A saga de uma longa caminhada
Elmar Carvalho
Na última reunião da Academia Piauiense de Letras, o confrade
Celso Barros Coelho repetiu o que já me havia dito sobre o meu romance
Histórias de Évora: a importância de um bom título. Com efeito, a escolha de um
título feliz pode despertar a curiosidade do leitor em potencial e, assim,
atraí-lo para a leitura do texto. Mas, no presente caso, o título não foi
apenas um recurso ou armadilha para prender a atenção de meu possível leitor,
porém uma concretíssima realidade fática, se não estou a laborar em alguma
redundância, já que exagero não seria.
De fato o autor de Três séculos de caminhada, Vicente
Miranda, cometeu quase verdadeiras estripulias e pulutricas, dignas de um
ginasta ou atleta, para escrever o seu livro. Na época, ainda jovem, fez várias
e cansativas viagens em busca de informações em lugares ermos, remotos e de
difícil acesso, nos quais entrevistou idosos parentes. Pesquisou nos cartórios
de longínquas comarcas do Piauí e do Ceará. Subiu em escadas, para consultar
antigos processos, amontoados em verdadeiros e quase inacessíveis sótãos. Foram
dezoito anos de pesquisa em fontes documentais, e não de meras suposições,
ilações, hipóteses e consultas a livros já publicados.
Decifrou carcomidos e borrados calhamaços, documentos e
processos. Desvendou quase apagadas lápides de cemitérios urbanos e rurais. Não
sei se nestes últimos chegou a conversar com fantasmas de avoengos, que lhe
possam ter relatado fatos esconsos e já esquecidos. Compulsou livros registrais
de sacristias e delegacias policiais. As dificuldades eram de diversas ordens,
entre as quais nomes grafados de forma errada, homonímias e divergência entre o
nome do registro e o da tradição oral dos familiares.
Em suma, em alguns casos não seria exagero afirmar que ele
foi quase um Indiana Jones em suas aventuras e incursões historiográficas e
arqueológicas, em diferentes rincões e fazendas a que teve de ir. Todos os
percalços e dificuldades que enfrentou foi para cumprir um desejo de seu
saudoso pai, Pedro Mapurunga de Miranda, que almejava ver a história e a
genealogia da família preservadas. Seu pai guardava algumas anotações que lhe
serviram de pistas iniciais ou ponto de partida para novas e mais aprofundadas
investigações.
Entre as velhas e tradicionais famílias ligadas à Ibiapaba
podem ser citadas (e são as que mais foram enfocadas em seu estudo): Fontenele,
Araújo, Mapurunga, Damasceno, Machado, Magalhães, Miranda, Cerqueira, muitas
estabelecidas em Viçosa, sua terra natal, e Piracuruca, uma de suas terras
afetivas, à qual também sou vinculado por laços de sangue. Portanto, na genealogia
delineada se percebe um forte entrelaçamento entre famílias cearenses e
piauienses. Algumas das famílias referidas adotaram outro apelido, por causa de
avoengos insatisfeitos ou amuados em decorrência de eventual interesse
contrariado.
Como um legítimo Hercule Poirot farejou em arquivos públicos,
seguindo pistas, intuições e suposições, e mesmo à procura de novas
informações. Num desses cartórios, teve que ficar espremido entre o forro e as
telhas do teto, já que os mofentos autos de processos, talvez por desleixo ou
irresponsabilidade do notário, ali estavam “largados”. Nessa árdua escaramuça
em busca da história de seus parentes e ancestrais gastou muita pecúnia, labuta
e tempo. Jamais direi que ele perdeu tempo; antes diria ganhou. E ganhamos
todos, pois ele escreveu um lídimo monumento literário, historiográfico e
genealógico.
Quando recebi um segundo exemplar desse livro, em 23 de
fevereiro de 2006, conforme data do amável autógrafo (a dedicatória do primeiro
é datada de Parnaíba, 13/10/2001), comecei a ler e reler algumas de suas
partes, que mais me despertaram a atenção. Depois, sinto-me no dever de
confessar, por outros deveres laborais e outros interesses momentâneos,
suspendi a sua leitura. Algum tempo depois meu irmão Antônio José me disse que
o havia lido, e que gostara imensamente de seu conteúdo. Comentou, de forma
breve, algumas de suas deliciosas narrativas.
Essa mesma opinião me foi expressada pela escritora,
historiadora e professora Teresinha Queiroz, que me disse reler, amiúde, muitas
de suas partes, alertando-me para a sua importância historiográfica,
genealógica e literária. Ao contrário desses dois enfáticos e sinceros elogios,
um leitor preguiçoso, não afeito a profundas e mais alentadas páginas, teria
dito de forma jocosa, do alto de sua ignorância e preguiça mental: “Mas são
muitos os rios e os séculos que a gente tem de atravessar... Eu só consegui ler
alguns anos e poucos riachos...”
Foi, então, que decidi lê-lo de capa a capa, com mais atenção
e eventuais anotações. Pude constatar que é uma obra bem escrita e que contém
histórias interessantes, algumas jocosas, irônicas, apimentadas; outras,
dramáticas ou até mesmo trágicas. Vicente Miranda teve a coragem e a
sinceridade de contar certos feitos (e até malfeitos) de seus parentes e
avoengos, que muitos jamais revelariam, mormente em livro, não para ferir ou
afrontar suscetibilidades, mas apenas porque todas as famílias, exatamente por
causa do fator humano, têm os seus pecados e crimes que se tentam ocultar.
Algumas de suas passagens são histórias de amor e morte, de
sangue e traição, quando a obra adquire um aspecto de conto ou mesmo de
romance, dada a habilidade como o autor encadeou e urdiu certos entrechos.
Sabemos que a dita vida real é às vezes mais surpreendente que a ficção.
Vejamos, como simples amostra ou tira-gosto, este enxerto: “São inúmeros os
exemplos de sacerdotes que tombaram no exercício do dever, a começar pelo
primeiro daqueles que pisaram o chão da Ibiapaba – Francisco Pinto – conforme
já narrado. // Padre José Monteiro de Sá Palácio, operoso vigário da Vila de
Piracuruca por muitos anos, ele próprio vítima da bestialidade humana, quando
perdeu a mãe assassinada com 35 facadas (...)”. Notável é também o episódio da
“índia corredeira”, assim como tantos outros. Deixo ao leitor a curiosidade,
para ir lê-los no livro em comento.
É uma obra volumosa, que, além da ênfase genealógica, trata também
da corografia da Ibiapaba e adjacências, descrevendo as escarpas da Serra
Grande, os vales de seus principais rios e afluentes e os seus mais notáveis
acidentes geográficos. Narra o seu povoamento e a formação de seus primeiros
aglomerados urbanos. As figuras ilustres dessas cidades e municípios desfilam
em suas páginas. Descreve as trilhas, que mais ou menos seguiam os cursos d’água,
por onde as antigas povoações se formaram.
Parece até que Vicente Miranda, ao percorrer o espinhaço da
Ibiapaba, ao lhe devassar as íngremes encostas, ao lhe contornar os sopés,
seguiu as pegadas do genial Luiz Gonzaga: “Lá no meu pé de serra / Deixei ficar
meu coração / Ai, que saudades tenho / Eu vou voltar pro meu sertão”. Algumas
de suas descrições são de profunda beleza literária e bucólica, e se revestem
na verdade de excelente prosa poética, como nesta passagem: “De lá de cima,
(...) descortina-se uma vista maravilhosa de todo o vale do rio São Gonçalo e
Lambedouro. Oportunidade rara para o pesquisador (...) vingar-se do morro do
Caburé que, visto da base, é arrogante e desafiador. Agora, humilhado, fica lá
em baixo com o cocuruto cinzento e arrepiado”.
Por ter entrelaçamento familiar com as mais antigas famílias
da Ibiapaba, sobretudo as da imperial Viçosa do Ceará, terra do general Tibúrcio,
que lutou em várias batalhas, e do jurista Clóvis Beviláqua, filho do padre
Beviláqua, um dos pró-homem de sua terra, casado com a piauiense Amélia de
Freitas Beviláqua, jornalista, poetisa, contista, cronista e romancista. Reza a lenda que, certa feita, uma das
estátuas do general caiu. Mas caiu de pé, afiançam os viçosenses.
Sobre a vetusta urbe, de ameno clima e serrana e florida
beleza, fincada no espinhaço da Ibiapaba, tive a oportunidade de dizer, em
minha crônica Viçosa, sempre viçosa e cheia de graça, que se encontra publicada
na internet:
(...) fui à Praça da Matriz, onde
fotografei a vetusta igreja de Nossa Senhora da Assunção, de coloniais linhas
sóbrias, austeras, exceto no frontispício, de discreta sinuosidade. Sua
inauguração data de 15 de agosto de 1700, porém o povoamento de Viçosa do Ceará
começou bem antes, remontando a 1590, quando franceses provenientes do Maranhão
tiveram contato com os índios da região, até sua expulsão em 1604 por Pero
Coelho de Sousa. Segundo o padre Ascenso Gago, superior dos missionários
ibiapabenses, a data de fundação da urbe seria 1695. O fato é que nesse período
existia a missão dos padres jesuítas, que tentavam catequizar os índios
Tabajaras, dando origem à Aldeia da Ibiapaba.
Nos meus primeiros contatos com Vicente Miranda, mais de
década atrás, logo lhe notei acentuada semelhança com o grande poeta, cantor e
compositor Belchior. Não pude deixar de lhe indagar a esse respeito, tendo ele
me respondido que eram parentes. Nessa época Miranda ostentava um vasto e denso
bigode, assim como seu célebre primo. Tempos depois, ao revê-lo, de imediato
percebi que ele havia se despojado da bigodeira. Jocosamente, revelando o seu
senso de humor, que eu já conhecia, disse que rapara o bigode para não ser
confundido com o parente famoso, que se envolvera em dívidas e andava um tanto
sumido.
Todavia, por ter elaborado essa monumental obra, monumental
tanto pelo tamanho como pela qualidade, não posso dizer que Vicente Miranda
seja “(...) apenas um rapaz / Latino-Americano / Sem dinheiro no banco / Sem
parentes importantes”. É um historiador de muito valor, um empresário
bem-sucedido em seu campo de atuação e teve e tem parentes importantes, entre
os quais o próprio e saudoso Belchior, autor dos antológicos versos acima.
Caro Poeta, confesso que comecei a ler o livro objeto da sua resenha por uma observação sua a respeito da qualidade e importância da obra. Depois, a medida que fui me aprofundando na sua leitura, encontrei lá motivo suficiente para ir até o fim. Obra de incontestável valor para todos aqueles que se interessam pela história desta terra e das suas família;de leitura fácil e prazerosa e sem as dificuldades inerentes aos livros sobre genealogia.
ResponderExcluirE não é insípido como boa parte dos livros de genealogia pura e em sentido estrito. Ao contrário, é uma leitura prazerosa como você bem observou em seu pertinente comentário.
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