quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XXXV

Fonte: Google. Foto meramente ilustrativa

HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXXV

Uma história da cera de carnaúba

Elmar Carvalho

Vamos dar um salto na história de Marcos Azevedo. O rapaz, após concluir o antigo científico, fez o curso de Direito em sua cidade natal, também como aluno do Liceu Eborense. Na época, o campus da Universidade Federal na cidade ministrava apenas os cursos de Ciências Jurídicas e Sociais (Direito), Administração de Empresas, Economia, Contabilidade, História e Letras.

Dois anos após a conclusão de seu curso superior, foi aprovado, em concurso público, para o cargo de Fiscal de Tributos Federais. Conseguiu ser lotado na Agência da Receita Federal de Évora, em cujo prédio funcionava a Alfândega local. Nela se tornou colega e amigo de José Parentes de Sampaio, de conversa agradável, com sua voz grave, sonora e erudição de almanaque, do jornalista Epaminondas Lemos, sempre elegante, sem nunca descurar de vistosa e cara gravata, e do professor Barreto, conhecido na intimidade como Barretão de guerra.

Eles eram bem mais velhos que Marcos, mas como este tinha boa cultura, mormente literária, e colaborava na imprensa local, logo fizeram amizade com o novel colega. Em muitas sextas-feiras, após o término do expediente da tarde, saíam para tomar algumas cervejas no barzinho do Pimpão ou no Recanto da Saudade, do comandante Augusto, ambos localizados na Munguba, à beira-rio. Às vezes integrava a turma Francisco Eduardo Aires, que embora fosse mais reservado também tinha boa conversa.

Numa dessas libações, Marcos leu um poema que fizera naquele dia, que, entre outros versos de molde existencialista, dizia: “Quisera ter a humildade de um leproso.” Ao ouvi-lo, Barretão, que muitas vezes era bizarro e teatral, caiu por terra; prostrado, em posição que imitava os irmãos maometanos, exclamou com muita ênfase, com seu vozeirão estentórico, como era do seu feitio:
– Grande, caramba! Grande humildade, grande poema! – E beijou o chão, sem nenhuma vergonha ou nojo. Sem dúvida, hiperbólico como sempre e como nunca, Barreto exagerava; o poema não era tão bom assim.

Foi através desses amigos que Marcos obteve detalhes sobre um caso empresarial rumoroso, de que ouvira falar em sua meninice, mas ao qual não dera maior importância na época, como era natural. Pretendia, agora, narrá-lo num de seus projetados livros. José Parentes, vendo o grande interesse que o caso despertou em Marcos, deu ao rapaz uma fotocópia de todo o processo administrativo, que já dormia nos arquivos da Delegacia da Receita Federal há vários anos. Foi a verdadeira batalha empresarial que se travou entre James Cavalcante Taylor e Carlos Teles Bacelar. O primeiro, além da Casa Britânica, com várias filiais no estado, comandava a Indústria Vegecera S/A, e o segundo, a Teles Bacelar Indústria e Comércio.

A rivalidade empresarial que existia entre ambos também os tornou adversários na vida particular e social. Isso se refletiu até mesmo no futebol. James fundou o Industrial Atlético Clube, de cores azul e branca, e Carlos, o Évora Futebol Clube, de farda alvirrubra. Ambas as agremiações tinham seu próprio estádio. James não era atleta, mas apenas incentivador do esporte, ao passo que Carlos Teles Bacelar, além de ser considerado o introdutor do esporte bretão em Évora e de haver trazido a primeira bola a solo eborense, era um grande atacante, e muitas vezes era o artilheiro em disputas locais e estaduais.

Quando a importância da comercialização da cera de carnaúba começou a declinar, em face da Segunda Guerra Mundial e depois em virtude da descoberta de substitutivos desse produto, Carlos começou a diversificar sua indústria, com a fabricação de novos produtos, usando outras matérias primas da região, como o jaborandi e o babaçu, além de ter criado um grande sistema de vendas por atacado, com capilaridade em toda a região.

Além disso, de forma surpreendente, começou a comprar borra de cera de carnaúba, numa época em que tanto a cera parda como a cera flor estavam com seus preços em baixa. As hipóteses sobre essa iniciativa eram as mais diversas possíveis, e não faltou quem achasse que o grande empresário estaria dando um tiro no pé, ou até mesmo na cabeça. Alguns acharam que ele perdera o juízo, ou pelo menos o tino comercial.

Depois de alguns meses, o verdadeiro objetivo de Teles Bacelar foi descoberto. Ele, o irmão Adalberto, que era engenheiro mecânico, e o primo Mauro, formado em Química, em cujo curso tirara as mais altas notas, sendo mesmo considerado um legítimo alquimista da contemporaneidade, descobriram um processo para aproveitar a borra da industrialização da cera de carnaúba, clarificando-a, e dando-lhe quase a mesma qualidade, textura e coloração da cera flor, cujo preço sempre fora mais alto. Aliás, Mauro Machado Bacelar, em fase experimental, inventou um sistema mecânico e químico para transformar a palha da carnaúba, após a retirada do pó, em celulose, num grau de aproveitamento jamais alcançado. Infelizmente, os concorrentes e os adversários políticos dos Teles Bacelar impediram que o governo federal financiasse esse projeto, de forma que ele nunca pôde ser implementado.

Deram-lhe a classificação de cera parda/flor, e entraram com requerimento para exportar várias toneladas desse produto para países da Europa. Logo, através de amigos, James Taylor soube desse processo administrativo e denunciou ao chefe da alfândega local que essa tal cera era uma fraude industrial, e que isso terminava sendo uma verdadeira concorrência desleal e predatória para com as outras indústrias ceríferas. Todavia, diante de laudos laboratoriais, e ante a documentação de que empresários europeus assumiam o compromisso de comprar o produto, sem nenhuma restrição e por um preço superior à da cera parda, o titular da alfândega deferiu o pedido, em despacho muito bem fundamentado.

Contudo, Taylor apelou para congressistas amigos, um deles parente de sua mulher, que se reportaram ao ministro da Fazenda. Quando várias alvarengas e barcaças, carregadas com várias toneladas da dita cera parda/flor já se preparavam para descer o Paraguaçu em demanda do porto marítimo, que ficava a cerca de 30 quilômetros, perto da praia de Amarração, chegou um telegrama do ministro determinando a suspensão do deferimento alfandegário, até ulterior deliberação.

Depois de longa demanda, tanto no âmbito do Poder Judiciário, como no do Ministério da Fazenda, com interferência de políticos de ambos os lados empresariais, Teles Bacelar pôde remeter o seu produto para países da Europa, bem como para algumas indústrias brasileiras. Novos pedidos foram feitos, o que demonstrou a boa qualidade da cera. A Teles Bacelar recebeu muitos elogios pela qualidade de seu produto e pelo maior aproveitamento da matéria-prima. Tudo isso foi intensamente repercutido nos jornais da época, como uma grande conquista e inventividade da indústria eborense.

James Taylor terminou desistindo da fabricação de cera de carnaúba, enquanto a Teles Bacelar Indústria e Comércio ainda resistiu bravamente por algumas décadas, até a sua derrocada final, por motivos diversos, que não vêm ao caso.            

2 comentários:

  1. Meu caro amigo Elmar,
    o seu folhetim eletrônico(epíteto dado por você mesmo), ganha ares de robusto compêndio com as deliciosas histórias (História mesmo, e até mesmo estórias) que você vem agregando a ele em cada fascículo publicado.É livro para ser lido de um fôlego só, quando tiver sido transposto fisicamente para a celulose. "As histórias de Évora" são realmente um apanhado de boas e deliciosas histórias o que o torna um excelente prato a ser degustado em calmo ambiente para desfadigar.

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  2. Desse jeito, caro amigo José Pedro, só me resta dizer, diante do seu supra e super comentário, como o cantor Michel Teló:
    "Nossa, nossa / Assim você me mata".
    Caramba! - como diria o famoso Barretão de guerra.

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