quinta-feira, 6 de outubro de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XXIV


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXIV

Melancólica despedida

Elmar Carvalho

Uma ou duas vezes por semana, Marcos aparecia no cabaré de Gracinha. Quando ela não estava na sala ou no alpendre, o rapaz notava certa má vontade de Lurdinha, sua mãe, como se em seu íntimo não lhe desejasse a presença. Existia mesmo certa antipatia recíproca. Ele também não morria de amores pela “velha bruxa”, como a chamava em pensamento. Mas quando Gracinha chegava, afável e risonha, o cenário parecia mudar, e até Lurdinha fingia lhe ter simpatia.

Após algum tempo, os dois iam para o quintal. A rapariga o tomava em seus braços, e se tornava pródiga em afagos, carícias e ternura. Aliás, ela se tornava, com o passar do tempo, cada vez mais meiga e amorosa. Contudo, Marcos já estava ficando enjoado desse namoro pudico com uma meretriz, e sempre tentava ir “às vias de fato”.

Gracinha, porém, com muita perícia se esquivava, o que deixava o jovem ainda mais fremente e ansioso. Entretanto, parecia ser isso o que ela desejava, valorizar-se com essas esquivanças e negaças, e fazê-lo ainda mais apaixonado. O rapaz, já com alguma experiência prática e por via de leituras especializadas, sabia dessas intenções, e no começo não se enfadava com isso. Chegava a ter certo prazer nesse jogo amoroso.

Contudo, achava que isso já estava se tornando um tanto enjoativo e prolongado em excesso. Afinal, a madame transava com qualquer homem que a sustentasse ou a remunerasse bem; por que não ia aos “finalmente” com ele? Por que ficava nessas infindáveis preliminares com ele, que sequer eram preliminares, mas apenas um namoro com certo recato de donzela virgem?

Talvez, como uma espécie de compensação psicológica ou coisa que o valha em psicologismo romanesco, ela, nesse namoro, quisesse recordar os seus tempos de adolescente “encabaçada” e pura. Ou talvez pensasse que se Marcos a possuísse iria achá-la igual a todas as outras raparigas, e fosse logo se cansar dela; a não lhe ter mais ternura e respeito, como demonstrava ter, ou pelo menos o fingia de forma convincente.

Já na idade madura, Marcos leu um poema, salvo engano de Goethe, em que uma mulher prolongava o momento de se deixar penetrar, para que o seu homem ficasse ardendo de desejo por ela. Essa fêmea sabia que o seu macho, ao se saciar, já não lhe daria a mesma importância de antes da fornicação e do gozo. Esse texto lhe fez lembrar as manhas e artimanhas de Gracinha, as suas carícias mais ternas, mais etéreas, os seus avanços, recuos e negaças de puta ardilosa, que desejava tirar onda de santinha do pau oco.

Um dia, de chofre, talvez para testar seus sentimentos e reação, Gracinha lhe deu a notícia de que iria se mudar para longe, para o Bairro Floresta, do outro lado do Paraguaçu. Não lhe deu o motivo dessa mudança. Segundo notava, ela não gostava de pedir favores e muito menos se queixar. Agia com profissionalismo, tanto na administração do prostíbulo como no trato com as raparigas e os clientes.

Marcos ouviu comentários contraditórios. Uns diziam que o proprietário do imóvel não quisera renovar o contrato ou pedira um valor exorbitante. Outros diziam que um alto comerciante lhe propusera tê-la como teúda e manteúda, desde que ela fosse exclusividade sua e se mudasse para o Bairro Floresta, onde ficaria num imóvel de sua propriedade. Prometera lhe doar esse sítio, caso se mantivesse fiel, durante o tempo em que mantivessem a mancebia.

O novo ponto de Gracinha ficava a aproximadamente três quilômetros da casa de Marcos, na periferia da cidade, quase no início da zona rural. Duas semanas após a mudança, o rapaz foi visitá-la no novo endereço. Mais uma vez constatou a antipatia de Lurdinha, que foi logo lhe dizendo, sem cumprimentá-lo:
– A Gracinha está no quarto, dormindo.

Não fez a menor insinuação de sorriso, e muito menos o convidou a se sentar. Tampouco puxou conversa. Marcos se sentiu chateado, mas entrou na sala e se sentou. Afinal, não queria que os três quilômetros que percorrera em sua velha e pesada bicicleta da marca Bristol fossem em vão. Quando a “velha bruxa”, por não revelado motivo se ausentou, Marcos entreabriu a porta do quarto em que estava Gracinha. Sentou-se na cama, ao seu lado, e tentou abraçá-la e afagá-la. Ela correspondeu por um breve instante, mas logo se levantou, algo nervosa, e disse de forma firme, quase ríspida:
– Não, Marcos, peço que vá embora. Estou esperando o Feitosa. Ele pode chegar a qualquer momento. Peço, por favor, que não volte mais, pois ele sempre chega em momentos inesperados, e pode haver olheiros entre os vizinhos.  

O rapaz se sentiu um tanto ofendido e frustrado. A frustração se devia ao fato de nunca haver conhecido Gracinha, no sentido bíblico do termo. Por isso mesmo, decidiu que na semana seguinte voltaria. Pretendia manter relação sexual com ela, e dela se afastar para sempre, de forma digna e sem melodrama. Não desejava criar-lhe nenhum tipo de problema, e nem tampouco ter aborrecimento com o comerciante, que tinha uns bajuladores e capangas.

Conforme planejara, retornou na semana seguinte, na sua velha Bristol. Era um dia de quarta-feira, feriado, final de tarde, já quase escurecendo. Não encontrou ninguém na sala. Foi até o quintal, onde havia umas árvores frondosas. Debaixo de uma mangueira notou que estava havendo uma bebedeira, com a participação de homens e mulheres.

Viu Gracinha curvada, a beijar um velhote gordo, de enorme papada, escangotado, quase a cair da cadeira. Havia uma pilha enorme de garrafas de cerveja, e tanto os homens como as mulheres riam e falavam alto, denotando os efeitos do álcool. Travessas e pratos de comida guarneciam a grande mesa de madeira. A vitrola tocava um bolero em alto volume.

Marcos demorou um pouco. Viu que Gracinha percebera sua presença. Triste e decepcionado, se afastou do local, em passos lentos. Quando atravessava a sala, para sair, foi alcançado pela mulher, que o agarrou e tentou beijá-lo, já com fortes sintomas de embriaguez, a exalar o hálito amargo da bebida, que lhe pareceu repulsivo.
– Marcos, não vá agora. Não fique com raiva de mim. Eu te amo. Da próxima vez, eu vou deixar você me comer. Vou fazer tudo o que você quiser, do jeito que você desejar, mas não fique com raiva de mim.

O rapaz fixou bem o rosto de Gracinha. Mais do que mágoa, raiva ou frustração, sentiu tristeza e pena dela. Seus olhos úmidos estavam avermelhados pelo excesso de bebida. A boca suja de farofa e da baba gosmenta do velho lhe provocou uma espécie de asco. Marcos a repeliu, sem violência, mas com bastante firmeza, até sentá-la no sofá.

Pedalou forte, para se afastar com rapidez. Ainda ouviu, quando dobrava a curva do caminho, através da vitrola possante, em melodramático diálogo musical, o vozeirão do cantor implorar: “Não se vá!” E a voz suave da cantora, mais trágica ainda, rebater: “Estou partindo porque sei / Que você já não mais me ama...”   

5 comentários:

  1. Mestre da poesia, e agora da prosa, você se excede e mostra para o seu protagonista que, nesse campo, não há vencedores ou vencidos, somos todos coadjuvantes da grande trama urdida pela vida. Aguardo os próximos passos da história que você tem conduzido com tão grande maestria.

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  2. Meu Mestre José Pedro Araújo,
    O velho jovem Marcos recebeu um golpe baixo; por sinal, literalmente no baixo ventre, com as negaças do quero-não quero de Gracinha, que redundou nesse final melancólico, sobretudo para um adolescente, cheio de esperança e tesão.
    Muito obrigado por tão belas quanto incentivadoras palavras.
    Abraço,
    Elmar

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  3. Chico Acoram Araújo6 de outubro de 2016 às 10:38

    Dr. Elmar,
    `
    Quinta-feira é o dia em que me delicio de mais um capítulo desse belo e "estimulante" romance. Parabéns. Até o próximo capítulo de Histórias de Évora. Um abraço.

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  4. Caro Acoram,
    Com o seu estímulo e o de mestre Araújo, se Deus quiser, vou motivação para chegar ao fim desse romance em construção.
    Muito obrigado.
    Abraço,
    Elmar

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  5. Elmar, estou mantendo a leitura, a cada capítulo de seu romance, muito bom nas descrições e na parte do narrado, mas vejo que falta um pouco de discurso direto, diria melhor, de diálogos, que é um ingrediente ficcional decisivo a dar mais "oralidade â encenação dos personagens, conforme o teatro(a dramaturgia ) tão bem explora. Estou me lembrando do contista Ernest Hemingway que usava muito do diálogo, entremeado, é claro, do discurso do narrador.
    Isso é apenas uma sugestão. Repito, nas passagens descritivas e narrativas, em que V. demonstra invejável domínio do narrado, não há, pois, o que censurar, mas se der um mãozinha da diálogo, talvez a dinâmica da narrativa se avive mais.
    Por outro lado, vejo que esse romance leva muito do seu evoluir pelo lado da introspecção, do discurso íntimo do narrador, seja em terceira pessoa, onisciente, seja em primeira pessoa, que o teórico Genette, chama de autodiegético, quer dizer, o narrador na condição de personagem central, que é o caso de Marcos.
    Percebo também um domínio do campo lexical, assim como uma adequação primorosa na capacidade de estruturação frásica, o que deixa a transparecer visivelmente o seu repertório de leituras de bons romancistas canônicos que tenha lido durante a sua mocidade. Isso é, em termos estéticos, salutar. Talvez a sua condição de poeta, um dominador das palavras, das minúcias no olhar para o ser humano e para a natureza e tudo que forma esse conjunto de produtos culturais e materiais da realidade física. seja um auxiliar significativo na construção do seu romance.
    Espero que o comentário acima lhe possa ser útil ou desperte novas reflexões sobre o andamento de sua ficção.
    Forte abraço do

    Cunha

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