quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Histórias de Évora - Capítulo XXVII


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXVII

O voo do Pardal

Elmar Carvalho

Entre as figuras mais notáveis de Évora se destacava o Eugênio. Eugênio Dantas. Fazia jus ao nome. Era um legítimo gênio eborense. Tinha dois ou três anos a mais que eu. Dominava todas as matérias, desde as de Humanidade, como História e Geografia, até as de Ciência, tais como Biologia, Física e Química. Matemática, então, era a sua disciplina predileta. Memória prodigiosa, decorava nomes e datas com facilidade, inclusive as escalações dos principais times brasileiros. Era ainda exímio desenhista e pintor. Foi ele quem idealizou e pintou o escudo do Liceu Eborense. Disso lhe adveio o apelido de Professor Pardal, que depois foi reduzido para Pardal.

Dentre os seus livros, lia com frequência um sobre os grandes inventores, as biografias de Santos Dumont e de Leonardo da Vinci. De grande habilidade manual, seus papagaios ou pipas se destacavam, tanto pela beleza como pela perfeita aerodinâmica. Em diferentes tamanhos e formatos, alguns imitavam aviões, navios, igrejas, sobrados e discos voadores. Um desses artefatos imitava o famoso 14 Bis de Santos Dumont.

Passou a construir objetos que se moviam ou voavam, com o uso de pólvora e bexigas ou balões, que funcionavam como turbinas de jatos, a impulsionar a geringonça. Num desses experimentos, saiu chamuscado, mas sem gravidade. Certa feita, na época do lançamento da Apolo 11, construiu um foguete, que soltou na praça central.

A engenhoca, impulsionada a pólvora, subiu com considerável rapidez, mas sem controle terminou caindo sobre o sobrado do major Américo Nepomuceno. Foram quebradas algumas telhas, fato que provocou grande descontentamento ao proprietário. O prejuízo foi pago pelo pai de Eugênio. O inventivo professor Pardal o ajudava em sua oficina eletrotécnica, a de maior clientela do município.

Na época dos festejos juninos, Pardal, com a ajuda financeira de amigos e de pessoas gradas da sociedade eborense, construía os maiores e mais belos balões, que encantavam as noites eborenses. Todos os rostos se voltavam para cima, para acompanhar os lindos objetos luminosos. Todavia, desde quando um desses balões caiu sobre um pequeno quintal, provocando diminuto incêndio, logo debelado, graças aos moradores e vizinhos, Eugênio não mais os construiu.

Passou, então, Pardal a alimentar outro sonho, que era o de construir uma espécie de asa delta para sobrevoar a Serra do Cachimbo. Seu pai, quando soube desse plano, o repreendeu severamente, e o advertiu para que jamais fizesse uma loucura desse tipo. Entretanto, o pai cada vez dependia mais de sua ajuda, e consequentemente, para incentivá-lo a prestar-lhe serviço, aumentava gradativamente a sua mesada.

Contudo, o rapaz tinha as suas crises emocionais. Tornava-se cada dia mais ensimesmado, mais introspectivo, no seu sonho de se tornar um engenheiro eletrônico, com o que seu pai não concordava, porquanto desejava que ele o substituísse, no futuro, em sua oficina, mesmo que dividissem o lucro. Mas o fato é que o jovem tinha seus períodos de depressão, que na época as pessoas chamavam apenas de tristeza ou de esquisitice. Embora nunca o seu problema tenha sido diagnosticado por um psiquiatra, suponho que ele começou a ter uma progressiva esquizofrenia, que nunca teve tratamento.

A verdade é que ele, utilizando o galpão da quinta de um amigo, iniciou a construção da sua asa delta. Seguiu como modelo as que via nas ilustrações das revistas e livros, e também num filme de espionagem. Calculou a escala entre o tamanho do piloto e a asa. Após, fez a proporção entre o seu próprio tamanho e o de seu artefato planador. Construiu-o desmontável, dividido em três partes, que se encaixavam com segurança e perfeição.

Certo dia, às nove horas de uma manhã de domingo, Pardal apareceu na quinta a dirigir a perua Rural de seu pai, que em raras ocasiões lhe era cedida. Da melhor maneira possível, acomodou o artefato supostamente voador no carro. Seu amigo não estava, de modo que quem lhe abriu a porta do galpão foi a dona da casa, que não lhe fez nenhuma pergunta, por nada estranhar, na suposição de que o objeto fosse um enorme papagaio.

Quando deram duas horas da tarde, sem que Eugênio aparecesse para o almoço, seus pais começaram a se preocupar. Visitaram os amigos mais chegados do rapaz, mas nenhum soube dar qualquer notícia sobre o seu paradeiro. Um deles, todavia, informou que ele nos últimos tempos vinha tendo muito contato com um garoto residente numa quinta localizada na periferia da cidade. Deu o nome do rapaz e de sua mãe. O pai de Pardal, em companhia de um amigo, foi até essa residência.

Lá ficaram sabendo do projeto da asa delta artesanal e de que ele a recolhera. O amigo de Pardal ainda informou que ele tinha o sonho de sobrevoar a serra. Pretendia saltar do despenhadeiro chamado Boqueirão dos Ventos. Era um lugar visitado por alguns eborenses, embora ainda não pudesse ser considerado como ponto turístico, porque de lá se contemplava uma linda paisagem, com outros morros e paredões em derredor, que formavam um semicírculo, algo semelhante a um imenso anfiteatro, cujas gradações cromáticas, conforme a vista se alongasse ou não, variavam do mais tênue verde azulado ao mais profundo azul. Nas manhãs invernosas, em que o caburé com frio piava, piava, as névoas proporcionavam um mágico espetáculo.

Havia uma espécie de obelisco rochoso no centro do vale, aos pés do qual se descortinava um verdejante tabuleiro, forrado de capim mimoso e arbustos, que bem poderia servir para um pouso de emergência. O rapaz acrescentou que o plano de voo de Eugênio incluía o retorno ao ponto de partida, que tinha a estrada e era um planalto descampado, o que lhe facilitaria o pouso. Sem dúvida o carro estaria nas proximidades desse local.

Como já fosse noite era impossível a busca imediata. Porém, no dia seguinte, policiais, amigos e parentes de Eugênio foram à sua procura. Logo avistaram a Rural, estacionada perto do abismo do Boqueirão dos Ventos, cujo nome se devia ao fato de que o vento era canalizado pelas encostas circulares e parecia subir exatamente nessa espécie de garganta, que também era chamada de Goela do Eco. Nesse ponto as pessoas gostavam de gritar, para que os gritos se repetissem ampliados.

Todos compreenderam que o rapaz escolhera esse local para o seu voo inaugural porque nessa garganta da serra objetos leves flutuavam e não caíam no abismo, o que poderia ser o local ideal para a planagem de uma asa delta, que na verdade fora construída como um grande papagaio, com armação de tabocas e talas de buriti, recoberta por uma resistente lona encerada. Feita essa constatação e já com o auxílio de um nativo conhecedor dos segredos e mistérios do local, começaram a lenta descida. Fizeram os devidos contornos em busca de lugares menos íngremes e menos perigosos.

Após quatro horas de procura, encontraram a engenhoca voadora. Algumas talas estavam quebradas. Considerando-se o local do salto e o local onde o planador foi encontrado, os presentes acordaram em que o voo fizera o percurso de cerca de três quilômetros. Por vários dias ainda tentaram encontrar o rapaz, mas o seu corpo nunca foi localizado. As mais desencontradas e contraditórias hipóteses foram levantadas; algumas não passavam de mera fantasia, outras eram verossímeis, conquanto bastante divergentes entre si.

Alguns defendiam a tese de que Pardal ‘fora encantado pelo feitiço da serra’. Outros, pretensamente mais realistas, afirmavam que o rapaz fora arrastado para alguma gruta desconhecida por uma fera de grande porte. Tinha os que defendiam a suposição de que em lugar de fera algum animal fantástico o devorara com ossos e tudo. Houve ainda os que argumentaram que ele havia sido arrebatado para outra dimensão.

Não faltou quem levantasse a hipótese de que ele se suicidara em lugar esconso, para que seus pais nunca soubessem que ele teria cometido esse ato considerado pecaminoso e abominável. Para outros ele simplesmente simulara um acidente e fora morar em outro lugar distante, onde adotaria outra identidade.


O jornal A Batalha estampou a manchete: ‘O último voo do Pardal’, embora não se tenha notícia de ter havido outro voo anterior. No final da reportagem, o doutor Epaminondas Gondim cunhou a frase de efeito que ainda hoje reboa nas conversas, e se tornou o dístico do monumento erigido em sua memória: ‘Desapareceu em mistério e sortilégio o genial Eugênio, o legendário Ícaro Eborense’.”     

2 comentários:

  1. Mais um capítulo espetacular, literalmente, meu caro amigo. O gênio do autor, não somente o do Pardal, voou alto neste capítulo, com muita inventividade e perfeito conhecimento das técnicas aeronáuticas. E assim o nosso Histórias de Évora vai se transformando em uma enciclopédia literária/científica, tal é a quantidade de histórias espetaculares e informações de cunho eminentemente educacionais.

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  2. Caro José Pedro,
    Desse jeito o amigo vai terminar fazendo com que eu acredite que o meu pequeno romance tenha mesmo algum valor.
    De qualquer forma muito obrigado por suas palavras de incentivo, que me motivarão a ir em frente.

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