quinta-feira, 4 de agosto de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XV

Foto meramente ilustrativa

HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XV

Évora

Elmar Carvalho

“Tenho vagas recordações da Évora de minha infância mais remota. Suponho que algumas se confundem com outras posteriores, de modo que eu não saberia precisar o ano exato de sua origem. Talvez, literariamente, seja melhor assim, sem essa rigidez de relatório burocrático, bem demarcado no tempo.

Muito vivo ainda sinto o cheiro das ceras de carnaúba, amontoadas num grande depósito da Casa Machado e outros armazéns. Havia as pardas, escuras, de menor valor comercial, e a cera flor, mais clara, amarelada, de bem mais alta cotação. Recordo o cheiro acre das amêndoas de babaçu e tucum, que eram revendidas para Fortaleza, Recife e outros centros exportadores.

As calçadas desses armazéns eram lisas, impregnadas pelo pó que ia aos poucos se desprendendo dessas ceras, e eram alisadas pelo pisotear constante dos transeuntes, que vinham fazer suas compras ou exercer suas atividades laborais no centro comercial. Eram figuras emblemáticas os carregadores, de forte compleição, que carregavam grandes sacas desses produtos sobre a cabeça, protegida apenas por uma rodilha de pano, e os porcos d’água, que atuavam no porto improvisado do Paraguaçu, com os seus pequenos trapiches, toscos depósitos e acanhado guindaste.

Évora, nessa época, no início de sua decadência comercial, devia ter em torno de 45 mil habitantes. Na Rua Grande, cujo nome foi mudado para Presidente Juscelino Kubitschek, havia os sobrados mais antigos e os luxuosos chalés e palacetes de seu apogeu comercial, da época áurea do extrativismo, da industrialização do pó da carnaúba, da maniçoba, do jaborandi, da oiticica, do algodão e do óleo babaçu, além de outros produtos. Eram expostas, em algumas firmas, peles bovinas, ovinas e caprinas, assim como as de gato maracajá e de outros animais silvestres, enroladas ou espichadas por varas.

No centro histórico, no entorno do qual ficavam as principais casas comerciais, viam-se a igreja matriz, sob a invocação de São Gonçalo, santo português e, segundo se dizia, tocador de viola, alegre e festeiro, e a grande Praça Lucas Mendes Furtado, português, considerado o fundador da cidade, por haver ali instalado a Fazenda Évora e sua casa-grande, em cuja proximidade ergueu a igreja de São Gonçalo, ainda conservada quase sem alterações. Ao redor desses dois prédios, nasceu e floresceu a cidade.

O templo, segundo a lápide em seu frontispício, foi concluído em 1717. Sua frente era voltada para a praça, que até dez anos atrás fora um grande largo em terra nua, com pedras jacaré traçando passeios, alamedas, caramanchões e vielas, circundando árvores e contornando jardins geométricos, retangulares, quadrados ou formando círculos. Mesmo em sua simplicidade rústica, era um belo largo, talvez o mais belo do estado.

Em volta da praça da matriz, como também era conhecida a Praça Lucas Mendes Furtado, erguiam-se velhas casas solarengas, vetustos sobrados, antigos casarões em estilo colonial. Alguns desses prédios eram muito simples, quase rústicos, outros ostentavam certo luxo, como assoalhos de mosaico, paredes externas revestidas de azulejo, beirais, e portas e janelas em madeira de lei, lavradas com certa arte e requinte, que os adornava. Apesar da incúria administrava, a maioria era bem conservada.

Acerca de 70 metros da igreja ficava o Évora Clube, instalado em secular casarão colonial. Nele eram realizadas as festas da elite eborense. Ali bebiam e dançavam os poderosos empresários, políticos, os gerentes de grandes firmas e os servidores públicos graduados. Os jovens realizavam tertúlias dançantes nas melancólicas tardes de domingo, ao som de possante vitrola. Eram empolgados pelo iê-iê-iê e pelos embalos da jovem guarda, com suas estridentes guitarras, que irritavam os ouvidos e o gosto musical dos mais velhos.

A menos de 150 metros da matriz, localizava-se a Zona Planetária. Segundo a lenda, esse nome fora posto pelo seu proprietário, Lulu Freitas, que fora coronel da Guarda Nacional e poeta bissexto. No final da década de 1940 ele alugara suas casas, agrupadas em um grande quarteirão, para várias madames de cabarés, o que provocou o afastamento de locatários familiares. Exigira que cada lupanar ostentasse o nome e a pintura de um dos planetas, sob a denominação geral de Zona Planetária.

Ele mesmo pagou o melhor pintor de paredes da cidade, que também fazia belas pinturas a óleo, para fazer os letreiros e pintar cada um dos planetas com as suas cores e características principais. Portanto, ali eram vistos Saturno e os seus belos anéis, que pareciam coloridos discos de vinil com os seus sulcos espiralados; Marte e a sua cor sangrenta, que lembrava o mênstruo das mulheres ou a violência homicida dos ciúmes; Vênus e os seus vapores azulados de aconchegantes e penumbrosas alcovas, e a Terra a rodopiar com a Lua pelos espaços infindos... Ali estavam o nome e a pintura de cada um dos nove planetas, já que na época Plutão ainda não fora destronado.

Por causa disso, o coronel Lulu Freitas, fazendeiro, flautista e poeta, ganhou a infundada fama de apreciador das raparigas. Infundada sim, porque ele podia ter sido (e fora) protetor delas, mas na verdade era quase casto, enclausurado em seu claustro, efetivamente um vetusto sobrado, de linhas austeras, franciscanas, sem nenhum adorno e muito menos luxo. Sexo mesmo ele só o fazia, seguindo a sua dieta ou escassa ração, com a sua rotunda mulher, a matrona Donana, de muitos anéis de ouro e virtudes. Mas isso não os impediu de terem uma dúzia de filhos, dois deles falecidos em tenra idade.

Em Évora, num percurso de menos de 250 metros, em pleno centro histórico, podiam ser encontrados a igreja matriz, o clube dançante, a praça dos namoros, senão castos, ao menos cautos, outros nem tanto, e os principais cabarés da cidade, aglutinados na Zona Planetária.

Por essa razão, Cazuza, o laureado boêmio da cidade, o maior orador popular e declamador melodramático, sobretudo quando de porre, certo dia proclamou:
– Na amada Évora, de muita história, fumaça e tradição, cidade onde tive o berço natal e onde espero ter a campa final, num raio de apenas 250 metros, existem o clube para a gente dançar, a praça para o namoro nos excitar, o cabaré para nos apaziguar e a nossa fome matar, e a igreja para nos perdoar! E vade retro, com tantas rimas em a.”     

4 comentários:

  1. Meu caro Poeta,
    apesar de bem ambientada a sua Évora, não me atrevo a declinar o seu nome verdadeiro, uma vez que meus conhecimentos sobre as históricas cidades piauienses me impede de tentar. Mas que eu desconfio de uma, ah!, isso eu afirmo!

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  2. Caro JP Araújo,
    Vou desfazer o enigma: na verdade a minha Évora fictícia é uma mistura de algumas cidades piauienses, especialmente duas ou três, nas quais adicionei e adicionarei umas pitadas de pura fantasia.

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  3. Caro poeta, Elmar
    Esplêndido! Só assim posso classificar seu enxuto e primoroso texto, cuja urdidura reúne num só nicho, a vida das pessoas, com suas virtudes e defeitos; a vida da cidade, com seus costumes, suas ruas e suas histórias lendárias. Enfim, numa linguagem escorreita e humorada, tu sabes,com a magia da pena, transportar o tempo, desenhar personagens...depois nos imerge nas vivências e sonhos do passado. Parabéns, poeta e escritor Elmar.
    Um abraço do conterrâneo e poeta Evaldo Lopes

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  4. Caro amigo e conterrâneo Evaldo Lopes,
    Palavras como as suas, de sincero estímulo, me sensibilizam e me fazem perseverar em continuar a escrever esse projeto de romance, que vem sendo construído semanalmente, capítulo por capítulo.
    Você captou muito bem o espírito dessa narrativa romanesca em construção.
    Muito obrigado.
    Abraço,
    Elmar Carvalho

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