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Capitão Domingos Dias da Silva
Reginaldo Miranda
Um dos principais homens de
negócio do Estado Colonial do Maranhão-Piauí, no último quartel do século
XVIII, foi o português Domingos Dias da Silva, estabelecido na vila de São João
da Parnaíba. Natural da freguesia de Padornelos, concelho de Montalegre, no
norte de Portugal, era filho de João Dias da Silva, vereador e juiz ordinário
na referida freguesia de Padornelos, e de sua esposa Maria Gonçalves; e avós
paternos Manuel da Silva e Ana de Oliveira, todos naturais e moradores no
referido lugar.
Em sua terra natal, Domingos Dias
da Silva viveu a infância e juventude, alternando o tempo entre os estudos
regulares, as brincadeiras típicas da época e o trabalho junto ao genitor.
No entanto, mal completa a
maioridade realiza o sonho que há muito acalentava de fazer fortuna na colônia,
como muitos de seus conterrâneos, cujas histórias de vida, ouvidas nas rodadas
de boca-da-noite, embalaram seus pensamentos juvenis. Tão logo atingiu aquela
idade necessária ao amadurecimento intelectual reuniu alguma economia, recebeu
a bênção dos genitores, embarcou em um navio no porto e rumou para os pampas do
Rio Grande do Sul, onde, certamente tinha alguma referência. Ali chegando não
perdeu tempo, madrugando para o trabalho: arrendou terras, criou e
comercializou gado, entre os mais diversos gêneros e fazendas, iniciando uma
atividade que, mais tarde, iria desenvolver com experiência no Piauí. Em pouco
tempo fez fortuna. Quem assim testemunha é um seu contraparente, em 1877, o
coronel José Francisco de Miranda Osório, casado com uma sua sobrinha-neta,
dizendo que ouvira de seu tio-afim e sogro Manuel Antônio da Silva Henriques,
antigo caixeiro, sobrinho e testamenteiro daquele. Portanto, quem lhe passou as
informações foi uma pessoa muita próxima dos dois, que convivera com o
biografado. Segundo a informação, quando Domingos Dias da Silva veio para o
Piauí, em 1768, trazia não pequena fortuna, traduzida em moedas, obras de ouro
e prata, além de outras em barras fundidas.
Entretanto, como se trata de
memória oral, fundada na tradição familiar, pode merecer reparos sendo
necessário o cotejamento com a documentação histórica. O historiador Odilon
Nunes, bem analisou esses fatos chegando à conclusão, com argumentação sólida,
de que em 1770, Domingos Dias da Silva ainda não estava no Piauí, caso
contrário, “teria concorrido no fornecimento de carne ao Pará” (NUNES, Odilon.
Economia e finanças: Piauí Colonial. In: Estudos de História do Piauí. 2ª Ed.
Coleção Centenário 8. Teresina: APL, 2014).
Para aquele dedicado estudioso de
nossa história, Domingos Dias da Silva, mui provavelmente “chegou a Parnaíba em
28 de março de 1772”. Baseou sua presunção numa missiva que o governador
Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, enviou ao juiz ordinário de Parnaíba, em
resposta às notícias anteriormente recebidas:
“Entre as novidades que me refere
no Diário de V. Mcê, do mês de março, veio dizer-me que no dia 28 do dito mês
chegava a essa vila João Paulo Diniz no seu barco vindo do Maranhão com toda a
sua família, e que no mesmo também viera um homem, cujo nome ignorava, com
mulher e filhos para na dita vila se estabelecer” (CABACap. Livro 5, 132 a
132v. Carta de 21.4.1772. In: NUNES, Odilon. Economia e finanças: Piauí
Colonial. In: Estudos de História do Piauí. 2ª Ed. Coleção Centenário 8. Teresina:
APL, 2014).
Entretanto, ao contrário do que
presumiu Odilon Nunes, aquele mencionado passageiro que despertara a atenção do
governador não poderia ser Domingos Dias da Silva, porque este veio solteiro e
seus dois herdeiros, havidos com mulheres também solteiras, já nasceram no
Piauí. Também, sobre não haver concorrido no abastecimento de carne ao Pará em
1770, temos uma explicação. Poderia perfeitamente já morar na Parnaíba, porém,
tendo chegado dois anos antes ainda estava se organizando, não tendo, assim,
condições de ter enfrentado aquele empreendimento. Ainda, ao contrário do que
afirma o ilustrado parente, e foi lembrado pelo diligente Odilon Nunes, naquele
tempo ainda não havia sido implantada a indústria de charque no Rio Grande do
Sul. Logo, não foi ali que se iniciou nesse comércio nosso biografado, nem foi
pioneiro no Piauí. Para nós, Domingos Dias da Silva pode ter chegado a Parnaíba
mesmo em 1768, a convite de João Paulo Diniz, com ele tendo se iniciado no
comércio de charque a partir de 1773, quando implantou suas fazendas, feitorias
e adquiriu as primeiras embarcações, logo mais suplantando o preceptor.
Portanto, se João Paulo Diniz foi
o introdutor da indústria de charque no Piauí, Domingos Dias da Silva foi seu
consolidador e maior expressão desse comércio, praticamente dominando-o.
Também, foi o pioneiro da navegação em alto-mar, do comércio direto entre a
vila de Parnaíba e a metrópole de Lisboa, iniciado em 1779. Vejamos o
depoimento do coronel José Francisco de Miranda Osório em carta dirigida ao
desembargador Cândido Gil Castelo Branco, então no Rio de Janeiro(1877):
“Teve aqui grossa riqueza,
tornando-se rico fazendeiro, lavrador com grande número de escravos e
negociante de grosso trato, em cujo manejo custeava 5 navios, ocupando 3 na
exportação das carnes e 2 que navegavam diretamente para Lisboa e Porto, a
conduzir fazendas e gêneros daquele país, que vinham ao Maranhão despachar na
alfândega, e dali para aqui. Tornou-se quase que exclusivamente o arrematante
dos dízimos desta capitania, desde a Parnaíba até Parnaguá, no que era sempre
preferido, porque os pagava à vista. Dos seus gados – os bois eram para o
charque, as fêmeas para situar fazendas.
‘Este homem faleceu em 1793,
deixando em movimento o grande estabelecimento de charque, e colossal fortuna,
...
‘Com o estabelecimento de charque
de Domingos Dias, outros homens daqui estabeleceram-se também, alguns
coadjuvados por Domingos Dias, e todos vendiam a este suas carnes, de forma que
o único exportador delas era o mesmo Domingos Dias. Há história antiga que sei
em grande parte por tradição, e informações que obtive do meu falecido sogro, o
coronel Manuel Antônio da Silva Henriques, que era sobrinho e foi caixeiro e
testamenteiro do tio o dito Domingos Dias da Silva”.
O ilustre piauiense ainda tece
valiosas informações sobre a forma como eram preparadas as carnes para
exportação:
“Preparava-se a carne de duas
formas – de tassalho e de posta. Depois de seca em tabuleiros recolhia-se ao
armazém. Por ocasião da exportação era empilhada no porão do navio em sua quase
totalidade, indo algum em garajau. Tinha grande alcance comercial, pelo que
matavam-se anualmente alguns milhares de bois. Exportava-se a carne para a
Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará e uma ou outra vez foi até o Rio de Janeiro”
(In: COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia Histórica do Estado do Piauí. Vol. 1.
3.ª Ed.. Coleção Centenário 17. Teresina: APL, 2015).
Esse é o testemunho guardado na
memória familiar e na tradição secular da Parnaíba. Porém, o trecho aqui transcrito
encontra respaldo na documentação histórica. É bem verdade que Domingos Dias da
Silva não foi o pioneiro da indústria de charque no Piauí. Porém, depois de
cinco anos na Parnaíba, a partir de 1773 assume a liderança dessa indústria e,
por vinte anos, foi o maior exportador desse produto em todo o Estado Colonial
do Maranhão-Piauí. Ao chegar a Parnaíba no ano de 1768, como quer a memória da
família, trazendo não pequena fortuna angariada no Rio Grande do Sul, abre
casas comerciais, instala fazendas, feitorias, compra e/ou constrói sumacas e,
por fim, depois de cinco anos se lança na indústria do charque em sucessão a
João Paulo Diniz. Com o tempo, lança-se na arrematação dos dízimos reais desde
a Parnaíba até os confins de Parnaguá, tornando-se o preferido nas arrematações
trienais, em face de pagar à vista. Parnaíba passa a atrair embarcações de
praticamente todos os demais portos do Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro,
Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará, que trazendo mercadorias da Europa as trocam
pelo charque e o couro. Aquelas são vendidas aos fazendeiros do sertão,
enriquecendo os comerciantes, sobretudo a Domingos Dias da Silva, que assume o
monopólio desse comércio. Depois de pouco tempo nesse labor angariou monumental
fortuna e tornou-se o homem mais rico do norte do Brasil, com invejável
patrimônio.
E porque a navegação costeira já
não era suficiente para atender às suas necessidades, vencendo todas as
adversidades burocráticas, em 1779 inaugura a navegação de alto mar, iniciando
o comércio direto com a metrópole. Aliás, esse assunto foi objeto de atenção do
historiador Odilon Nunes, que assim se reportou:
“O comércio direto com a
Metrópole parece que foi feito também por Domingos Dias da Silva. Conhecemos
alguns documentos em torno da licença que lhe foi concedida e a cassação dessa
licença, porque Parnaíba não tinha alfândega em que se despachassem as
mercadorias que saíam prejudicando assim a Fazenda Real (CABACap. Carta de 29
de janeiro de 1779, de Joaquim de Melo Póvoa à Junta Governativa do Piauí.
Livro 2. 2ª Parte. P. 129v/130. Carta de 29 de abril de 1778, da Junta
Governativa a Domingos Dias da Silva. Livro 33. P. 37. Carta de 18 de abril de
1779, da Junta Governativa ao Juiz e Oficias da Câmara de Parnaíba. Livro 33.
P. 72v. Carta de 5 de junho de 1779, da Junta Governativa ao General do Estado.
Livro 23. P. 71v).
‘Admitamos a possibilidade de que
seus barcos tenham viajado posteriormente para a Europa, em viagem direta, sem
o obrigatório trânsito pelas capitanias que tinham alfândega, porque Simplício
Dias, em 1803, quando pede, com outros, a criação da alfândega de Parnaíba,
dissera ‘que não pudera obter êxito do Exmo. Sr. General que se continuasse com
a navegação da sua sumaca em direitura deste porto para o de Lisboa, como fora
concedido a seu falecido pai... (CABACap. Ofício de 19 de julho de 1803, de
Pedro José César de Menezes a Simplício Dias da Silva. Livro 45. P. 1v/2.
Ofício de 25 de julho de 1804, de Pedro José César de Menezes a Simplício Dias
da Silva. Livro 45. P. 13. Provisão de 23 de setembro de 1803, do Conselho
Ultramarino. Livro 46. P. 8/9. Antonino Freire. Limites entre o Piauí e o
Maranhão. 1907. P. 81/88).
‘Não é duvidoso que haja
documentos que elucidem o fato.
‘A criação da alfândega só mais
tarde seria conseguida após a Independência do Brasil” (NUNES, Odilon. Economia
e finanças: Piauí Colonial. In: Estudos de História do Piauí. 2ª Ed. Coleção
Centenário 8. Teresina: APL, 2014).
De fato, como previu Odilon
Nunes, existe sim documentação que comprova ter o megaempresário Domingos Dias
da Silva inaugurado a navegação direta do Porto das Barcas, em Parnaíba, para o
reino, em 1779, época da correspondência vista pelo referido historiador. Para
isso conseguiu o passaporte diretamente com o governo interino do Piauí. Porém,
muitos foram os entraves burocráticos, enfrentando percalços no retorno por ter
sido a licença cassada pelo governador do Maranhão, Joaquim de Mello e Póvoas.
Dessa forma, em 1779, foi direto de Parnaíba para Lisboa, mas no retorno foi
obrigado a vir pelo porto de São Luís, submetendo-se à alfândega local. E na
nova expedição que fizera no ano seguinte, na ida e volta foi obrigado a passar
pelo porto de São Luís do Maranhão, onde tinha alfândega. Nessa navegação
persistiu com dois navios de sua propriedade, alargando, assim, as
possibilidades econômicas de Parnaíba e do Piauí.
Nessas circunstâncias, em face da
cassação da licença pleiteia o Senado da Câmara de Parnaíba, em 29 de dezembro
de 1779, que na ausência de alfândega, lhes seja autorizada e concedida a
franquia daquele porto para o livre comércio com o reino, e o mesmo Senado
autorizado a cobrar os direitos da Real Fazenda. Justificam o pleito “porque
pondo-se este porto franco com liberdade de comércio, e saírem dele as
embarcações em direitura ao reino, e dele virem da mesma forma em direitura a
este porto, resulta grande aumento ao País, e muita conveniência à Fazenda
Real, e aos moradores não só da capitania do Piauhi, mas também a grande parte
dos da capitania do Maranham, que vivem pelo sertão dentro, e padecem o mesmo
discômodo dos do Piauhi, porque ainda que queiram tratar da agricultura das
terras, também não podem dar saída às suas drogas, por as não poderem levar ao
Maranham pela dificuldade dos caminhos, o que lhe fica muito favorável a este
porto, pela liberdade que lhe franqueia este rio da Parnahiba, que é navegável
de todo o ano com canoas, e divide esta capitania da do Maranham, correndo por
entre elas mais de duzentas léguas, e por ele podem descer todos os efeitos da
agricultura dos sertões com muita facilidade, e tirarem-se muitas madeiras para
fazerem as embarcações, de que abundam as matas da beirada do dito rio”
(AHU-ACL-CU 016-Cx 13, D. 773).
Evidentemente, que esse pleito do
Senado da Câmara da vila de São João da Parnaíba, foi formulado por influência
de Domingos Dias da Silva, não sendo, porém, atendido pelas autoridades. Por
essa razão, depois de duas expedições de suas embarcações para a corte, sendo
uma direta e outra passando pela alfândega do Maranhão, em 1781, pede ele à
rainha licença e passaporte aos proprietários das embarcações da vila de São
João da Parnaíba, para navegarem daquele porto direto para a Corte, na forma
que com ele já se havia praticado. Pede também a criação de uma alfândega na
Parnaíba.
Então, sobre esse pleito, a
pedido do Conselho Ultramarino(Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da
Marinha e Domínios de Ultramar, Martinho de Melo e Castro), emite parecer o
governador do Maranhão, D. Antônio de Sales e Noronha, relembrando duas
ocasiões anteriores em que o mesmo Domingos Dias da Silva navegara para a
Corte:
“Que requerendo o suplicante
Domingos Dias da Silva ao governo interino do Piauí, licença e passaporte, para
do porto da Parnaíba expedir em direitura para o dessa Corte a sua sumaca,
aquele governo lhe facilitou a sua pretensão, ordenando à Câmara lhe tomasse os
manifestos, e concedesse passaporte; em virtude do que fez ele a primeira
expedição no ano de 1779; mas constando ao meu antecessor do modo porque ela se
fez, em a certeza de não haver naquele porto Alfândega nem Ministros
competentes para lhe dar os despachos do estilo, e arrecadar o direito do
subsídio estabelecido nos couros em cabelo, e curtidos que saem destas
Capitanias, passou as ordens necessárias a impedir a dita navegação em
direitura; do que sendo eu ciente, voltando a sumaca dessa Corte a este porto,
lhe fiz pagar todos os direitos que devia, e ao mesmo tempo ratificando a ordem
do dito meu antecessor; de que resultou, que intentando o dito suplicante fazer
segunda expedição, mandar a sumaca a este porto, onde recebeu os despachos para
seguir como seguiu a sua viagem. É porém certo, que a obrigação de fazerem esta
escala as embarcações que se destinarem da Parnaíba para esse reino, é de
incômodo e também pode ser de prejuízo pelo perigo da entrada e saída desta
barra, e pela maior despesa que sem dúvida hão de fazer na demora que aqui
tiverem. Mas também é certo, que não havendo ali alfândega, podem ter
descaminhos os direitos reais; pois ainda que presentemente o contrato dos
subsídios estar por arrematação, e o contratador tem naquela vila administrador
que cuide na sua arrecadação, pode bem suceder, que não havendo quem remate
este contrato venha a Real Fazenda a experimentar decadência” (AHU-ACL-CU
016-Cx 13 – Doc. 787).
Em continuidade ao seu parecer,
acrescenta o governador do Maranhão, em sintonia com o que dissera dois anos
antes os vereadores do Senado da Câmara da Parnaíba:
“Esta vila de S. João da Parnaíba
vai em aumento por o seu porto ser mui frequentado de embarcações de todos os
mais portos do Brasil: nele dão saída a muitas fazendas da Europa, que vendem a
troco de bois, que fazendo-os em carnes secas as transportam com os couros para
os mesmos portos, e também para esse reino, como tem feito o suplicante, e o
virão a fazer outros, quando se lhe franqueie este comércio; porque então se
aplicarão também aqueles moradores à cultura do algodão e do arroz, na certeza
de que ali acharão logo quem lhes compre, ou embarcações para os navegarem por
sua conta” (AHU-ACL-CU 016-Cx 13 – Doc. 787).
Por fim, conclui D. Antônio de
Sales e Noronha, seu parecer opinando da seguinte forma:
“Quando criar-se na dita vila
alfândega, parece-me, que é o meio mais útil para evitar qualquer descaminho
dos Direitos Reais, que devem pagar os gêneros de exportação, como os de
importação, concedendo-lhe a navegação em direitura desse reino; porque ainda
que ao princípio seja de pouca importância, em breves anos virá a ser de um
considerável rendimento, e por consequência a mesma vila uma interessante
colônia.
‘Não se criando nela alfândega,
não descubro outro meio para a arrecadação dos direitos, que o de nomear-se um
Provedor Comissário, com oficiais competentes, que deem os despachos
necessários, e ponham em arrecadação os mesmos direitos, com obrigação de dar
conta a esta Junta da Real Fazenda, pela qual se devem nomear os tais
comissários com os ordenados proporcionados ao trabalho que ali podem ter.
‘Isto é o que me parece, e o que
S. Maj., determinar há de ser sempre o mais conveniente. Deus guarde a V. Ex.a.
Maranhão, 14 de novembro de 1781. D. Antonio de Sales e Noronha” (AHU-ACL-CU
016-Cx 13, D. 787).
De fato, nem foi criada a
alfândega tão pleiteada pelos comerciantes e políticos da Parnaíba, nem foi
autorizado o Senado da Câmara a administrar o comércio e cobrar os impostos
reais. Porém, foi acatado esse parecer e criado o cargo de Provedor Comissário
para despachar e pôr em arrecadação os direitos reais, submetido à Junta da
Real Fazenda, sendo nomeado para ocupá-lo o criador e militar, João Paulo
Diniz. De toda sorte, até o fim de sua vida foi o capitão Domingos Dias da
Silva, incansável em sua luta pela criação da alfândega de Parnaíba, o que
teria aberto novas possibilidades comerciais para a localidade.
Persistindo nesse comércio com a
metrópole, em 21 de junho de 1785, o capitão Domingos Dias da Silva volta a
enfrentar problemas com o Real Fisco de São Luiz do Maranhão. No momento em que
sua sumaca por nome Nossa Senhora da Conceição Santo Antônio e Almas, ancorava
no Porto das Barcas, vinda de Lisboa, teve toda a sua mercadoria apreendida
pelo juiz da Real Junta de Arrecadação do Maranhão. Debalde foi sua
argumentação de que as referidas mercadorias haviam sido despachadas pela
alfândega de Pernambuco, quando o navio ali aportara antes de se dirigir a
Parnaíba. Então, seguiu em sua sumaca até São Luís, acompanhando a mercadoria
ia transportada em outra sumaca com o juiz e ali fazendo diversos pleitos para
conseguir a sua liberação. A história de sua vida é, pois, a de um homem de
visão e capacidade empreendedora que enfrentou toda sorte de adversidade para
fundar indústrias e fazer comércio na colônia. Em petição à Junta de
Arrecadação da Real Fazenda, justificou o pioneiro de nosso comércio marítimo:
“Diz o capitão Domingos Dias da
Silva, assistente na vila de São João da Parnaíba, que mandando para Lisboa a
sua sumaca da invocação de Nossa Senhora da Conceição Santo Antônio e Almas,
mandou logo recomendar ao seu correspondente Policarpo José Machado, que lhe
não mandasse nela fazenda alguma, e tão somente com carga de sal para as
oficinas que tem o suplicante naquela vila, em que manda fazer carnes secas;
recomendando outrossim ao dito seu correspondente que lhe mandasse uma receita
de fazendas em navios que viessem ao porto desta cidade [de São Luís do
Maranhão]; o que tudo executou o correspondente do suplicante inteiramente,
mandou-lhe a sumaca sem outra carga tal que a do sal pedido, como foi
averiguado a requerimento do suplicante, estando a dita sumaca em franquia na
barra daquela vila, e tudo consta nos documentos número primeiro, segundo,
terceiro e quarto. Vendo o correspondente do suplicante que não haviam navios
para o porto desta cidade com a brevidade que lhe era recomendada a remessa das
fazendas, enviou estas pelo navio São José Macapá, capitão José Ferreira
Loires, e pelo navio Mãe de Deus e Santa Ana, capitão Ignácio José Baptista, para
a cidade de Pernambuco a entregar a Domingos Pires Ferreira, como consta das
carregações, e cartas número quinto, sexto, sétimo e oitavo, o qual tomando
conta delas as fez despachar naquela alfândega, que por se achar sumaca do
suplicante naquele porto a demorou para trazer as ditas fazendas mandando ao
suplicante a cópia, e conta das despesas que fez com os despachos das mesmas,
conta com os documentos números nono, décimo, undécimo, duodécimo, décimo
terceiro, décimo quarto e décimo quinto” (AHU-ACL-CU 015-Cx 155, D. 11159).
Então, anexou à justificação
diversas cópias de documentos, inclusive guias e certidões emitidas pelo juiz e
oficiais da mesma alfândega de Pernambuco, provando a legalidade do transporte
de sua mercadoria. Sobre o assunto acrescentou:
“Chegou enfim a dita sumaca ao
porto da vila de São João da Parnaíba em tempo que nela se achava o doutor juiz
da alfândega desta cidade, Antônio Pereira dos Santos, e sem mais averiguação
da certeza do referido, que se prova pelos documentos indicados, pegou na dita
fazenda, e a mandou passar para a sumaca, em que a transportou para esta cidade
sem atender nem aos muitos protestos que lhe fez o suplicante, nem aos
oferecimentos que fez de dar as mais abonadas fianças a toda e qualquer
determinação, que pela Real Junta da Fazenda desta cidade ultimamente fosse
deliberado, e nem ao risco, que correm as fazendas na perigosa viagem daquele
para este porto, e deste para aquele. Com este procedimento não só se sente o
suplicante muito prejudicado, mas a mesma Real Fazenda de Sua Majestade, porque
é notório, e ninguém duvida, que o suplicante é um dos vassalos mais úteis que
tem Sua Majestade neste Estado, pois utiliza não só a Real Fazenda dele, mas a
de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, e a todos os povos desses quatro
Estados. A Fazenda Real deste Estado, porque o suplicante tem arrematado os
subsídios e dízimos da capitania do Piauhi por preços avultados, e em ocasião
que não há lançadores. A Fazenda Real de Pernambuco, porque paga de cada arroba
de carne que para lá manda cento e sessenta reis de subsídio, e no Rio de
Janeiro por cada arroba quarenta reis de direitos na alfândega, de cada coiro
sessenta reis, e de cada vaqueta quarenta reis, sendo o menos que manda para
aquelas cidades todos os anos quinze mil bois salgados com o seu sebo, coiro e
vaquetas correspondentes; de cujos direitos privou o dito Ministro àquelas
alfândegas este ano, e àqueles e este povo da utilidade, que desta remessa de
carne lhes resulta, com o procedimento de trazer a fazenda do suplicante para
esta cidade, e ao suplicante em sua companhia. Todos sabem que nos meses de
julho, agosto e setembro, se fazem as matanças dos gados para os reduzir a
carnes secas. Nestes mesmos meses é quando se compram as boiadas naquela vila.
Neles arrecada o suplicante as suas dívidas, cobra os subsídios da coirama e
vaquetas que se embarcam, cobra os dízimos dos gados que se lhe devem para
fazer os pagamentos anuais da Real Fazenda, e é quando carrega as suas sumacas
para as despedir em outubro para aqueles portos do sul, o que nada pode fazer
este ano pelo procedimento que com ele tem praticado o dito Ministro, em que
lhe vem a dar de prejuízo o melhor de sessenta mil cruzados, o que de sorte
alguma será do agrado de Sua Majestade
quando chegue à sua real presença os justos clamores do suplicante. Também é
bem certo, que em todo este Estado não tem Sua Majestade vassalo, que em
utilidade do público, e da Real Fazenda maneie
maior comércio que o suplicante, tendo por isso as melhores
correspondências e de homens mais verdadeiros que se dão nas cidades do Brasil,
e na Corte de Lisboa, e com este procedimento do dito Ministro fica o
suplicante desacreditado, e na opinião do vulgo por contrabandista, e raptor
dos direitos de Sua Majestade, quando sempre foi conhecida a honra com que tem
vivido, assistindo para as guerras do Rio Grande, e Santa Catharina com três
embarcações que lhe ficaram destroncadas, e desmastreadas das balas inimigas, e
com doze mil cruzados com carnes para os Armazéns e Armadas Reais, que até o
presente lhe não pagaram, nem o suplicante tem pedido, não merecendo por nada
disto o cabeo que de presente lhe quer impor o dito Ministro, dando ocasião que
se lhe macule a honra por tão pouco” (AHU-ACL-CU 015-Cx 155, D. 11159).
Para justificar esse ato de
violência alegou o juiz da Real Junta de Arrecadação do Maranhão, que não
haviam sido pagos os direitos dos despachos da alfândega de Pernambuco. Porém,
Domingos Dias da Silva argumentou que era costume ali se pagar os direitos em
três quarteis de três em três meses. Ainda assim juntou prova de que seu
correspondente em Pernambuco, Domingos Pires Ferreira lhe havia remetido cópias
de tais pagamentos. Enquanto isso sua sumaca permanecia ancorada no porto de
São Luís do Maranhão, à espera da liberação da mercadoria pela qual tanto
lutava. Era capitão dessa sumaca, Ignácio Francisco Roza. Esse pleito está recheado de documentos
anexos e informações relevantes, inclusive com passaporte de retorno emitido no
dia 18 de abril de 1785, em Lisboa. Existe farta prova de que no momento em que
sua sumaca chegou à Parnaíba e se achando em franquia fora da barra, comunicou
ele ao juiz ordinário Thomaz da Silva Carvalho e ao mestre de campo João Paulo
Diniz, Provedor Comissário da Real Fazenda, para que mandassem pôr nas praias e
a bordo as devidas guardas, como era o costume. Trazia esta, despachada em
Lisboa, 277 molhos de sal com destino a Parnaíba, de que dera fiança em 23 de
abril e obrigara-se a apresentar certidão da descarga no tempo de um ano e à falta
dela pagar os direitos na forma do Regimento. No que se refere à mercadoria
apreendida, o seu despacho e posterior apreensão trazem a sua interessante
relação, o que pode ser motivo de outros estudos para se conhecer dos usos e
costumes daquele tempo e do que interessava ao comércio local. Finalmente,
todos esses fatos mostram as dificuldades enfrentadas por esse pioneiro para
promover essa navegação em direitura a Lisboa e à cidade do Porto(AHU-ACL-CU
015-Cx 155, D. 11159).
Contudo, apesar de todos esses
percalços Domingos Dias da Silva dominou o comércio e a indústria de charque em
seu tempo, cujo monopólio crescente trouxe preocupação ao governo do Maranhão.
Em 21 de agosto de 1793, D. Fernando Antônio de Noronha, general do Estado(1792
– 1798), partilha com o Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Ultramar,
Martinho de Melo e Castro, suas preocupações com esse assunto, recebendo em 30
de janeiro do ano seguinte, a seguinte resposta, inclusive censurando o
empresário:
“Não posso porém passar em
silêncio o seu ofício de 21 de agosto sobre o contrato das carnes e a acertada
providência que V. Sª., deu para evitar o monopólio com que este importante
artigo se regra pelo abastado comerciante Domingos Dias, da Parnaíba; e mais
que tudo o insolente atrevimento com que ele procurou captar o ânimo de V. Sª.,
por meios tão infelizmente maus, na prática como horrorosos a todo homem de
bem” (AHU-ACL-CU 009-Cx 84, D. 7037).
Foi, assim, no fastígio do poder
e da glória que faleceu o nosso biografado em 17 de dezembro de 1793, deixando
uma fortuna que até então não se pensara ser possível construir diante de tanta
adversidade. Foi, porém, um homem de visão que soube explorar ao máximo as
potencialidades do território piauiense, sobretudo a estratégica posição
comercial de Parnaíba. Deu, assim, uma nova dimensão ao lugar, alargando suas
possibilidades econômicas.
Domingos Dias da Silva não casou,
deixando apenas dois filhos pardos, ilegítimos, que foram por ele reconhecidos,
ambos havidos com mestiças solteiras, sendo o primeiro, coronel Simplício Dias
da Silva, com Claudina Josefa; e o
segundo, alferes Raimundo Dias da Silva, com Maria Dias, este último legitimado
por escritura pouco antes do óbito do pai, em 21 de outubro daquele ano
(AHU-ACL-CU 016-Cx 19-D. 995).
Por fim, concluímos essas notas
lembrando que o capitão Domingos Dias da Silva muito fez por Parnaíba, pelo
Piauí, pelo Brasil e por Portugal. A ele muito devem esses povos, sobretudo
pela indústria e comércio que movimentou, pelos empregos que gerou e pelas
oportunidades que criou. Não se pode olvidar jamais a sua homérica luta pela
criação da alfândega de Parnaíba, no que foi sucedido pelos filhos, afinal
coroada de êxito somente depois da Independência do Brasil. Ali fora
concretizado o seu sonho e coroada de êxito a sua luta. Portanto, enquanto soar
o nome de Parnaíba e do Piauí, há de soar também o nome desse capitão de
indústria e pioneiro de nosso comércio com os principais portos do Brasil e de
Portugal. A ele nossas homenagens.
* REGINALDO MIRANDA é membro
titular da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico
Piauiense e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.
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