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HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XXXII
Aqueles olhos verdes
Elmar Carvalho
A música era lenta (e a letra, romântica).
Estava em todas as paradas de sucesso dos programas radiofônicos musicais da
época. Ao embalo desse hit da Jovem Guarda, Marcos, aos poucos, foi se
aconchegando a Laura. A moça, no início, fingiu não corresponder, simulando
discreta resistência, mas gradativamente foi deixando que o rapaz a enlaçasse,
em sucessivos e aliciantes deslizamentos de mãos e braços. Sem deixarem o salão,
dançaram ao som de várias músicas, que a orquestra tocou sem intervalo.
Sob a manjada desculpa de que fazia
muito calor, Marcos a convidou para irem “lá pra fora”. Laura assentiu com um
movimento de cabeça. Seguiram lado a lado, mas sem enlaçarem as mãos. Na praça
estavam vários casais. Alguns estavam sentados, de mãos dadas, a conversarem;
outros, se beijavam sem grande efusão; contudo, alguns, encostados em árvores,
canteiros ou postes, se beijavam e se abraçam com frenesi. Eram os chamados
pinos ou amassos.
Quando chegaram à praça, Marcos tomou
a mão de Laura, que não fez a menor oposição. Para não dar mostras de ser um
“apressadinho”, o rapaz sentou-se em um dos bancos disponíveis, um tanto
afastado dos outros casais. Iniciou uma conversa trivial, que não interessava
aos dois. Quando um dos casais retornou ao clube, deixando um dos canteiros que
lhe servia de encosto livre, Marcos se levantou e, segurando as mãos da namorada,
a conduziu para esse local.
Ao chegar, colocou as mãos nas
têmporas dela, afagando-lhe os cabelos com suavidade. A seguir, abraçando-a com
leveza, encostou a cabeça na sua, para só depois esboçar um beijo na boca. Ela,
demonstrando sua inexperiência ou mesmo certo recato e receio, virou o rosto.
Diante desse movimento de esquivança,
que fazia parte do jogo amoroso inicial, quase ritualístico na época, beijou-a
na face, deslizando a boca até perto da orelha, até lhe mordiscar o lóbulo,
ornado com pequeno brinco. Deixou que ela lhe sentisse e ouvisse a respiração, que
fingiu estar um pouco ofegante. Após alguns sutis movimentos de idas e vindas,
avanços e recuos, marchas e contramarchas – sim, não, não, sim, sim, não, sim,
sim, sim – o rapaz a abraçou com força e a beijou com sofreguidão. E ela
correspondeu com todo o ímpeto de que Marcos não a julgava capaz.
Iniciaram um namoro que demorou mais
de ano. Quase sempre os encontros eram semanais, aos sábados e domingos, algumas
vezes em festas e tertúlias. O local dos encontros e namoro era a praça
central. Por volta das dez horas ou dez e meia, Marcos ia deixá-la até perto de
sua casa. Laura sempre vinha acompanhada de uma irmã ou amiga, que saía à
procura do namorado ou de outras companhias. Nunca o rapaz foi a sua casa, pois
segundo dizia aos amigos não queria se comprometer.
Numa das vezes em que Marcos iria a
uma festa de colação de grau (término do curso ginasial) de um de seus amigos, que
aconteceria no Clube da AABB, tomou umas afoitas doses puras de uísque, bebida
a que não era acostumado. Foi solicitado a saudar um amigo dele e de seu
anfitrião, que havia se mudado para a capital há uns dois anos. Na empolgação
da bebida e do discurso, chamou o homenageado de Milton Monteiro. Foi
interrompido pela namorada do rapaz, que observou sem nenhuma sutileza:
– Você diz que é muito amigo dele,
mas no entanto o chamou de Monteiro, quando o seu sobrenome é Moreira.
Marcos não perdeu a deixa de mostrar
a sua verve, retrucando:
– Perfeitamente, eu o chamei de
Monteiro porque Milton Moreira vem atingindo as mais altas culminâncias do
saber e da cultura, e por isso é um monte, um Monteiro de sabedoria e erudição!
Os amigos, algumas doses depois do
seu triunfo no desfecho de sua oratória, que provocou risos e congratulações,
vendo que ele já estava mais pra lá do que pra cá, ou seja, mais pra lá de
Marraquexe, como se dizia na época, recomendaram que ele tomasse um banho.
Após, seguiram no fusquinha do pai de Valdemar, que pilotava o apertado
veículo, conduzindo cinco marmanjos, inclusive o filho, quando Marcos começou a
engulhar, entre soluços. João Fernandes alarmou-se ante o que poderia acontecer
ao seu querido fusca:
– Sai, sai, sai todo mundo, não deixa
o Marcos vomitar dentro de meu carro.
Saíram todos à pressa, e foi o maior
alvoroço quando o rapaz vomitou pra valer, ou, como dizia o eciano Conselheiro
Acácio, “devolveu” o que havia acabado de comer e beber. Desceram na porta da
AABB. Fabrício convidou os amigos a irem até um barzinho perto, antes de
entrarem no clube. Aconselhou Marcos a passar pelo menos uma hora sem beber, o
que foi aceito sem protesto. Disse que chupasse umas balas de hortelã Pipper e
mastigasse uns cravinhos, para tirar o mau hálito da bebida e do vômito, já que
Laura estaria na festa.
Marcos nunca esqueceu, por toda a
vida, a acolhida carinhosa que Laura lhe deu, mesmo ele estando um tanto
embriagado, e exalando um verdadeiro bafo de onça. Quando foram para o pátio do
clube, após algumas danças, ela o beijou na boca, sem a menor demonstração de
nojo e sem lhe fazer a menor recriminação. Pelo contrário, nunca ela foi tão
carinhosa, e nunca lhe dispensou tanta ternura e atenção como nessa memorável
noite em que ele esteve tão frágil e carente, com os cabelos em desalinho e a
camisa um pouco amarrotada.
No decurso do namoro, quando estava
no último ano ginasial, Marcos, com outro amigo, foi espiar as garotas fazerem
ginástica na quadra do Liceu. Viu, então, uma linda garota loura, cujos cabelos
cintilavam à luz do sol, como faíscas douradas. Era alta e esbelta. Seus olhos
eram duas esmeraldas, de brilho intenso em seu verde profundo de mares cheios
de mistérios e enigmas. Não a conhecia, mas procurou colher informações. Logo
descobriu que se chamava Isabela, e era filha de um executivo paranaense, que
chegara, fazia pouco tempo, para dirigir uma grande loja de venda de
eletrodomésticos e móveis, a maior da cidade.
Trocaram olhares à distância. Nas
vezes em que se encontravam nos corredores do Liceu se olhavam com intensidade.
Várias vezes o rapaz foi assistir aos exercícios de ginástica só para vê-la à
distância. Quando a via em outros lugares, nas ruas, praças e tertúlias, sentia
o seu olhar apaixonado, a que correspondia. Mas nunca teve coragem de lhe
propor namoro, nem mesmo através de bilhetes ou recados. A garota era cobiçada
por vários rapazes da cidade, que lhe admiravam a beleza alva, longilínea,
dourada, de ascendência europeia. Talvez para provocá-lo, para lhe forçar a
iniciativa, começou a namorar um dos jovens ricos de Évora.
O rapaz começou a
mistificar e mitificar a situação, criando fantasias e quimeras, algumas
estimuladas por suas leituras da vida de poetas do romantismo. Colocou a moça
numa torre de marfim, e a fez intocável e inatingível. Escreveu poemas de amor,
que publicava no jornal mural, entre os quais o que tinha estes versos: “eras
poeta e criaste uma quimérica / amada imortal e imaginária, inatingível / em
sua torre de marfim. / ela talvez também te quisesse, / mas a fizeste
intocável.”
Confessou as suas fantasias a alguns
amigos. Chegou ao ponto de recitar numa farra, trepado numa cadeira, um poema
de sua autoria, cujo título “Isa, a bela” denunciava a destinatária de sua
paixão. O certo é que essa paixão de Marcos foi se tornando do conhecimento de
vários alunos do Liceu. Um dia a professora de francês, que mesmo ao se casar
continuou sendo chamada de mademoiselle Charlotte, radicada em Évora há muitos
anos, ao notar o olhar vago e distraído do jovem, disse em sala de aula, com
seu sotaque acentuado, provocando a risada geral da classe:
– Atenção Marcos, pareces que estás
apaixonado, meu filho...
A frase foi amiúde repetida em todo o
colégio. Mesmo alunos de outras turmas a repetiam, imitando o sotaque de
mademoiselle Charlotte. Esse amor platônico de Marcos chegou ao conhecimento de
Laura, mas, como ela o amasse, nunca abordou esse assunto. Contudo, num dia em
que estava numa festa no Évora Clube, notou que Isabela, embora estivesse com
seu namorado, furtivamente olhava para Marcos, que também a olhava da mesma
forma, pensando não estar sendo notado pela namorada.
Laura tentou conter-se, mas terminou
pedindo ao rapaz para que saíssem do recinto. Quando chegaram à praça, e Marcos
quis abraçá-la, a moça o deteve com suave firmeza, e perguntou à queima-roupa:
– Marcos, você gosta de mim?
Tomado de surpresa ante a inesperada
pergunta, feita de chofre, o rapaz tentou ser engraçado.
– Gosto. Gosto de você, de meus pais,
de meus amigos, de minhas irmãs...
Muito séria, mas com voz branda,
Laura insistiu:
– Você sabe a que tipo de gostar
estou me referindo. Você me ama?
– Não. Amo outra garota – disse o
rapaz sem titubeios, em verdadeiro haraquiri amoroso.
Com dignidade, sem dizer uma só
palavra, Laura se afastou lentamente, sem se voltar uma só vez. Contudo, em seu
íntimo sofria e os seus lindos olhos negros estavam úmidos.
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