A morte do preso do cambo d' água
Chico Acoram Araújo*
O jornal “O
Dia” denuncia o estado de abandono em que se encontram os detentos da
Penitenciária de Teresina. Sobre a fome porque passam os presos, fala-se que o
“Estado está ensaiando, embora sem consciência formada [aplicar] a pena de
Talião”. (10 de fevereiro de 1957).
A antiga penitenciária de
Teresina, demolida em 1978, ficava situada em um quarteirão fronteiro ao
Estádio Lindolfo Monteiro, onde hoje é o Ginásio Verdão. Em uma tarde calorenta
de verão, um preso carregando um cambo de duas latas vazias de querosene sobre
os ombros descia a Rua Jônatas Batista, em direção ao rio Parnaíba, acompanhado
por um policial armado com um Fuzil Mauser fabricado no começo do século vinte.
O soldado, vestido com sua surrada farda cáqui, um pouco atrás, caminhava com
passos lentos e cadenciados, mas mantinha olhar vigilante. Abastecer o presídio
com as águas do Velho Monge era a missão cotidiana dos presos. Nesse mister,
outras duplas se sucediam, diariamente, até o sol se por. O nome do preso não consta
de minha memória. Só sei que não era o temido pistoleiro Joaquim Leandro
Marciel, conhecido no mundo do crime, nas décadas de 50 e 60, como Catanã,
morador da Penitenciária Campo de Marte há muito tempo por conta de vários
assassinatos que cometera no Piauí. Ele era natural da Paraíba, da região de
Cajazeiras. Feroz e temido, aterrorizou, além do Piauí, os Estados da Paraíba e
Ceará. Catanã tornou-se famoso pelas suas façanhas de exímio matador. “Já estou
com raiva”, dizia quando era contratado para matar alguém. Este não carregava
água do rio Parnaíba; tinha certas regalias, protegido que era pelos poderosos.
Na época, falava-se que, nos finais de semana, o famoso pistoleiro saía da
cadeia, na calada da noite, para fazer uns “servicinhos extras” até mesmo fora
do Estado do Piauí. Será que isso é lenda?
Esse fatídico itinerário diário
dessa estranha dupla consistia no seguinte:
saiam da prisão pública (construída em 1866, depois denominada de
Penitenciária Campo Marte), dobravam à esquerda, entrando na Rua Jônatas
Batista, passavam pela antiga Santa Casa de Misericórdia (primeiro hospital de
Teresina, edificado em 1860; hoje funciona uma entidade voltada para
assistência aos surdos e mudos). Em seguida, descendo a mesma rua, passavam em
frente ao Grupo Escolar João Costa (atualmente funciona uma escola estadual de
teatro, música e dança) e pelo Asilo de Alienados, fundado em 1907 (hoje
funciona a Escola Benjamin Batista), ambos localizados ao lado Norte do Estádio
Lindolfo Monteiro; depois, ultrapassavam o desativado Posto Fiscal, situado no
final da Rua Jônatas Batista, até chegar ao rio Parnaíba, sob a ponte metálica
“João Luís Ferreira” (a primeira ponte construída sobre o Rio Parnaíba, no
estado do Piauí, inaugurada em 2 de dezembro de 1939), onde as latas eram
abastecidas com o precioso líquido.
Na época, as famílias que moravam
fora do limite urbano de Teresina, e que não possuíam poços d’água em suas
moradias, costumavam se abastecerem com água do velho monge, transportada em
ancoretas no lombo de animais, ou em cambo d’água nos ombros dos moleques, ou
em vasilhas postas sobre rodilhas de tecido acomodadas nas cabeças das
mulheres. Cenário comum de Teresina do século XX.
Naqueles tempos, era comum
observar prisioneiros da velha cadeia carregando água que coletavam do rio
Grande dos Tapuias, nas proximidades da ponte metálica, pois a penitenciária
não possuía água encanada.
Mas, a Capital do Piauí, no seu
perímetro central, já possuía sistema de abastecimento d’água, iluminação
pública, coletivos, bondes motorizados e outras modernidades vistos em outras
cidades do Sul do Brasil e também da Europa. A cidade estava em franco
desenvolvimento. A população chegava em torno de 100 mil habitantes. Imigrantes
vinham de todos os lugares, principalmente dos vizinhos Estados do Maranhão e
Ceará, e do interior Piauí.
Certo dia do início dos anos 60,
ouvi, da minha sala de aula do então Grupo Escolar João Costa, o som de um tiro
seco e forte no cruzamento da Rua Rui Barbosa com a Jônatas Batista. O
prisioneiro escalado para pegar água no rio Parnaíba empreendeu fuga e tentou
embarcar em um ônibus que passava, no momento, em direção à Timon, do outro
lado do rio. O soldado, atento, não vacilou e desferiu um tiro certeiro que
acertou a nuca do pobre homem, abatendo-o incontinente. O sangue escorreu pela
calçada do centro social, a antiga Santa Casa de Misericórdia.
No livro “Teresina 160 Anos do
Jornal “O Dia”, 2. Ed., pág. 33 e 34 (org. por Antônio Fonseca Santos Neto)
observa que a Santa Casa de Misericórdia foi
o primeiro hospital da nova Capital do Piauí, e que representa uma das
tentativas de criar em Teresina um sistema de saúde pública. Essa instituição
foi concebida com a intenção de ajudar aos pobres e indigentes de Teresina que
precisavam de cuidados médicos e laboratoriais. Os ricos de Teresina não eram
internados nesse hospital, mas atendidos em suas próprias residências por
médicos particulares. A Santa Casa de Misericórdia, e outros estabelecimentos
do tipo, tais como o Cemitérios São José, o Asilo dos Alienados, a Cadeia
Pública, foram todos construídos fora do limite da zona urbana da cidade.
Hoje quando passo nesse local,
recordo-me do corpo ensanguentado do infeliz preso estendido no chão. E por
algum tempo após a morte do detento, uma caridosa senhora que morava nas
imediações acendia, ao anoitecer, uma vela no peitoril de uma das janelas
daquele vetusto prédio. Triste memória; tinha eu, apenas 10 ou 11 anos de
idade.
(*) Chico Acoram, formado em
contabilidade, é funcionário público federal e cronista
O cacique voltou com todo o gás!Bom retorno, Acoram!
ResponderExcluirObrigado, Dr. Araújo. Vou me esforçar para escrever outros escritos.
ExcluirO nosso cacique está com a aljava abarrotada de flechas, e breve teremos novos textos.
ResponderExcluirDr. Elmar,
ResponderExcluirMinha pontaria não é das melhores, mas vou tentar uns tiros ao alvo.