sexta-feira, 23 de março de 2018

Sobre agendas: tempo e passagem


Sobre agendas: tempo e passagem

Cunha e Silva Filho

Se existe alguém que não sabe lidar com agendas telefônicas e para outros fins, esse alguém sou eu. Nem mesmo sei se outras pessoas guardam suas agendas de anos anteriores, uma vez que, agora, é bem capaz de que elas, as agendas, estejam fora de moda por serem impressas. Presumo que as agendas, agora, sejam eletrônicas ou por outra, virtuais. Perdoe-me , o leitor, o meu lado gauche à Drummond sobre gadgets ou outras formas de anotação de dados, tais como endereços, telefones, pen-drivers ou outras informações que a gente faz com as agendas impressas.

Mesmo no celular ainda não me dei ao trabalho de aprender como falar via WhatsApp, ou pôr um vídeo no Face. Embanano-me todo e transformo o uso do celular num caos virtual sem tamanho. Os amigos, ao verem isso, me dão um sorriso escarninho. Da mesma forma, é com alguns procedimentos de links, e transferências nesse navegar pela internet. Contudo, não estou sozinho nessa modo argel de lidar com o mundo virtual ou com o mundo eletrônico.

Disseram-me uma vez que o escritor Jorge Amado (1912-2001) não sabia nem como sintonizar uma estação de rádio. Meu pai, também escritor, era pouco dado a ouvir rádio e nem mesmo teve um rádio para uso próprio. Por outro lado, escritores, mais velhos aderiram à aprendizagem do computador, ao passo que outros nem mesmo ainda sabem usá-lo e me afirmaram que não querem aprender mesmo. 

Mas, acredito que eles seja as últimas gerações de idosos que não desejam familiarizar-se com o mundo virtual. Mais anos pela frente e todos indistintamente, crianças, moços e idosos estarão navegando naturalmente pela Internet. Ou seja, todos beberão do mesmo vinho do universo virtual. Todos, assim, globalizarão a virtualidade em todos os sentidos: afetivo, comunicativo, ideológico, profissional etc.

A minha intenção central desta crônica são as agendas impressas que, no meu caso particular, já formam uma um embrião de “biblioteca.” As agendas são de vários tamanhos: pequeninas, médias e grandes,. Estas são as de que mais gosto por terem mais espaço e mais páginas. Ora, nelas está anotada um multidão de dados: nomes de conhecidos, de amigos, de pessoas de variadas atividades profissionais, de nomes que, no presente, já não identifico.

Tudo esta anotado ao acaso na maior parte, acronologicamente, alguns com e-mails, outros com o nome da profissão. Alguns são ex-alunos que se perderam na multidão e, para resumir, há uma lista enorme de pessoas queridas que já se foram do meu convívio na Terra.

À medida em que releio ou passo a vista distinguindo os que se foram para sempre, me vem à lembrança, em ponto pequeno, o número bem visível de mortes relatadas na narração de Dom Casmurro - essa obra-prima de Machado de Assis (1839-1908). Talvez já tenha aludido a esse detalhe alhures: em Dom Casmurro (1899) foi, pela primeira vez no âmbito da literatura, que tive a sensação estranha e singular da efemeridade da vida tão genialmente transmitida pelo narrador Bentinho, por sinal, a meu ver, cruel narrador machadiano.

Nem mesmo o foi pela quantidade de personagens que morrem ao longo do enredo, mas pela forma como a morte é anunciada pelo narrador aqui e ali na obra. Dom Casmurro é o retrato mais perfeito, em termos de forma narrativa que já experimentei como leitor. Daí a sua grandeza, a sua singularidade, o seu sopro da vida mais “real” do que a própria existência porque um grande romance nos permite ter uma visão mais profunda do ser humano e de seus problemas e enigmas.

As agendas antigas têm esse condão de nos transportar ao passado e simultaneamente de nos projetar ao futuro e às transcendências. Elas são tempo e passagem. Fixam homens, lutas e acontecimentos alegres ou tristes já pretéritos. Dão também um certo perfil de nosso travessia cá entre os mortais e nos fazem questionamentos sobre a eternidade e a intemporalidade das quais não escapamos como viventes.

Quem quiser encontrar organização e cronologia nas minhas agendas perderia seu tempo. Ao abrir as páginas dessas agendas, o leitor terá que reordenar tudo e usar a imaginação a fim de pôr ordem no caos. As agendas, no me caso, serão caixinhas de surpresas. Darão boas pistas, porém não darão a chave. Não fiz isso de propósito, porque elas se construíram da desordem e da emoção. 

Já me fizeram entender que a sociedade funciona porque nada é muito lógico e a vida é feita de acasos (William Shakespeare,1564-1616,) e, se tudo fosse certinho, matemático, lógico, a vida seria insuportável, da mesma maneira que ela não bastaria se não fosse complementada pela Arte, conforme declarou o poeta Ferreira Gullar (1930-2016). A Arte nos liberta pelo menos dentro de nossa indevassável solidão.

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