbana e, especialmente, a relação do homem com a natureza. A degradação dos rios, a poluição ambiental e suas seqüelas e o lixo urbano são objetos de constante preocupação daqueles sensíveis “animais”, em sua função educativa.
O Brasil do final dos anos 1970 até os meados da década de 1980, quando o jornal Inovação tem sua circulação mais regular e intensa, não experimenta apenas perceptíveis alargamentos das molduras da ação política, sindical, associativa e partidária. A Igreja brasileira, seguindo tendência mundial e em sintonia com as novas posturas do episcopado latino-americano, reflete e reposiciona-se face às prementes questões sociais e, sobretudo, traz para o proscênio os despossuídos de todo o mundo. A partir do Inovação é possivel acompanhar algo desse debate e do enfrentamento às resistências do Estado, que administra gradativamente a liberdade de expressão de todos e da própria Igreja, cuja clara cisão  deixa visualizarem-se os novos teólogos da libertação e seus simpatizantes. Nesse período, a forte politização e a ação social de algumas frações da Igreja Católica traziam para o embate político parcela do episcopado brasileiro, a dita  ala progressista, à frente bispos como os de Fortaleza (D. Aloísio Lorscheider) e de São Paulo (D. Paulo Evaristo Arns) e o ideólogo de Teologia de Libertação, frei Leonardo Boff. Nesse contexto, também se salienta a atuação de instituições como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A Igreja já institucionalizara sua opção preferencial pelos pobres.
A análise das cartas publicadas no jornal e, sobretudo, o conjunto da correspondência recebida é de molde a evidenciar a amplitude geográfica e social das relações estabelecidas pelo grupo. É o lugar também em que se configura a identidade de segmentos da sociedade brasileira que se insurgem contra o regime militar e que evidencia a generalidade das situações vividas por esses segmentos.

Por fim, quero realçar que deixei à responsabilidade do autor do livro expressar os sonhos, as emoções, as dificuldades e as formas críticas de solução encontradas pelo grupo do Movimento Social e Cultural Inovação para fazer viver e prolongar o tempo da interferência social e política do pequeno e corajoso jornal. É desse universo que o livro fala.    

Nenhum comentário:

Postar um comentário