terça-feira, 25 de julho de 2017

GOSTO NÃO SE DISCUTE? DISCUTE-SE, SIM

Fonte: Google

GOSTO NÃO SE DISCUTE? DISCUTE-SE, SIM

Cunha e Silva Filho

        Leitor, não vou,  é óbvio, mencionar conversas  íntimas sobre  o que me dizem  acerca de autores, nacionais ou estrangeiros. Principalmente, hoje, um  domingo de sol  ameno que dá vontade de sair de casa a   esmo  até procurar, em vão, encontrar aquilo que chamam de felicidade na terra.
       Já vi  muita gente culta que acha chato  até Machado de Assis. Encontra erros  em passagens de grandes autores europeus,  por exemplo, Honoré de  Balsac, e além disso, não gosta de poesia moderna. Prefere os românticos,  os parnasianos, os clássicos antigos,  latinos ou gregos. Enquanto outros me dizem que Paulo Coelho tem algum mérito. Fico confuso, embaraçado e nem me dou ao trabalho de lhes fazer um censura e mostrar-lhes que  estão errados e que nada entendem da grande  literatura.
       Uma vez, uma colega, estudante de mestrado,  me confessou que já estava cansada de analisar  Carlos Drummond de Andrade. “Chega de Drummond” – resmungou ela. Outros ainda reclamam de um escritor porque, segundo eles, só escrevem  cenas indecentes,  coprológicas. Outros há que detestam um autor por motivos religiosos. De James  Joyce dizem que nada entendem. Atacam  Tolstói, Gorki, Dostoiévski por uma ou outra razão. Outros tampouco  gostam  de Casanova, de André Villon,  de Rabelais. Mas é difícil falarem mal de Cervantes, de Shakespeare. Também seria demais. Enfatizo, leitor,  que estou aqui  falando de opiniões subjetivas de escritores  e de intelectuais.
       Um professor universitário desdenhou do grande  contista João Antônio e soltou  essa bobagem: “Por que não escolheu  um tema de Machado de Assis? Ele, sim, é escritor.” Esse professor era o mesmo  que nunca  leu  Graça Aranha e seguramente não iria ler. O motivo? Não sei.
        Como vê, leitor,  gosto, a princípio,   não se discute em matéria de tudo, inclusive  de literatura. Assim, se fica sabendo de que, em conversas informais,  não faltam   subjetividades  grosserias dirigidas a uma grande autor e a uma grande obra. De uma tacada só, lá se vai  a reputação  de um escritor  famoso, cuja avaliação, movida pela irracionalidade, mera ignorância ou soberba   pretende (não o conseguirá jamais) destruir  um gigante da literatura universal. Desprestigiar um autor é fácil e é covardia,  particularmente quando  já é falecido.
        O pior ainda é que falam até mal de escritores que nunca leram! É verdade. Nunca leram nem  lerão. E não falo de leitor comum, mas de leitor letrado, especializado em literatura.
       Digo e repito  incansavelmente que a literatura, por ser arte maior,  é coisa séria, que merece respeito e não algo que, subjetivamente,  imbecilmente, se possa  discutir  ferindo injustamente  nomes  de méritos da produção literária em todos os gêneros.
      Eis por que se deve ser cauteloso e prudente quando expressamos alguma ideia  envolvendo  juízos críticos apressados ou sem  embasamento  sólido  no que tange ao valor maior ou menor de um escritor.
      De improvisação não se faz crítica nem  se produz  uma obra  literária, uma vez que toda  obra de arte pressupõe um conhecimento  prévio  que se situaria no que se denomina  tradição literária, na formação dos grandes cânones do Ocidente  –  base e até, de certo modo, inspiração responsável por aquele princípio  formulado por Harold Bloom, que é “a angústia da influência,”  angústia sofrida por  um poeta novo em relação a um poeta predecessor.
        Imaginar um escritor,  poeta ou ficcionista,  que não se tenha mais nada a escrever em literatura  é doloroso, sim,  mas  é também fator, segundo Bloom, de renovação, ou como ele afirma, sem esse voluntário  revisionismo,”  “desleituras,”  “desaprisionamentos,” reação "deliberada" e  “perversa,” “distorcida,” de “caricatura de auto-salvação” não se teria   o surgimento  da poesia moderna (apud GRAY, Martin, Dictionary  of literary terms.  London: Longmans York Press,  2nd revised edition, third impression, 1994, p.28).
    Por conseguinte,  deve-se pensar, pelo menos, duas vezes antes de se  julgar aleatoriamente  um autor, uma obra. E a advertência serve para nós todos que lidamos  com  o fenômeno literário e com estudos literários. Não ser leviano  e ligeiro nos julgamentos  inconsistentes de obras alheias é um desserviço  palmar  que se comete  com o criador e a criação literária.
      Ao contrário,  deve-se ter, como em qualquer  campo de estudos,  uma espécie de “educação para a literatura,”  i.e.,  ser elemento  agregador,  responsável,  ético e não se esquecendo de que até pelos escritores que, em língua inglesa, são chamados de minor writers,  devemos ter nosso apreço. 
      Já disse alguém que a literatura  não se constrói apenas de gênios, mas de pequenos e medianos  autores, e é essa mediania  que  consegue levar adiante  a permanência,  no presente e no futuro, da história literária  de qualquer  país.
     E, finalmente,  ainda tenho algo a considerar. Por razões ideológicos ou políticas, autores há que descartam  algumas obras por elas não  se afinarem com a sua posição religiosa  ou filosófica ou porque não são obras edificantes. Recordo-me de uma artigo de Tristão de Athayde que ponderava  que a literatura não é moral, nem imoral, mas amoral. A obra  literária, assim como as artes em geral,  não têm  compromisso com a realidade  empírica. Ela é construção da imaginação, da linguagem, de um estilo,  de um objeto criado pelo artista  livre e esteticamente concebido,  de um  mundo possível, não  um  arremedo  da vida em si.
     O que um personagem, num romance,  por exemplo, declara pensa ou faz,   não deve se confundir  com uma pessoa de carne e osso. Ele é uma construção discursiva da linguagem com o seu mundo próprio, específico,  sua autonomia estética, autotélica,  um mundo à parte.
    Patrulhar as concepções de um personagem não passa de uma perspectiva  distorcida  e ignorante do leitor e das instituições  sociais. Vários escritores, no pais e  no exterior,  foram injustamente  processados pela Justiça porque  se confundiu e ainda se confunde muitas vezes persona, personagem  inventado, ser fictício, “criação de papel,” com  indivíduos da sociedade que se viram retratados ou criticados no imaginário de uma obra  literária.Nada tão longe da verdade.           

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