domingo, 10 de julho de 2016

Seleta Piauiense - Clóvis Moura


Cidade matriz

Clóvis Moura (1925 – 2003)

Uma cidade do interior. Não apenas
geografia. Mas a família, o sangue e eventos.
Aí paramos um dia, no regresso.
Dali saímos um dia, para a posse
que não se realiza.

                Margeamos a vida. E a cidade triste,
decadente, persiste. Os parentes estão morrendo,
os defuntos repousam lado a lado,
os tatus perfuram o cemitério,
há cheias, invasões, o rio sobe,
chega ao muro dos despojamentos
e a cidade permanece.

                Decadente. Contudo ali temos raízes.
Dali saiu um poeta sorridente.
Morreu doido, contudo deslumbrado.
Morreu louco, nostálgico da serra.

Nos poros da cidade há casas mansas.
Numa nasceu o pai. Noutra morreu
o avô patriarca. Sempre estamos
em qualquer parte. Ali: uma criança
que chorou numa sala, teve cabra
mansa que vinha ao quarto com o seu úbere
cheio de leite para o aparecido.
Uma criança na cidade mansa
e o cemitério triste onde os anus
sujam as lápides. Uma cidade só.
Num mapa sujo. Num momento imundo.

                As moças não se casam.
Fazem crochê e doces. Salpicadas
de desejos definham. Vem o moço
de outra cidade. Namora e desilude.

                O rio sem piedade leva os primos
para as cidades grandes. E aparece
convite para o enlace em outra terra.
Espirais de suspiros. Depois, rezas
na igreja onde o padre ouve os pecados.

... As andorinhas sujam a hora sagrada.

                E a lua nova salpica de lobisomens as sombras das gameleiras.

(Extraído do livro Argila da Memória, 2ª edição – Edições Corisco)   

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