sábado, 19 de maio de 2018

LICURGO DE PAIVA - A DESVENTURA DE UM BRILHANTE POETA

Fonte: blog Folhas Avulsas


LICURGO DE PAIVA - A DESVENTURA DE UM BRILHANTE POETA

Chico Acoram Araújo
Cronista, historiador e articulista

“Na escarpa de um morro bem deserto,
A paz da viração da gente ingrata,
De murtas povoado;
Eu quero que meu leito seja aberto
Descansem meu corpo democrata
Na vida abandonado.”
         (L. de Paiva)

                O sol ardente de um dia verão do ano de 1887 começava a declinar no poente.  A passarada se agitava, alegremente, anunciando com seus mil sons e tons a proximidade do pôr do sol. O lugar ficava não muito distante da Fazenda Santo Antônio de propriedade do comendador Dario Pereira da Silva, no antigo termo de Jerumenha. Uma desgastada estrada de chão arenoso por ali passava. O terreno era plano do tipo cerrado, mesclado por manchas de caatinga arbórea e algumas árvores frondosas típicas da região. Em uma das margens daquele caminho destacava-se um alto e majestoso juazeiro com sua abundante copa verde proporcionando uma generosa sombra aos viajantes que ali estacionavam para um ligeiro descanso, depois de uma longa viagem pelas regiões do alto Parnaíba. Um oásis poder-se-ia dizer, pois a poucos metros desse dadivoso juazeiro existia um perene riacho que escorria, paralelo, abaixo do nível da estrada. O pequeno regato era um presente de Deus. Seu tênue espelho d’água deslizava devagarinho nesse pedaço de chão esturricado no meio do sertão piauiense. Daí a razão porque o lugar era parada obrigatória dos viajantes, posto que ali tinham ao seu dispor sombra e água fresca e um agradável recanto para descansar.

                Alguns dias antes se via naquele aprazível lugar um andarilho; maltrapilho, barbudo e doente. Caminhava sem rumo e tropeçante por conta da maldita dipsomania que o consumia implacavelmente. Nessa andança, o homem balbuciava algumas palavras:

                “(...) Virgens ditosas, que folgais no baile, / Aves mimosas que adejais aí, / Tomai cuidado no librar das asas, / Mirai todas neste espelho aqui! ”

                No dia seguinte ao daquele quente dia de verão, Licurgo José Henrique de Paiva, o brilhante e inditoso poeta piauiense, nascido em Oeiras(PI) em 18/03/1942, fez daquele belíssimo paraíso a sua morada eterna. Tinha apenas 45 anos de idade. Alguns moradores da localidade o encontraram morto na beira da estrada. O corpo estava esquálido e deplorável. Era um espectro de homem. Sob a copa daquele velho juazeiro, enterraram o infeliz poeta, como indigente, em uma cova rasa, sem choro e nem velas. Ainda por alguns anos após a morte do poeta os viajantes que por ali passavam ainda viam uma carcomida cruz de madeira que indicava o local exato da sepultura desse notável piauiense. Hoje, se desconhece esse pedaço de chão onde jaz o grande poeta Licurgo de Paiva, considerado um dos precursores do romantismo no Piauí.

                Clodoaldo Freitas conta nos seus apontamentos biográficos (livro VULTOS PIAUIENSES), que conheceu pessoalmente Licurgo de Paiva quando este já se encontrava no declínio da sua vida, no mais avançado grau de decadência intelectual e física. Nessa época, Licurgo se tornara uma simples caricatura de homem, que na juventude revelara-se possuidor de um brilhante talento. Clodoaldo lembra que Licurgo “encontrava-se aleijado e pobre, doente dessa terrível consumpção que o levou ao túmulo”, e que ele “vegetava na mais grassa miséria, estiolado pelo álcool”. Lembra também que Licurgo, de tanto entregar-se ao alcoolismo, ficou com suas faculdades mentais precárias, louco, tendo como consequência a perda gradativa da “poderosa intelectualidade, que irradiara em versos de elevado mérito e que serão sempre a sua glória e a tábua que há de soerguê-lo do naufrágio do esquecimento”. O ilustre biógrafo diz ainda que, por essa época, as poesias que escrevia eram de péssima qualidade, deplorável. A embriaguez mórbida do autor de Flores da Noite e de outros belíssimos poemas “lhe toldara a inteligência, uma das mais belas que nasceram neste ridente solo piauiense”, enfatiza o já mencionado historiador.

                Sobre a vida do desventurado poeta Licurgo de Paiva, o biógrafo e historiador Monsenhor Chaves (livro OBRA COMPLETA), citando uma passagem bíblica (Capítulo 7, versículos 1 – 4, de Jó – que a vida do homem sobre a terra é uma luta), comenta:

                “ Estas palavras do velho Jó, às vezes, agarram-se a certas vidas marcando-as com ferro e brasa. Pensando nelas, lembrei-me de Licurgo de Paiva, o grande e infeliz poeta piauiense, cuja memória apagou-se totalmente no cenário cultural de nossa terra. E ele bem que merecia uma outra sorte. ”

                Lycurgo José Henrique da Paiva (Licurgo de Paiva) era filho natural do Tenente-Coronel Miguel Henrique de Paiva e de sua companheira Carolina Joaquina Bento. No ano de 1852, Licurgo com apenas oito anos de idade acompanhou seus pais que se mudaram para Teresina, a nova capital da Província do Piauí. Na época o clima na cidade de Oeiras estava em situação de animosidade uma vez que o Presidente da Província, Dr. José Antônio Saraiva, decidiu corajosamente transferir a capital para a Chapada do Corisco.

A economia de Oeiras, principalmente o setor comercial, sofreu um abalo incomensurável. Segundo Monsenhor Chaves, isso “acirrou os ânimos da população e se transformou num divisor de águas, levando o sofrimento de muitas famílias”. O padre aponta que a mudança da capital da Província do Piauí para Teresina teve uma enorme repercussão na vida do menino Licurgo. Seu pai que, além de militar, era também comerciante da velha Oeiras, encontrava-se em situação financeira muito complicada, inclusive devendo muito ao Erário. Isso é tanto verdade que, em setembro de 1852, o Tenente-Coronel propõe ao Presidente Saraiva uma negociação de suas dívidas junto à Fazenda Provincial, de modo que pudesse saldar seu passivo em prazos mais longos; o pleito foi de pronto atendido pelo jovem presidente. Além disso, o Conselheiro Saraiva decidiu contratar o Tenente-Coronel Miguel de Paiva para transportar os objetos das repartições públicas gerais e provinciais para a nova capital do Piauí. Segundo Monsenhor Chaves, o contrato estipulava, por cavalgadura, a quantia de 4$000 até o Porto de São Francisco, e 10$000 até Teresina (seis arrobas por cada animal), bem como uma multa de 5$000 por 15 dias de atraso para a entrega dos objetos transportados.

Nessa ocasião da transferência da capital, o militar tomou a decisão de transferir sua família para Teresina. A crise financeira de Miguel de Paiva perdurou por mais alguns anos. Isso é bem verdade que em 19 de abril de 1853 o militar foi notificado que seus bens tinham sido sequestrados pela Fazenda Pública em face do não pagamento das suas dívidas junto ao Erário.

Com residência definitiva em Teresina, o pai logo matricula o filho em uma escola primária; depois, Licurgo conclui seus estudos secundários no “Liceu Piauiense”. Em 1861, o Tenente-Coronel, tendo prosperado e melhorado suas condições financeiras, decidiu encaminhar o filho para Recife com objetivo de fazer os estudos preparatórios e submeter-se ao processo de admissão na Faculdade de Direito. No entanto, o jovem rapaz se deslumbrou com os encantos da capital pernambucana, desviando-se dos estudos preparatórios e entrando na vida boêmia. Licurgo não conseguiu lograr êxito para ingressar no Curso de Direito. Em 1866, Licurgo de Paiva publica seu primeiro livro de poesias com o título “FLORES DA NOITE”, que recebeu elogios de Tobias Barreto de Menezes (1839-1889), filósofo, escritor e jurista, principalmente com relação à poesia intitulada “DINA”.  Ao mesmo tempo fez severas críticas em outras poesias do jovem poeta piauiense, inclusive sugerindo ao moço que se dedicasse aos estudos uma vez que muitos dos seus versos eram “desleixados”. Cabe aqui ressaltar que Tobias Barreto era um crítico ferrenho de Machado de Assis, sendo este já consagrado na época como um grande escritor nacional.

Em 1867, o Tenente-Coronel Miguel de Paiva tendo notícias que o filho levava uma vida boêmia na capital pernambucana, e que não mais se dedicara aos estudos preparatórios para ingresso na Faculdade de Direito decidiu trazê-lo de volta a Teresina. Ao retornar a Teresina, Licurgo, por influência do pai, conseguiu um emprego público de secretário da Câmara Municipal. Nesse período publicou várias poesias, inclusive a sua obra prima que levou o título “Consequências do Baile” que foi recitada por sua companheira, a atriz Maria Henriqueta no Teatro Santa Teresa. No entanto, essa poesia apenas foi recitada uma única vez naquele teatro por conta da proibição do chefe de polícia de Teresina que a considerou imoral e ofensiva aos bons costumes da sociedade teresinense. Isso custou ao brilhante poeta a perda do emprego ocupava na Câmara Municipal. Nesse tempo, Licurgo de Paiva escrevia para a imprensa local, criticando severamente as autoridades locais da época. Em 1872, Licurgo é espancado violentamente por dois soldados paisanos a mando do Presidente da Província, Dr. Pedro Afonso Ferreira, que vinha recebendo contundentes críticas nos jornais. Por esse tempo, o poeta e jornalista já bebia habitualmente nos bares e botecos de Teresina. Tornou-se ébrio e andarilho. Soube-se depois que o poeta tinha sido visto em outras cidades do interior do Piauí, sem destino.

Em justa homenagem a esse brilhante poeta e expoente da literatura piauiense, a Academia Piauiense de Letras deliberou, quando da sua fundação, e sob a liderança de Lucídio Freitas e de outros nomes expressivos da intelectualidade na época, que fosse Licurgo José Henrique de Paiva escolhido como Patrono da Cadeira nº 10; cadeira que teve como seu 1º ocupante o eminente poeta Celso Pinheiro. Depois, sucessivamente, Monsenhor Antônio Monteiro de Sampaio, o 2º; Como 3º, o grandioso escritor e poeta H. Dobal. Hoje, a Cadeira é ocupada por um dos maiores poeta piauiense da atualidade, o ilustre beletrista Elmar Carvalho, autor do romance “Histórias de Évora” e dos livros de poesias “Rosa dos ventos gerais” e “Lira dos Cinquentanos”.

Fonte: Blog Folhas Avulsas

11 comentários:

  1. Um belo texto do amigo Chico Acoram sobre o notável e sofrido poeta Licurgo de Paiva, de que tenho a honra de ocupar a cadeira nº 10 da APL, sob seu patronato. É uma cadeira de poetas, pois foram poetas os meus antecessores e o patrono.Em meu discurso de posse tive o ensejo de dizer: "Licurgo José Henrique de Paiva, cuja carreira literária foi inicialmente tão auspiciosa, tão plena de esperança, foi depois gradativamente declinando até o seu trágico e melancólico crepúsculo, através de uma série de vicissitudes, em sua vida particular e profissional, (...) que frustrou todos os bons augúrios com que os astros lhe acenavam."

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    1. Chico Acoram Araújo20 de maio de 2018 às 13:56

      O texto foi fruto de uma pesquisa que realizei sobre esse brilhante e desventurado poeta. Confesso que quase sabia sobre a vida do autor de Flores da Noite. Emocinei-me muito à medida que ia conhecendo a história do patrono da Cadeira n. 10 da APL, onde atualmente o estimado mestre e amigo ocupa com todos as honras e méritos. De fato, conforme constatei na pesquisa, a Cadeira n. 10 é o lugar ou assento de eminentes poetas piauiense.
      Fico muito honrado pelas suas considerações sobre meu escrito. Obrigado. Um abraço.

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    2. Estou ficando desconfiado de que o nobre amigo Chico Acoram já está com material suficiente para a organização de um livro.
      E um livro de elevado conteúdo e estilo.

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    3. Chico Acoram Araújo20 de maio de 2018 às 17:12

      (risos). Lembrei-me do seu belo e criativo texto intitulado "Chico Acoram e a mosca azul", que muito me emocionou quando o mesmo foi publicado no seu blog. Publicar um bom livro é um sonho de todo homem de boa vontade. É um caso a pensar.Mas acho que o material daria apenas um modesto e pequeno opúsculo. Passo a bola para o meu redator-chefe e estimado amigo Dr. José Pedro Araújo.

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  2. Tenho certeza que o nosso bravo José Pedro nada terá a opor. Muito pelo contrário...

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  3. Seria muito bem vindo um trabalho literário com a assinatura do vocacionado Acoram. Então, se for por falta de estímulo, mãos à obra,velho cacique Ytacoatiara!

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  4. Cito Fernando Pessoa: "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce." Caro Acoram, com a manifestação do bravo JPA, foram dados a largada e o pontapé e cangapé iniciais.

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  5. Chico Acoram Araújo22 de maio de 2018 às 15:08

    Aceito o desafio desde que o livro seja prefaciado pelos meus ilustres amigos e escritores José Pedro Araújo e Elmar Carvalho, e com a orelha comentada pelo meu estimado é Advogado da União Francisco Almeida. Assim, fico tranquilo, pois terei, como renomados avalistas. excelentes e conceituados escritores da literatura piauiense. E aí? (risos).

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  6. Tenho certeza que todos teremos a máxima satisfação e orgulho em prefaciar um livro da lavra do ilustre amigo e escritor Chico Acoram, além de paradigmático servidor público.

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  7. Pois bem, não estou no nível literário dos dois outros escolhidos, mas me sinto honradíssimo pela indicação, e assim, estou pronto para a empreita.
    A vida não é pra quem
    Desiste em qualquer topada;
    Porém, para aquele que
    Topa qualquer parada;
    Assim disse Boby Marley
    De forma muito acertada.
    (Fco. Almeida)

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  8. Mais que lisonjeado com o convite, e confiante de que a presença dos dois outros convidados já dá sustentação à obra com sobras,só me resta colocar a minha humilde pena a serviço do bravo cacique.

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