HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XXVIII
Moto contínuo
Elmar Carvalho
No Sábado de Aleluia o Mário Cunha
apareceu na casa de Marcos com uma galinha grande e gorda. Perguntou se dona
Rita poderia fazer um frito para que eles levassem para o balneário do Rocio, situado
no rio Paraguaçu, a uns três quilômetros do centro da cidade. Na época era
costume, sobretudo entre os jovens, a subtração de galináceo na Semana Santa,
para a comemoração da morte de Judas.
Não era isso entendido como furto,
mas como uma brincadeira, que poderia integrar a parte comemorativa da malhação
do velho Iscariotes. E normalmente as vítimas eram parentes, vizinhos ou
amigos. Dona Rita indagou sobre a origem da galinha, tendo Mário assegurado que
fora sua mãe quem lhe dera a “penosa”. Ante a aquisição haver sido lícita, ela
prometeu fazer seu famoso e elogiado frito, já saboreado em outras ocasiões.
Ficou acertado, entre os rapazes, que
no dia seguinte, Domingo de Páscoa, Mário seguiria em sua bicicleta Gulliver,
mais cedo, e o Fabrício, em sua lambreta, pegaria Marcos (e o frito) na casa
deste. Combinaram se encontrar no balneário, por volta de onze horas. Fabrício
prometeu levar uma legítima cachaça serrana, de doze anos, que comprara de um
mascate, de sua confiança, e mais uma paçoca de carne de sol, preparada em sua
casa. De modo que estavam bem abastecidos, em termos de comes e bebes.
A região do Rocio, nessa época, era
bem preservada, com a mata ciliar exuberante, a proteger o rio, a exibir
grandes árvores copadas. O rio se apresentava saudável, estreito e fundo. Na
margem direita havia uma espécie de corredeira. A água passava com estrépito
por entre grandes pedras, que formavam uma garganta, um tanto apertada, o que
imprimia à água uma forte correnteza e turbilhão. Chamavam esse ponto de
Passagem da Apertada Hora.
As águas ondulavam e produziam uma
toalha de espuma. Um poeta disse que as pedras eram bilros das pedras tecelãs.
O turbilhão se transformava em verdadeira hidromassagem. Alguns jovens, no auge
da adolescência e da libido, a contemplar as garotas de biquíni na margem
próxima, chegavam ao orgasmo sem sequer se tocarem, em verdadeiro onanismo
inefável, etéreo, quase imaterial, como corolário de profunda excitação
platônica e fantasiosa, turbinada pelo turbilhão da corredeira.
Mas muitos garotos afoitos, sobretudo
no período das grandes chuvas, em que o rio se mostrava mais caudaloso, em
lugar de êxtase e prazer, ali encontravam a morte. Eram arrastados e ao caírem
num rodamoinho não tinham força para vencer a correnteza. Os mais cautelosos se
amarravam a uma corda, firmada na margem ou em alguma das pedras. Entretanto,
fora desse ponto agitado, as águas eram calmas, e chegavam a formar um remanso
na parte mais frequentada, que tinha uma praia de branca, macia e finíssima
areia.
Os amigos se acomodaram debaixo de
imensa mangueira, que lhes dava uma refrescante sombra. Tomando sol, a pequena
distância, estava um pequeno grupo de garotas. Duas mais recatadas estavam de
maiô, enquanto as outras quatro usavam biquíni, a exibir suas coxas e feminis
curvas. Nessa idade em que tudo sorri e floresce, Marcos achava que uma mulher
tinha a obrigação de ser bela, ao menos bonitinha. Fabrício, invocando os
versos de Vinicius, achava que a beleza, conquanto efêmera, era fundamental;
pelo menos enquanto durasse.
No meio das moças, estava Laura, de
estatura mediana, morena clara, de cabelos e olhos negros, de curvas muito bem
delineadas, sem faltas e sem excessos. Mesmo de maiô suas formas eram
ressaltadas e se destacavam, aliciantes. Seus olhos eram profundos e negros,
como nos versos de Castro Alves. Tinham o negrume das noites sem luar, assim
como seus ondulados cabelos tinham o encanto do mar.
Marcos já lhe percebera, algumas
vezes, quando passava na frente de sua casa, com destino ao campo de futebol
que ficava perto, o olhar discreto, mas interessado. Fabrício já comentara
isso, e até dissera que quando tivesse oportunidade iria fazer “o meio de campo”
ou a ponte entre eles, pois fora colega dela em um Encontro de Jovens promovido
pela igreja Católica. Mas ainda estava encantado com o namoro furtivo e proibido
que mantinha com sua bela normalista.
Três ou quatro alentadas doses
depois, Fabrício foi até o local onde estavam as moças, já agora debaixo de um
imenso pé de tamboril, que estava muito verde e muito frondoso. A árvore lhes
propiciava uma sombra agradável e aconchegante, ainda mais porque bem perto
havia um grande cajueiro e uma imensa e odorífera cajazeira.
Marcos sabia que ele estava
intermediando uma aproximação entre ele e Laura. Ficou um pouco ansioso e
apreensivo, mas tentou manter a calma e não saiu de seu lugar, enquanto
esperava o retorno do amigo. Via-o gesticular e se mover um pouco, como se
estivesse em animada conversação. Fazia gestos incisivos, com os quais parecia
sublinhar seus argumentos, como se estivesse querendo convencer a garota de
alguma coisa que ela tentasse refutar.
Quando voltou estava radiante, e
exibia seu triunfo com sorrisos e gargalhadas.
– Olha, mestre Marcos, você me deve
essa conquista. Não foi tão fácil assim não. Quando eu disse pra menina que
você estava a fim dela, ela disse que você é meio metido a besta, e que nunca
olhou pra ela; que sempre passava todo enxerido, como se não a visse, na porta
da casa dela. Eu, então, tive que usar toda a minha astúcia e lábia de
vendedor, para explicar que no início você é meio encabulado e tinha receio de
um fora. Só então ela deu um meio sorriso e disse para você tirá-la para dançar
na festa que vai haver no próximo sábado, no Évora Clube; que lá vocês poderão
se acertar. E ainda de quebra deixei uma das lebres praticamente abatida, aquela
lourinha, cujos cabelos faíscam ao sol. Um encanto de ninfeta deste bosque
fluvial.
– Grande Fabrício, que magnífica
notícia você acaba de me dar. Meu dia já está ganho. Um brinde a esse excelente
presente que você acaba de me ofertar. Obrigado, cara!
Nisso, ao longe, ia passando um
ciclista, a pedalar com todo vigor para vencer a areia do caminho. Fabrício,
contente de haver ajudado o amigo a conquistar a garota, lançou-lhe um desafio:
– Agora, Marcos, prove que é mesmo um
poeta. Faça um improviso sobre aquele ciclista, que vai pedalando feito um
doido naquele areal. O poeta, ainda tonto e esfuziante com a alvissareira
notícia, não se fez de rogado:
– Ó bicicleta / em ti o ciclista anda
/ anda, anda, anda...
Com a cabeça já um pouco anuviada
pelo álcool e entontecido pela inebriante perspectiva de namoro com a linda cachopa,
Marcos se embolou todo e não conseguiu a desejada rima. Ficou nesse desatinado
“anda, anda, anda”, em busca de inspiração, até finalizar de forma canhestra,
mas que pretendia apoteótica:
– E nunca para de andar!
Fabrício vergastou esses versos de
forma abrupta e irônica:
– Porra, poeta, só se esse ciclista
tiver um motorzinho na bunda para conseguir andar tanto assim... Ou então se
tiver descoberto o moto contínuo do poeta Leonardo de Carvalho Castelo Branco,
que você tanto admira e exalta.
E os três amigos prosseguiram na
feliz libação, a degustarem o delicioso frito e a não menos deliciosa paçoca,
sem outro compromisso a não ser a falta de compromisso da quadra que viviam.
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