terça-feira, 30 de agosto de 2016

A Agonia do Parque Nacional Serra da Capivara


A Agonia do Parque Nacional Serra da Capivara

José Pedro Araújo
Escritor, cronista e romancista

Desde muitos anos temos acompanhado o caminhar agonizante do Parque Nacional da Serra da Capivara, localizado no semiárido piauiense. Originalmente criado em 1979 com uma área de 100.000 ha, o parque foi beneficiado com um acréscimo de mais 35.000 hectares, através da desapropriação de áreas contíguas a ele em cuja região foram identificados novos sítios arqueológicos. Entretanto, a gleba sob os cuidados do ICMBio é muito mais extensa, abrangendo um território de 414.000 hectares, após a criação de um Mosaico Ecológico pelo Ministério do Meio Ambiente, juntando em uma só formação os Parque Nacionais da Serra da Capivara, Serra das Confusões, e o Corredor Ecológico existente entre estes. 

O Parque Nacional Serra da Capivara está encravado nos municípios de João Costa, Coronel José Dias, S. Raimundo Nonato e Brejo do Piauí. Transformado pela UNESCO em Patrimônio Cultural da Humanidade em 1991, é uma das mais importantes unidades de conservação existentes no Brasil, tanto pela importância dos seus sítios arqueológicos como pelas descobertas ali realizadas.

Desde a sua criação o parque trava uma queda de braço com uma parte da população dos municípios em cujo território ele se acha localizado em razão, principalmente, da expropriação de muitas fazendas antigas, mas também pela extinção de alguns povoados que se encontravam na sua área de abrangência. E para piorar a situação, parte dessas famílias demoraram anos para receber o que lhe era devido, sendo que algumas até pouco tempo atrás ainda estavam a esperar pelo dinheiro da indenização. Cerca de cinco anos atrás tive a oportunidade de visitar a parte mais nova do parque, e vi muitas sedes de fazendas ainda de pé e em bom estado de conservação, cercadas por muitas fruteiras, como se aquelas famílias nunca tivessem saído dali, ou como se tivessem saído apenas momentaneamente. Eram estas as que estavam ainda no aguardo das indenizações que deveriam advir dos órgãos ambientais.
     
A propósito disso, ai por volta de 1997 o INCRA foi procurado pelo Superintendente do IBAMA para propor a aquisição de um imóvel nas imediações da cidade de São Raimundo Nonato com o objetivo de abrigar um número significativo de famílias expulsas do parque. Esses excluídos, após saírem de suas povoações originárias, haviam ido residir na periferia da cidade de São Raimundo, e passavam por dificuldades por não saberem desempenhar outra atividade que não a agrícola ou a criação de animais. Deparavam-se, além disto, com um problema comum nas cidades: o envolvimento dos filhos com tudo que há de ruim em um aglomerado urbano. O INCRA providenciou a desapropriação do imóvel denominado Lagoa do Padre, área de excelente qualidade para os padrões do semiárido, e assentou mais de 200 famílias lá. O Projeto de Assentamento está hoje bem estruturado, e é um dos aglomerados rurais mais populosos do município.

Entretanto, pelo tamanho da área de abrangência do parque, centenas de outras famílias foram também atingidas após a criação do parque, e obrigadas a retomar suas vidas longe do local em que já possuíam pequenas unidades agrícolas instaladas.

Em 2013 o INCRA voltou a atuar novamente na região, criando dois projetos de assentamento diferentes do modelo costumeiro, utilizando um formato mais adequado para a região: o de Projeto de Desenvolvimento Sustentável. Localizados nos municípios de Coronel do José Dias e São Raimundo Nonato, limítrofes ao parque da Serra da Capivara, esse novo tipo de assentamento estabelece limites para a sua exploração, obrigando os beneficiários a adotarem práticas agropecuárias de baixo impacto ambiental, e limitando até mesmo o número de animais que podem ser criados, entre tantos outros compromissos firmados. Participei dos dois trabalhos.

Em uma das vistorias realizadas no imóvel Pé da Serra, em coronel José Dias, tive que percorrer longo caminho até chegar a um de seus limites, entrando pelo município de Brejo do Piauí. Depois de longo tempo subindo uma serra, percorrendo trilha aberta por caçadores, nos deparamos com um local onde eram deixadas as motocicletas, única forma de se chegar até lá. O local recebia um sugestível nome: rodoviária. Era por este lado que os caçadores de animais silvestres costumavam adentrar ao Parque da Serra da Capivara para caçar. Esse é, portanto, um dos principais problemas enfrentados pela unidade de conservação: a caça predatória dos animais abrigados ali. Mas não o único.



Os outros problemas são as queimadas, provocadas ou não, e a falta de compromisso dos governos no repasse de recursos para a manutenção das atividades de fiscalização e pesquisa. As entidades que administram o parque, a Fundhan – Fundação do Homem Americano e o Instituo Chico Mendes – ICM Bio, vivem à mingua, padecendo horrores com a falta de dinheiro para as despesas mais urgentes. E este ano, veio a triste notícia: o parque fechou para visitações. Não poderíamos ouvir uma notícia pior do que esta. A que ponto chegou o descaso das nossas autoridades. O que parecia provável de acontecer, mas que teimávamos em não acreditar, finalmente acorreu. Chegamos ao fundo do poço. E olha que a Dra. Niéde Guidon já vinha clamando aos quatros cantos do planeta a respeito dessa possibilidade, alertando para os orçamentos apertados e insuficientes, e para a falta de sensibilidade dos nossos políticos.

Clamou no deserto, para ouvidos moucos. Logo ela, um nome de peso, cientista respeitada no mundo inteiro, com larga folha de serviços prestados desde a década de 60 quando deixou a universidade de São Paulo, a USP, para vir consumir a sua juventude nas quentes caatingas piauienses. Logo a cientista de força que parecia inesgotável, que enfrentou poderosos da região para ver funcionar uma das unidades de conservação mais respeitadas do país; que colocou a vida em risco inúmeras vezes, correndo risco de ser abatida pelos disparos de algum caçador raivoso, como de resto tem acontecido com os animais silvestres que defende.

Guidon não tem serviços prestados apenas com trabalhos de pesquisa científica. Em vez disso, foi buscar recursos no exterior, como já fazia por aqui mesmo, para montar um dos projetos sociais mais bonitos que se tem notícia por estas bandas. Construiu Centros de Educação Ambiental em diversos povoados nas circunvizinhanças do parque, excelentes construções também utilizadas para a educação formal da criançada da região. E como, na época, não existam boas acomodações para receber os turistas que vinham conhecer o parque, construiu um confortável hotel na cidade; erigiu e equipou o Museu do Homem Americano, e passou a trabalhar junto às autoridades na construção de um aeroporto de qualidade que pudesse receber voos procedentes do exterior. O que acaba de ocorrer.
Mas o trabalho de maior alcance social implantado por ela é o que realiza junto às comunidades pobres da região. A fábrica de cerâmica, por exemplo, acolhe e capacita jovens no mister, produzindo peças de altíssima qualidade, comercializada nas principais lojas de decoração instaladas até mesmo no sul do país. É todo esse legado que se acha hoje ameaçado de extinção. É o trabalho de uma vida que sofre terrivelmente com a insensibilidade das autoridades. E tudo isso em uma região carente de tudo.


Que os homens de mando abram os olhos e impeçam o cometimento dessa violência contra o que há de mais importante em toda a região sul do estado. Se até agora nada fizeram para viabilizar a implantação do Parque Nacional das Nascentes, que não permitam que este, o Serra da Capivara, que já está bem instalado, venha a fechar definitivamente.  

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