quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

ANEXO: Outras Histórias de Évora

Dourado e Augusto na arte de Gervásio Castro
Marechal visto por Gervásio Castro


Capa da autoria de Gervásio Castro

ANEXO

Outras Histórias de Évora

Elmar Carvalho

Ao completar 62 anos de idade, Marcos Azevedo publicou o livro Outras Histórias de Évora. Eram textos curtos, densos, que a crítica e os doutos não souberam classificar ao certo se seriam crônicas memorialísticas, contos ou apenas simples “causos” anedóticos. Segue, abaixo, uma pequena amostra desses artefatos literários.


               Marechal

            Vi-o muitas vezes a percorrer as ruas e praças de Évora. Metido em velhas fardas que lhe davam, algumas vezes esfarrapadas e amarrotadas, não andava, marchava. Com um velho quepe na cabeça, parecia participar de um desfile na caserna. Certa feita, em meados de 1980, entrou em minha repartição. Os colegas mais brincalhões foram logo tirando lorotas com ele, chamando-o de soldado, que para ele tinha uma conotação pejorativa e de menoscabo. Vendo que eu não sorria, veio até onde eu estava e disse baixinho: “Eles não sabem quem eu sou... Sou alta autoridade do planalto”. Pedi-lhe, então, que os perdoasse, tendo ele assentido. Perdi-o de vista; achei que tivesse ido para outra cidade. Muito anos depois soube que passara a morar no abrigo para idosos. Fui visitá-lo. Recebi a informação de que fugira, dois dias antes. Como certos animais que voltam para morrer no lugar em que nasceram, o velho Marechal fora morrer em seu pago, no meio dos seus.

            Roberto Carlos

            Seu nome era Raimundo, mas desde que enlouquecera, dizem que por causa de uma paixão não correspondida, adotara o “nome artístico” de Roberto Carlos. Um dia, em minha adolescência, vi-o nas calçadas altas da Zona Planetária, bem na esquina de Júpiter, o principal “planeta”. Fazia mímicas para ninguém ou talvez para o vento ou para espíritos que só ele via. Simulava segurar um microfone; acenava para a turma do gargarejo e para “ouvintes” do fundo da inexistente plateia. Fazia meneios, trejeitos e requebros dignos de um pop star.
Julguei fosse mais feliz do que eu, imerso na ilusão de sua loucura. Muitos anos depois perguntei ao acadêmico e psiquiatra Humberto Guimarães se o Raimundo, o nosso popular Roberto Carlos, não seria mais feliz do que qualquer um de nós, porquanto ele viveria na melhor realidade que imaginara para si. Humberto disse-me que não, pois quando um louco melhora de sua doença e volta a piorar, e sente que vai perder a consciência de si mesmo, sofre muito. Em minhas palavras e interpretação: é como se ele sentisse o aniquilamento de seu mais profundo eu; é como se fosse a morte da consciência de seu verdadeiro eu.

Tobago

A primeira vez que o vi, ele se encontrava no Bar Carnaúba. Fazia gestos e esgares. Acenava e fazia reverências, como se estivesse cumprimentando alguma pessoa no recinto. Não o conhecia e nem nunca ouvira falar dele. De repente, olhou em minha direção, e acenou. Respondi-lhe, mas notei que ele não me via. Com efeito, seus olhos vagos fitavam o vazio, talvez o infinito de algum ponto imaginário. Informei-me a seu respeito, e soube que, de segunda a sexta-feira, era um funcionário exemplar do Banco do Brasil, rigorosamente pontual e que nunca faltava, sempre monossilábico, introvertido, ensimesmado. Mas no final de semana se transformava naquele excêntrico e sociável boêmio, a cumprimentar espíritos ou, talvez, os fantasmas de si mesmo. Ou talvez fosse apenas um esquizofrênico dos finais de semana, a evadir-se da rotina e do tédio.

Paru


Quando o ricaço Roland Jacob se deslocava para a capital ou de lá retornava, estacionava seu Land Rover na frente de sua filial da velha urbe. Paru, então, doido manso, ia limpar o carro. Quando indagado a respeito, invariável e laconicamente respondia: "Estou lavando meu carro." Tinha o sonho de ser o prefeito da cidade. A principal meta de sua plataforma eleitoral consistia em levar o riacho Pintadas para Parnaíba e em recompensa trazer o "mar da Parnaíba", como ele dizia com ênfase, a abarcar o mundo com os braços bem abertos. Sem se despedir de ninguém, desapareceu da cidade, como por encanto. Filho da estrada e do vento, nunca se soube de onde vi/era, nunca se soube para onde foi. Ou talvez tenha ficado - encantado.

Ester

Hoje bem sei quanto é triste a loucura. Mas em minha infância, sem a devida consciência dessa enfermidade, achava alegre quando a Ester estava “atacada”. Nos surtos mais severos de sua doença, ela parecia a encarnação da própria primavera, pois se cobria de ramos e flores, e saía a dançar, a cantar e a pular pelas ruas de Évora. Ela era a alegoria viva da flora – das folhas, das flores e das ramadas. Um séquito de moleques a seguia. Alguns, mais extrovertidos, dançavam com ela. Às vezes, no paroxismo de sua loucura, tirava a roupa, e mostrava os seus “recantos mais secretos, mais seletos”. Sem dúvida, muitos adolescentes se “vingavam”, na prática do vício solitário. Hoje, tenho arrependimento de ter sentido alegria dos seus “ataques”, que nunca soube se ocorriam apenas na época de plenilúnio. Hoje sei o quanto a loucura é triste.

Vangogue

Lindalva fazia jus a seu nome: era linda e alva. Além de alva e linda, era loura e simpática. Sempre que passava pelo seu vizinho Ribamar, doente mental, chamava-o de “meu noivo”, a cujo cumprimento ele correspondia com paixão. Sucede que um dia Lindalva noivou de verdade, com seu primo Clemilton, médico e guapo rapaz, com quem veio a se casar. Riba, quando soube da notícia, surtou, e num impulso trágico, como se fosse um novo e diferente Van Gogh, cortou o próprio pênis, cerce, rente à base, como se dissesse em seu gesto tresloucado que se “ele” não fora de Lindalva não seria de nenhuma outra mulher. Medicado a tempo, a hemorragia foi estancada e ele escapou. O rábula Possidônio Vogado, quando soube do acontecido, exclamou em admirável arroubo retórico: “O Riba vai continuar tendo desejo, porém como um direito fulminado pela prescrição ou como um revólver municiado, mas sem gatilho. Como no dizer do poeta, será um fósforo que não dará luz”.

Mudinha

Certo dia em que eu estava no Isabelão, ouvi, vindo de uma das espeluncas, um forte alarido, uns gritos que se assemelhavam a um bodejar. Um tanto apreensivo sobre o que poderia estar acontecendo, perguntei a uma das mulheres o que significavam aqueles sons desconexos e guturais, que sequer pareciam humanos. Obtive a seguinte e concisa resposta: “É a muda gozando. Quando ela goza parece que ela ou o mundo vai se acabar. Toda vez é essa latomia!”

Dourado

Além de boêmio, era compositor, carnavalesco, humorista e exímio churrasqueiro. Em cada período momesco, ele se caracterizava como um personagem nacional, que estivesse em evidência. Certa feita, encarnou PC Farias. Ficou tal e qual. Era múltiplo. Era plural. Dourado era ele próprio e seus “heterodoxos heterônimos pessoanos”.

Romualdo

Era um triste “rapaz alegre”. Patético e passional, era condecorado por inúmeras cicatrizes ao longo dos braços, feitas por ele próprio. Eram as marcas visíveis e concretas das cicatrizes que lhe feriam a alma, a cada amor desfeito ou não correspondido. Pelo que se via estampado na pele, foram inumeráveis as suas decepções amorosas. Viveu intensamente, creio, e cedo morreu.

Hermes e Afrodite

Em minha juventude, sempre que eu e meu amigo Raimundo íamos para o povoado Cantagalo, passávamos pela casa de uma sua tia, onde morava uma moça muita feia e triste, sua prima. Era mais do que feia; na verdade, era uma verdadeira assombração. E o que era pior, tinha um buço, que lhe realçava a fealdade. Seu corpo magro era linheiro como uma estaca, e não tinha nada que pudesse atrair um homem, nem mesmo o vestígio dos seios, que parecia não ter. Fui morar em outra cidade e a esqueci. Três décadas depois, ao reencontrar o meu amigo, perguntei-lhe por sua prima feiosa. Ele foi curto e grosso: “Minha prima se tornou primo, e com certeza já comeu mais mulheres do que nós dois juntos”. Creio esse rapaz fosse hermafrodita. E depois, com cirurgia ou não, se tornou Hermes, libertando-se da Afrodite em que seus pais tentaram transformá-lo.

Mistério

Era a mais bela rapariga do lugar. Contudo, era um enigma; os homens só ficavam com ela uma única vez. E nunca nenhum dos fregueses revelava o que acontecera na alcova. Alguns anos depois, um desses clientes frustrados contou o segredo dessa linda mulher. Apesar de sua enorme beleza e de sua anatomia perfeita e completamente feminina, com curvas acentuadas e belos seios, tinha um avantajado clitóris, que provocava a repulsa da clientela. Terminou se casando, alguns anos depois, com um freguês que lhe apreciou o “defeito”.

Pompoarismo

Quando não se conhecia essa palavra e muito menos se sabia existir o que ela significava, apareceu na cidadezinha uma rapariga que arrebanhou enorme clientela. É que ela tinha uma importante novidade; tinha o que passaram a designar como sendo “bezerro”. E era um bezerro famélico, tal a voracidade e vigor como ele sugava e espremia o membro masculino. Comentava-se que era um verdadeiro torniquete. Quando Possidônio Vogado explicou que a mulher podia ser treinada na arte do pompoarismo, um seu assíduo e ardoroso cliente explicou que o dela era natural, e acontecia quando ela ficava excitada, e ela era muito fogosa. Vogado fez então magistral trocadilho: “Ela não se excitava; se exercitava”. 

Engate

Romildo passou a frequentar a casa de Dolores, sua namorada. Muito formal e sisudo, ganhou a confiança dos irmãos e pais da moça. Certo dia em que ambos ficaram sozinhos na casa, o namoro, que se não era casto era pelo menos cauto, avançou muito, e os dois terminaram indo às vias de fato, com uma completa conjunção carnal. Quando eles estavam no bem bom, já no segundo ou terceiro round, os pais da moça entraram, de súbito, na sala. Com o susto, Dolores teve uma rigorosa contração vaginal, e ensarilhou o sexo do namorado. Não houve maneira de apartá-los, de sorte que foram levados ao hospital da cidade, numa maca, cobertos por um lençol, onde foi providenciado o desengate. O fato apressou o casamento dos jovens, para que a moça não ficasse mal falada.

A papa-anjo

Cremilda era uma “moça velha”, como se dizia na cidade. Não casara e nem tinha amantes. Ganhava a vida ensinando deveres de casa aos pequenos alunos da redondeza. Comentava-se que tinha os seus favoritos, que ela aliciava aos poucos, para os seus propósitos libidinosos.  Só se interessava por menores de doze anos, com medo de engravidar. Fazia o garoto jurar pela salvação de sua alma e pela vida de sua mãe que não revelaria o que se passasse entre eles. Na primeira vez, masturbava-o, para ter certeza de que ainda não tinha líquido seminal. Só após se certificar disso, permitia que o infante a penetrasse, e só até o ponto em que não lhe tirasse o cabaço. Ainda tinha o sonho de se casar virgem, de branco, e com véu e grinalda.

Morcego

Foi o maior e melhor goleiro de Évora. Era uma espécie de Higuita antes de Higuita. Em suas “voadas” espetaculares e espetaculosas, parecia planar ou até mesmo levitar. Daí dizer que somente ele, helicóptero e beija-flor paravam no ar. Mais louco que Higuita, inventou o chute jornada nas estrelas, ao chutar a bola vertical e vertiginosamente para cima, com o bico da chuteira. Num desses chutes, a bola venceu a barreira da gravidade, e ganhou o espaço sideral; hoje, orbita a Lua, como satélite de nosso satélite. Às vezes, deixava sua meta e ia para o campo adversário jogar de atacante, chegando ao ponto de driblar e fazer gols.


Nas ocasiões propícias, simulava deixar a bola passar, quando então saltava para trás para executar a defesa, o que deixava os torcedores assustados e com os nervos em frangalhos. Vez ou outra, com a bola encaixada nas mãos ou ao peito, fazia verdadeiras acrobacias, inclusive dando saltos mortais e outras cambalhotas. Seu curioso apelido se devia ao fato de que, não raras vezes, ao saltar para fazer uma defesa, conseguia ficar dependurado no travessão, à imagem e semelhança de um morcego.

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