quinta-feira, 21 de abril de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo II

Foto meramente ilustrativa

HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos foram sendo escritos.

Capítulo II

O DONO DO CÉU

Elmar Carvalho

Marcos Azevedo cursava o terceiro ano ginasial no Liceu Eborense. Tinha certo pavor à matemática, e estudava apenas o suficiente para passar de ano. Entretanto, era um dos primeiros alunos em História, Geografia, Português, Literatura e outras disciplinas da área de Humanidades.

Ele e mais cinco colegas do Liceu idealizaram um jornal mural, que tinha colunas com notícias, informações sociais, artigos, crônicas, contos e poemas. Era um de seus principais colaboradores, sobretudo com matérias literárias. Eventualmente divulgava seus textos através de fotocópias e mimeógrafo. O Arauto, assim se chamava o jornal estudantil, dispunha de um talentoso desenhista e pintor, Mário Cunha, que lhe fazia as caricaturas, charges e ilustrações. Ele e Marcos eram grandes amigos.  

Por intermédio de seu pai, vez ou outra, publicava contos e crônicas no jornal tipográfico A Batalha, o único de Évora, na época. Escrevia seus textos à mão, com um emaranhado de correções, cortes e acréscimos, e depois os datilografava na velha Remington de seu pai. Por estudar à tarde, reservava a manhã para ler livros literários (muitos deles tomados por empréstimo de particulares e da biblioteca pública), bem como estudar e escrever.

Por volta das nove horas, saiu com o objetivo de se encontrar com seus amigos no Liceu, e trocarem as velhas matérias por novas, para que o jornal mural não perdesse a grande receptividade que tinha entre os alunos e professores do colégio e mesmo entre outras pessoas da cidade.

Ao passar pela Vila Inglesa, que tinha um grande terreno descampado na frente, viu uma linda garota loura, muito alva, de pele muito fina e sedosa, de olhos azuis. Ouvira falar que ela era uma neta do alto comerciante James Cavalcante Taylor, proprietário da Casa Britânica, a mais poderosa empresa do estado, com filiais em várias cidades do Brasil.

Marcos olhou para a jovem e lhe admirou as curvas e a beleza longilínea e esbelta; seus cabelos longos e dourados faiscavam à luz do sol, levemente agitados pela brisa que vinha do grande lago Galileia, situado perto. O rapaz, além de sua discreta timidez, ou por isso mesmo, cultivava certo retraimento orgulhoso, nos primeiros contatos. Mesmo assim olhou novamente para a ninfa, que lhe observava, a segurar sua nova e cara bicicleta, cheia de enfeites cromados e reluzentes. Seguiu adiante, sem apressar ou diminuir a velocidade.

Marcos não estranhou o olhar da moça, afinal era considerado um belo tipo de rapaz, moreno claro, de boa estatura e olhos esverdeados.

– Ei! Menino, venha cá – ouviu a garota chamá-lo, com uma inflexão que lhe pareceu levemente imperiosa. Foi até onde ela estava, com as suas roupas caras e a sua rica bicicleta. Notou-lhe certo desdém no semblante e o olhar incisivo de quem se considerava acima dos outros.

– Você sabe de quem é esta Vila? É do meu avô.

E vendo estampada a perplexidade nos olhos do rapaz, continuou de forma fria e com certa arrogância:

– Você sabe de quem é este terreno onde nós estamos e que vai até acolá?... – e estendeu o indicador, como se quisesse abarcar o mundo todo. É do meu avô.

Marcos ficou decepcionado com essa moça tão linda, mas tão tola em sua ridícula presunção. Mais do que decepcionado ficou aborrecido, e o sangue lhe subiu à cabeça. Ele não sabia, algumas vezes, se conter, especialmente quando achava que o seu amor próprio havia sido golpeado; e se tornava impulsivo, sem medir as consequências de seus atos ou palavras. Por isso, fixando nos olhos a bela ninfa dourada, de rosto angelical, disse com toda sua altivez e desprezo:

– E, por acaso, seu avô é também o dono deste céu que nos cobre e deste ar que respiramos?


Virou-lhe as costas, e sequer ouviu o seu arremedo de resposta. Seguiu firme, com os versos do poeta Carlos Pena Filho a lhe borbulharem na cabeça e na alma: “Deu-lhe o frio esquecimento. E mais não podia dar.” Contudo, não a esqueceu inteiramente, e aquela beleza de cachopa presumida e fútil ainda o perseguiria por muitos anos.   

7 comentários:

  1. Marcos Azevedo está impossível, Poeta. E pelo visto, não lhe dá trégua também. Pensei ter acordado cedo nesse começo de feriado, mas vejo que o protagonista o fez sair das cobertas mais cedo ainda. Menos mal. Somente assim pude encontrar o novo capítulo ainda fresquinho, já disponível na tela do meu Acer!

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  2. Esse sujeito ainda vai me dar muitas dores de cabeça, pelo visto.
    Haja saco e força de vontade para escrever novos capítulos... Mas hei de tê-los!
    Abraço,
    Elmar

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  3. Caro Elmar, li o segundo capítulo, "O dono do Céu" da mesma forma breve. Acompanhei os passos do Marco Azevedo e a rápida troca de olhares com a bela loura de feições inglesas.
    A narrativa vai-se desvelando, pois, com novas situações visando a compor os seus traços gerais, ainda indecisos e tateantes, mas numa ação progressiva a sinalizar características físicos e comportamentais dos personagens, assim como dando os primeiros voos descritivos e espáçio-temporais sob a batuta do narrador, por enquanto, onisciente tecendo sua forma narrativa adequada ao conjunto do texto em construção.
    Vou acompanhar,agora, os capítulos, apenas com a minha leitura, sem mais comentários. Deixarei para o final a análise e o julgamento.
    Que venham os outros capítulos e os meus desejos de um grande êxito em termos ficcionais.
    Um abraço do

    Cunha e Silva Filho

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    1. Errata ao meu comentário acima:
      Linha 8, onde se escreveu "... espáçio-temporais...", escreva-se: "...espácio-temporais..."

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  4. Caro Cunha,
    Aos poucos, assim espero, irei desvelando minhas poucas personagens, mas sem ter a pretensão e o desejo de revelar "tudo", até porque, mesmo na vida real, nunca conhecemos totalmente uma pessoa, mesmo as que convivem conosco há muitos anos.
    Por outro lado, junto com as histórias das personagens principais, irei contando outras histórias da cidade de Évora e de outras pessoas, como está a indicar o próprio título do livro.
    Cabe ao leitor, com a sua inteligência, experiência de vida e imaginação, interpretar as entrelinhas e os silêncios, e complementar as lacunas.
    Muitas vezes, a meu ver, uma obra de arte deve mais sugerir, do que dizer de forma explícita.
    Portanto, se faz necessária sempre a cumplicidade do leitor.
    Espero também fazer uso da concisão, para não cansar e maçar o apressado leitor dos dias internéticos de hoje.

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  5. Acima, quando me referi a Évora, evidentemente estava me referindo à minha cidade fictícia de igual nome, situada no Nordeste do Brasil.

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  6. Caro Elmar;

    Sua mensagem à minha tem um valor inestimável. V., sem se valer de protocolos e trâmites teóricos, afirma alguns pontos fundamentais da esfera da composição ficcional.
    O primeiro, o que mais me chamou a atenção foi ao dizer que mais vale "sugerir" do que explicitar, o que é um traço significativo de outra gênero literário: a poesia, sobretudo a poesia simbolista.
    Um segundo é quanto ao que se refere ao "silêncio' na estrutura ficcional, seja conto, novela, romance. drama, teatro (na forma escrita).
    Uma notável professora que tive de psicologia educacional me ensinou que o silêncio é também "comunicação". Alegava a estudiosa que não é possível ficar em silêncio sem se comunicar. Realmente, uma grande sacada de minha ex-professora.
    O terceiro ponto reside na sua afirmação de que - e isso é por demais digno de nota - na vida não chegamos mesmo a compreender as pessoas mais íntimas que nos rodeiam há anos.Eu diria mais, me lembro de uma imagem que tenho sempre presente: a da multidão que passa por nós. Vemos uma pessoa e talvez seja aquela a última vez que a vimos na vida. Na ficção, mutatis mutandi, ´se dá o mesmo É preciso fazer-se o recorte regidos pela seguinte série de elementos constitutivos na ficção: personagem, enredo, espaço, tempo e visão do narrador/autor e tratamento específico e basilar da linguagem literária à qual tudo se resume e se transforma em objeto estético.
    Com o avanço dos estudos teórico-críticos, cada vez mais se compreende o quanto o leitor é relevante na interpretação de uma obra literária. E aí podemos citar correntes do pensamento teórico como a "estética da recepção", de Hans Robert Jauss, e outras ramificações da crítica fenomenológica de Edmund Hussell, como a "reader-response criticism", de de Stanley Fish e Wolfgang Izer, ou de outros teóricos com George Poulet e J. Hills Miller.Tais abordagens têm o leitor como um dos pilares na compreensão e exegese da obra literária.
    Essa brevíssima digressão se enquadra perfeitamente no que V. entende por narrativa.
    Um último aspecto que inferi de sua mensagem diz respeito à concisão que é muito bem-vinda em tempos rápidos e revolucionária da era digital.
    Julgo que o diálogo franco com um ficcionista, na minha condição de ensaísta e crítico, sempre foi salutar na vida literária sem, no entanto, ser parcial, submisso ou hipócrita..
    Um abraço do

    Cunha e Silva Filho

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