quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Histórias de Évora - Capítulo XX


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XX

Escândalo no QG

Elmar Carvalho

 “Em minha puberdade, quando voltava de alguma festa, tertúlia ou da Praça Lucas Mendes Furtado, gostava de dar uma passada na Zona Planetária, para olhar a movimentação de pessoas ou mesmo tomar duas ou três cervejas com meus amigos. Raramente ficava com alguma mulher. O medo de doença venérea e a escassez de dinheiro, para pagar a ‘chave’ ou a mulher eram o principal empecilho. Em alguns dos prostíbulos, no apogeu da cera de carnaúba e de outros produtos do extrativismo, muitos fazendeiros, gerentes de poderosas empresas, comerciantes e industriais fecharam grandes negócios, a tomarem um aperitivo antes do almoço.

Uma vez ou outra, fui até a zona do baixo meretrício, onde ficavam os cabarés Cai n’água, Isabelão e o Corujão da meia noite. O primeiro, como o nome sugere, ficava na beira do rio Paraguaçu. Quando algum malandro não queria pagar a conta da bebida ou a rapariga, corria e pulava no rio; daí a pitoresca denominação. O nome do segundo era em virtude de a matronal e rotunda madame se chamar Isabel. Nele fazia ponto a Juriti, que tinha esse silvestre apelido em virtude de, algumas vezes, aceitar acoitar-se nas finas areias das moitas do rio, para que o parceiro não pagasse o quarto.

O Corujão, cujo nome usávamos sempre abreviado, ficava aberto a noite toda. Vendia uma cachaça muito ruim, barata, mas sempre aguada ou ‘batizada’, e uma panelada gordurosa, idem na ruindade. Por esse motivo, Cazuza, parafraseando o poema-piada de Oswald de Andrade, dizia com sua tonitruante voz: ‘Cachaça e panelada do Corujão é beber, comer e ir ao chão, vítima de mortal congestão.’

Numa das vezes em que fui ao QG, vi um homem de cerca de quarenta anos de idade, que conhecia de vista, sentado a uma mesa, com dois amigos, a beber cerveja. Era baixote, um tanto gordinho e já ostentava uma acentuada calvície. Falava alto e gesticulava muito, mostrando sinais de que a bebida já começava a fazer efeito. À socapa a canalha o chamava de peito de pombo ou garnisé empavonado. Andava empertigado, como se desejasse aumentar a reduzida estatura. Era um alto funcionário da Fazenda Estadual, e chefiava a antiga Mesa de Renda local.

Não demorou muito, três mulheres, das mais vistosas do ambiente, vieram para a mesa dos três homens. O baixinho colocou uma delas em seu colo, e começou a acariciá-la e beijá-la, com certeza já se preparando para levá-la ao quarto. Sua mesa estava perto de um dos pontos cardeais da rosa dos ventos, estampada no mosaico, no centro do salão.

De súbito, como uma tempestade não prevista pelos meteorologistas, chegou uma linda mulher, a mais linda mulher de Évora, assim considerada por homens e mulheres em voz geral e uníssona. Estava deslumbrante, em seu vestido apertado e um tanto curto. O sapato de salto alto ainda mais realçava o seu porte magnífico. Tinha um belo rosto e curvas estonteantes de legítima Calipígia. Não tinha quem a visse e não lhe admirasse a prodigiosa beleza, digna destes e de outros adjetivos.

Em não programada estratégia,suponho, ficou bem no centro da rosa dos ventos, rosa pisoteada por outra rosa mais bela. Colérica, começou a imprecar de forma incontida contra o marido, que outro não era senão o fazendário baixinho:
–Olha bem, seu cretino, por que tu não faz comigo o que está fazendo com essa cunhã? Por que tu não bebe lá em casa e me coloca em tuas pernas e me beija? Eu sei o que tu merece... Tudo merece é que eu te coloque um bom par de chifres! Aí tu vai ver, covarde, se é bom ser enganado.

E continuou por mais algum tempo com a sua rajada de impropérios. O marido, estupefato e tomado de surpresa, não esboçou a menor reação. Estava no ponto norte da rosa dos ventos, mas ficou completamente desnorteado. Quando conseguiu se levantar e caminhar em direção à esposa, esta lhe deu as costas e foi embora em passos apressados. Essa destemperada e violenta demonstração de ciúme parece demonstrar que a bela mulher gostava do marido, e apenas estava a requerer maiores atenções e carícias. Tanto que o baixinho contava aos amigos que a reconciliação fora ‘uma verdadeira delícia, uma segunda lua de mel revista, aumentada e melhorada’.

Eu conhecia essa formosa mulher e lhe admirava o esplendor à distância. Era uma verdadeira deusa da beleza e despertava olhares de admiração em todo mundo. Era uma formosura completa, dos pés à cabeça. Foi a partir da contemplação de seu corpo escultural que eu desenvolvi uma tese que rebatia a do Zé Limeira, chamado o Poeta do Absurdo.

O notável repentista paraibano teria dito estes versos, em sua inocente loucura e genialidade, em homenagem à mulher de seu anfitrião, em noite de cantoria: “Cantar para Dona Zefinha / É só isso que me aumenta, / Pois conheço a muié boa / Pelo buraco da venta (...)” Defendi o entendimento de que toda mulher (desde que não seja obesa) que tem a panturrilha grossa, bem torneada, possui um corpo todo bonito e harmonioso, ao menos do queixo para baixo. Até hoje não tenho visto exceção. Médicos como o doutor Gisleno e renomados causídicos têm concordado comigo.

Para que se tenha uma pequena ideia do encanto sem igual da mulher do fazendário, contarei o seguinte: certa vez em que eu participava de um treinamento para o desfile de 7 de setembro, ao passarmos por uma das ruas do centro da cidade, ela estava parada, em pé, numa das esquinas; todos os rapazes de dois pelotões masculinos, como sob o efeito de algum sortilégio, se voltaram para ela, o que pode ter provocado torcicolo em algum deles. Em vez de ela passar em revista a tropa, nós é que a passamos em revista, em completo alumbramento e justa homenagem. Só nos faltou lhe batermos continência.

Todavia, não demorou muito, seja por vingança, seja também por carência, em face da desídia injustificável do cônjuge, a beldade cumpriu a promessa: ornamentou-lhe a testa com um belo e imponente par de chifres. O felizardo foi conhecido malandro e garanhão da cidade. Parece que ela escolheu esse boêmio para dar uma lição no marido, e para demonstrar que não queria nada a sério com ninguém, mas apenas lhe aplicar um corretivo, para que ele não mais lhe fosse infiel e desdenhoso.


O marido entendeu a advertência. Conseguiu rápida e oportuna transferência para a capital, onde continua com ela, ainda bonita e desejável, apesar da idade.”     

2 comentários:

  1. Poeta, depois de rápida ausência, reencontro-me com a nossa "Histórias de Évora". E devo lhe afirmar que o último capítulo, o XX, foi sorvido com velocidade extrema e crescente curiosidade, dada a sua perícia e correta inserção do novo texto no bojo do já incensada saga do valoroso Marcão!

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  2. Caro JP Araújo,
    Após seu périplo turístico, ainda bem que você já está de volta à nossa Teresina.
    O nosso Marcão ainda vai continuar "aprontando" até o início de sua maturidade, mas claro que cada vez mais contido.

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