quarta-feira, 11 de maio de 2016

A Bela dos Diários


A Bela dos Diários

 Dílson  Lages (*)

O professor de Teoria Literária Salvatore D'Onofrio, em Teoria do Texto - Prolegômenos e Teoria da Narrativa, evidencia que "os personagens constituem os suportes vivos da ação e os veículos das ideias que povoam as narrativas". Por essa razão, segundo o pesquisador, o estudo dos personagens deveria ocorrer simultaneamente ao das sequências narrativas, porque "a caracterização dos personagens ilumina o sentido da história e vice-versa".

A assertiva de D'Onofrio serve para dialogar com os temas e o estilo de "A Bela dos Diários", reunião de treze contos de Austregésilo Brito, nome de obra já consolidada  na literatura piauiense, por meio de livros de contos como Fetiche e Algodões. Austré Brito centra-se em praticamente todos os contos - como uma das estratégias maiores da interlocução com os leitores - no superdimensionamento dos personagens e das ambientações em que eles se inserem. Esse, alias, é sem dúvidas o ponto de partida da gênese de suas criações, ponto em torno do qual organiza estrutural e semanticamente suas narrativas. Ao fazê-lo, sua perspicácia e estilo selecionam exclusivamente detalhes-ações que se inter-relacionam, e paradoxalmente tornam a escritura mais exata, mais fluente.

Enfatizando esses elementos, consegue o escritor provocar os leitores, ao transferir características do ambiente para os personagens e vice-versa, em processo de humanização da paisagem, por meio do qual ganham impulso as representações mentais e as associações que asseguram o deslanchar da leitura, reiteradamente, em passagens como: "O pai na bodega, o dia todo. Caminhava pra lá e pra cá, do balcão ao armazém. De passagem pela cozinha, olhava de esguelha para Elzzira. Ela correspondia. arregaçava o vestido colado ao corpo, mostrava as coxas (O primeiro amor, p.41). Quase um Albergue. Fachada comum, porta larga ao centro separava os janelões. Corredor longo da entrada à sala de jantar, de onde seguia outro corredor menor, estreito, até a cozinha ampla e semiaberta(...). No hall, o banheiro e o dormitório de dona Judite (Casa de pensão, p.57)”.

Assim é que, respectivamente, a angústia pela consumação do encontro amoroso, acentuado pela distância dos lugares sociais de ambos (o quitandeiro e Elzzira) naquele momento, funde-se ao espaço, a partir da ansiedade gerada pelos movimentos do quitandeiro e da própria Elzzira. Assim é que o desejo de controle que almejava ou pensava em ter dona Judite sobre sua pensão se apresenta na associação entre a disposição da arquitetura do recinto em que reside e o perfil do personagem em construção, mais evidente à proporção que a narrativa avança até apontar a avareza peculiar à proprietária da pensão.

Mantendo a linha de outras produções, divide-se o escritor entre dois grandes eixos. Divide-se entre o mergulho nas insatisfações e contradições da materialidade do amor, em textos de acentuado apelo erótico, e o desnudamento de dramas sociais ou das situações pitorescas das pequenas comunidades e sua gente; com a revelação, em plano secundário, de traços característicos do ethos da paisagem social dos lugarejos.

Na primeira parte de A bela dos Diários, os leitores se absorvem com narrativas cujo cerne é as contradições da paixão cega. Em algumas sequências, a ênfase com que o tema é tratado pode até chocá-los, dada a contundência do léxico ou a estilização da vulgaridade em que se revertem as cenas fundamentais dos núcleos narrativos. Personagens como Consuella, Jéssica e Úrsula – mesmo que focalizadas exclusivamente pelo olhar do desejo – e exaustivamente erotizadas, reduzidas à condição de objeto do amor – resumem o  mistério e encantamento da sedução.

Nesse sentido, recriam os narradores a aura de perplexidade própria do jogo erótico e impulsionam as carências que alimentam o prazer. Assim, deparam-se os leitores com personagens masculinos hipnotizados, à procura de explicações que não encontram ou à busca de se libertar da paixão. Confirma-se, por meio desses personagens, o que explica Maria Rita Kehl, em estudo sobre o olhar da sedução: “O olhar seduzido é perplexo. Procura recobrar o domínio de si mesmo”.

Na segunda parte do livro, os leitores encontrarão episódios pitorescos, que resgatam a temática dos contos populares, sem, contudo, estereotipar a linguagem ou modificar o modo de contar próprio de Austré. Nesses contos, a paisagem e os personagens, humanizados pela imaginação pessoal dos leitores, dão margem a antigos costumes de pequenos lugarejos, desemborcando, sempre, em inesperada situação de humor, ou, fugindo à regra dos temas dessa parte, em denúncia social - caso específico de “O caos”, no qual o drama de se locomover pelo tráfego de Teresina-PI é tratado de maneira inusitada.

“Em literatura, todo conteúdo está associado a um colorido emocional, que faz parte da informação transmitida pela obra”, escreve Vicente Jouve, enfatizando que “os textos quase sempre exemplificam emoções (a dor, a insatisfação, a tristeza), por meio de propriedades formais que as exprimem metaforicamente”. Em A Bela dos Diários, essas emoções possuem lugar certo: personagens e ambientes que dão corpo e substância à linguagem. O leitor é capturado pelos dramas, carências e desejos de cada personagem ou sorri de situações que a literatura, como a vida, revela-nos inesperadamente.

(*) Dílson Lages Monteiro é professor, diretor do Portal e Editora Entretextos e membro da Academia Piauiense de Letras (APL). E-mail: dilsonlages@uol.com.br    

Fonte: portal Entre-textos

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