Dra. Liege Cavalcante, vice-prefeita de Campo Maior, Dr. Raimundo Lima, autor de A Menina do Bico de Ouro, Elmar Carvalho, autor de Histórias de Évora, e Daniele, representante do SENAC |
Domingos José de Carvalho, Dílson Lages Monteiro, Lara Larissa e João Alves Filho, presidente da ACALE |
Dílson Lages Monteiro |
Histórias de Évora e as
formas dos prazeres do tempo (*)
Dílson Lages Monteiro
O que esperamos de uma obra literária? Há leitores de todos
os tipos, e leituras que se prestam a muitos fins; mas quem parte para os oceanos
da literatura não consegue precisar aonde as palavras conduzirão. A
identificação com o tema, o maior ou o menor grau de abstração simbólica do
texto, a linearidade ou alinearidade dos núcleos narrativos, os efeitos de
sentido do vocabulário e da imprevisibilidade do intertextos, as vozes que se
enunciam – e, claro, as experiências do próprio comandante da embarcação –
conduzem a caminhos que nem sempre se consegue controlar, principalmente quando
a carga associativa de percepções e representações mentais possibilitadas pelo
texto é multiforme, e se insere como elemento intrínseco à própria escritura.
O que encontra ou reencontra, pois, o leitor em Histórias de
Évora?
Para situar o leitor, reproduzem-se aqui duas breves
passagens:
“Afagou-lhe os cabelos
e as têmporas. Em seguida, seus dedos percorreram-lhe as sinuosas e bem
delineadas sobrancelhas. Seguiram o contorno da boca. Pousou o côncavo das mãos
sobre as maçãs do rosto em inefável massagem. Após fixá-la em profundidade,
olhos nos olhos, como se quisesse lhe devassar os mais recônditos pensamentos,
colheu-lhe os lábios entreabertos, ansiosos” (p.59).
“Muito vivo ainda sinto
o cheiro da cera de carnaúba, amontoada num grande depósito da Casa Machado e
outros armazéns. Havia as pardas, escuras, de menor valor comercial, e a cera
flor, mais clara, amarelada, de bem mais alta cotação. Recordo o cheiro acre
das amêndoas de babaçu e tucum, que eram revendidas para Fortaleza, Recife e
outros centros exportadores” (p.75).
A adolescência viva e revivida, sobretudo. As pequenas cidades
piauienses que foram expressão do extrativismo nas décadas de 1970 e 1980,
personificadas em sua decadência econômica. São essas as motivações para que o
juiz e integrante da Academia Piauiense de Letras, José Elmar de Melo Carvalho,
o poeta de Rosa dos Ventos Gerais, no auge de sua maturidade literária,
descortine as veredas da prosa romanesca, em narrativa que, fixando-se como
documento vivencial de um tempo que sucumbiu, leve os leitores para além do
retrato social de costumes e valores de um tempo, à curiosidade saltitante que os
sentidos da imaginação instauram.
Duas palavras em síntese definiriam o projeto literário de
Elmar Carvalho, em Histórias de Évora: documento e imaginação. Caberia a esta,
porém, pincelar, por meio do gosto pelos detalhes, em ações reiteradas insistentemente,
por meio de episódios pitorescos, dramáticos ou cômicos que, desse modo,
reproduziriam subjetivamente o próprio êxtase do prazer, o tema central do
romance, a aprendizagem do amor, o que com maior grau de exatidão definiria seu
estilo do ponto de vista temático-discursivo.
A isso se acrescentaria o viés memorialístico que salta aos
olhos, a tal ponto que acertadamente escreveu em prefácio o crítico literário
Cunha e Silva Filho. Resumindo Histórias de Évora, afirmou tratar-se de seu “reencontro proustiano pela memória
voluntária com seus correspondentes lugares nos quais fez o seu aprendizado
sexual – e por que não? – amoroso, espaço irremovível das suas mil lembranças
de situações vividas, sonhadas, de fatos pitorescos, decepcionantes,
constrangedores, humorísticos, melodramáticos e tragicômicos” (P.19).
Cabe, assim, lembrar o que disse Donaldo Schiler sobre o
trabalho imaginativo dos romancistas:
“Primeiro há
fragmentos, lembranças, experiências, textos. Quando estes se organizam,
desencadeia-se o trabalho da imaginação, e desponta o autor como fundador do
universo imaginário. Não favoreceríamos a compreensão do romance, se
equiparássemos o imaginário a um supermercado de pensamentos, frases buriladas,
paixões. A imaginação ordena as partes num todo móvel, aberto, repleto de
indeterminações: o imaginário.” (p.73)
É
essa dimensão perceptual e cognitiva, alicerçada na liberdade, que as
associações mentais constroem. Por isso,
apresentam-se expressivas as palavras de Schiller ao esclarecer:
“Todos os sistemas de palavras e símbolos constroem o universo
imaginário. Fora do imaginário fica o real, ao qual não temos acesso direto. O
imaginário nos permite que dele nos apropriemos e com ele convivamos. A diferença
do imaginário artístico reside na liberdade resoluta, visto que não está
sujeito ao rigor da verificabilidade”. (p.73)
Em Histórias de Évora, a imaginação é ditada pela enunciação
do universo do desejo masculino em criar a ambiência para que a libido seja
tematizada. Seguindo esse raciocínio, são abundantes as alusões a coxas, a
seios, a lábios em cenas de aberto erotismo, quando não a narração do ato
sexual em si em sentenças de léxico despojado. Também frequentes as referências
ao funcionamento dos cabarés e aos costumes que lhe eram comuns.
Do ponto de vista formal, Histórias de Évora é um texto
comportado. O próprio autor faz questão de enfatizar: “Deixo logo bem claro que
não desejei fazer obra de vanguarda. Quis apenas contar umas histórias, pois
sempre entendi que um romance ou conto deve narrar algo. Contudo, não quis
apenas ser um simplório contador de histórias ou “causos”. De fato, embora não
se predisponha a romper com a tradição literária, não lhe faltou inventividade,
considerando-se a estratégia empregada para um maior ou menor distanciamento do
objeto discursivo.
Assim é que Marcos Azevedo, o protagonista, estudante
secundarista, amante dos livros e da arte, que ao longo do livro se transforma
em um septuagenário, declaradamente um “alter ego” do autor, propõe-se a narrar
suas descobertas amorosas e a ação do tempo sobre hábitos e espaços, a partir
de duas instâncias enunciativas, com foco narrativo em primeira e terceira
pessoa. Demarcam-se, pelo rompimento com a linearidade do ponto de vista, não
apenas duas idades cronológicas, mas também um distanciamento em relação aos
acontecimentos que os tornam presentes, cristalizados pela marca da lembrança.
Para enfatizar que o tempo emergente na literatura é um tempo
social, um sentido coletivo, Luis Alberto Brandão e Silvana Pessoa, em clássico
estudo sobre o sujeito, o tempo e o espaço ficcionais lembram que se costuma
pensar no tempo em duas perspectivas. “Uma perspectiva objetiva que associa, ao
tempo, aspectos cosmológicos, físicos (o tempo como parâmetro dos movimentos
descritos pelos astros celestes ou como medida do envelhecimento dos seres). E
uma outra perspectiva que sugere que há, sempre, uma percepção, uma consciência
do tempo – perspectiva que torna possível se falar de tempo psicológico,
subjetivo, ou de tempo imaginário”(p.52). Estariam as duas perspectivas inter-relacionadas,
porque são modelos de percepções, exteriores a elas, criando, dessa maneira, a
referência e a interpretação.
Cria Elmar Carvalho a dimensão de um tempo imaginário, assinalado
pela imprecisão (não seria inexata a linguagem do corpo?) de uma forma
particular de entretenimento, ao se remeter à idade cronológica do personagem-protagonista
Marcos e às ações que se relacionam de modo individual à cada fase das vivências
desse personagem. Cria um movimento que
traduz as transformações do corpo físico e da geografia social e humana. Nessa
tarefa, cada capítulo funciona como uma digressão a aspectos particulares da
memória, que, não obstante pareçam desconectados em algumas passagens, vão
gradativamente estabelecendo o vínculo causal, responsável não somente pela
unidade temático-discursiva, mas também, e sobretudo, pela dimensão estética do
texto. Ela é alcançada pelas descrições, em detalhes, de aspectos culturais
sobre um “modos vivendi” específico como elemento de sociabilidade, o mundo dos
antigos cabarés. Para atingi-lo, emprega a repetição intensa de episódios
relacionados à descoberta do sexo, realçando-lhe os significados.
Nesse processo, o narrador leva o leitor, independente do
foco que escolhe para contar, a questionar o que é o belo, a sentir as
pulsações da adolescência sobre o corpo, a vasculhar a ousadia e os temores da
frequência às casas de sexo, a conhecer e relembrar os rituais de comportamento
que antecediam ao ato sexual, a mergulhar nas curiosidades, satisfações e
decepções despertadas pelo amor. Conduz, ainda, o que é enfatizado pela voz que
conta como fundamental para a narrativa, ao universo de Évora, uma fusão de
Parnaíba e Campo Maior, conforme diz o autor, em nota de advertência.
Aqui está retratado o perímetro central de ambas as urbes, em
sua atmosfera de encanto arquitetônico:
“Na Rua Grande, (...)
havia os sobrados mais antigos e os luxuosos chalés e palacetes de seu apogeu
comercial, da época áurea do extrativismo, da industrialização do pó da
carnaúba, da maniçoba, do jaborandi, da oiticica, do algodão e do óleo de
babaçu” (P.75)
“Velhas casas
solarengas, vetustos sobrados, antigos casarões em estilo colonial (...) a 150
metros da matriz (...) a Zona Planetária” (p.76)
(*) Palestra pronunciada pelo professor, escritor e poeta Dílson Lages Monteiro, membro da Academia Piauiense de Letras, no auditório do SENAC, em Campo Maior, no dia 07/07/2017, por ocasião do lançamento de Histórias de Évora, em cuja solenidade também foi lançada a obra A Menina do Bico de Ouro, da autoria de Raimundo Lima.
Belo e penetrante estudo do romance "Historia de Évora. Com este estudo dos melhores que li do professor Dílson Lages, não me resta dúvida de que estamos diante de um ensaísta e crítico de méritos incontestes.
ResponderExcluirAo analisa, sob uma abordagem múltipla, a ficção de Elmar Carvalho, Dílson Lages avança na compreensão e no alargamento interpretativo e hermenêutico do texto do romance. Sonda-o por dentro e por fora e, com estilo de um ensaísmo de estuante atualização, na expressão e na forma de organização ensaística, Dílson vai costurando aos poucos o que de elementos estruturais da ficção de Elmar vai revelando e desvelando numa direção analítica que só ilumina a textualidade da obra em exame. Dílson Lages reúne duas qualidades de crítico-ensaísta: um domínio crescente dos recursos teóricos e a capacidade de saber como utilizar esse instrumental valorizado pelo conhecimento adquirido em seus estudos e pesquisas de análise textual e de análise do discurso. Acresce a isso suas imaginação de poeta, de ficcionista que só reforçam o texto ficcional perfilado.
Cunha e Silva Filho
Obrigado pelo frequente estímulo, meu estimado amigo!
ExcluirAbç. Dílson Lages
Caros Dílson e Cunha,
ResponderExcluirDepois de minhas "advertências" e sobretudo depois do soberbo prefácio, ou melhor estudo introdutório da autoria de Cunha e Silva Filho, não imaginei que alguém pudesse dizer algo de importante e de novo sobre meu livro. Laborei em ledo engano; o ensaio do bravo Dílson Lages Monteiro é uma prova do quanto eu estava enganado. O texto do Dílson será publicado na próxima edição de meu livro, tanto no formato digital como impresso, a título de posfácio.