Canindé Correia (ao centro), Depaula (plano superior), e Reginaldo Costa (primeiro plano, à esquerda), em entrevista a Vilmar Klein Ferreira |
Francisco de Canindé Correia:
cidadão parnaibano de visão terceiro-mundista
Reginaldo Costa (*)
No inicio da década de 70, quando
oportunizei a condição de morador da cidade do Rio de Janeiro, vivi a plenitude
dos primeiros sonhos, embevecido pela imponência daquela arquitetura e os
benefícios proporcionados pelo poder da natureza, em que a imensidão do Oceano
Atlântico, aconchegando-se em sua orla, desenha, caprichosamente, os contornos
da exuberante Baía de Guanabara.
Andar sem compromisso pelo centro
e bairros banhados pelo mar, visualizando o conjunto de belezas planetárias
inconfundíveis, enchia-me os olhos de encantamento. Tanto que, recortes de
imagens inesquecíveis conduzem à recordações nostálgicas da cidade e das
pessoas, na época em que a vida era harmonizada pelo caráter solidário dos
relacionamentos, a consolidar a identidade de um povo alegre, trabalhador,
solidário, amante da liberdade. Referência universal do samba e da bossa nova,
a Cidade Maravilhosa foi o berço onde nasceram alguns expoentes da música
brasileira, entre eles, Cartola, Noel Rosa, Pixinguinha e Vinicius de Moraes.
Nesse cenário de beleza, vivia-se
o inconformismo e as incertezas de um Brasil governado por militares, em que a
ditadura mantinha a imprensa amordaçada. Dessa maneira, não se podia tomar
conhecimento das prisões, torturas, e assassinatos de ativistas de esquerda.
Diferente dos porões, nas rádios, os Novos Baianos dominavam as paradas com
“Tinindo Trincando”, “Besta é Tu”, “Preta Pretinha” e “Brasil Pandeiro”, todas
do vinil Acabou Chorare, considerado obra-prima da música brasileira, cujo
exemplar ainda guardo, com imensa alegria.
Enquanto as estatísticas
registravam o aumento da concentração de renda e da desigualdade social, como
também, da promoção do sofrimento humano, em grande escala, o parnaibano João
Paulo dos Reis Veloso, dos maiores entusiastas do regime de exceção e um dos
sócios assíduos do clube dos generais, ocuparia a pasta do planejamento, nas
gestões de João Baptista Figueiredo e Ernesto Geisel, contribuindo diretamente
para a consolidação do tristemente afamado “milagre econômico”.
Embora sob a vigência de um
regime que suprimia direitos constitucionais, entre outros malefícios à
sociedade civil, nada abalaria a sensação de liberdade e descontração próprias
do carioca, características incorporadas à rotina diária da casa-república,
localizada à rua Barão de Pirassununga, nº 55/6, há poucos passos da Praça
Saens Peña, no tradicional e simpaticíssimo bairro da Tijuca, onde eu me
juntara aos conterrâneos Luís Costa, Umberto Tito Lima, José Alberto Ripardo e
Carlos Petrônio de França Rego.
O local, favorecido pelo clima
agradável, acolhia vasta quantidade de aves de diferentes espécies que se
manifestavam todas as manhãs, pelas janelas da antiga construção, anunciando o
novo alvorecer, em panorama semelhante aos longínquos rincões nordestinos, aflorando
a saudade das nossas raízes.
Nessa estação de cores e
harmonia, vivendo no auge dos primeiros sonhos, foi que conheci Canindé
Correia. Na lembrança, o domingo de sol abrasador, daqueles de lotar as praias,
coloridas de mulheres exuberantes, sensualizando por amplas passarelas de areia
ao frescor das águas oceânicas, enquanto outras, mais ousadas, se expunham ao
sol, sem qualquer modéstia, a refletir o brilho dos corpos bronzeados,
desproporcionalmente amparados por diminutas tangas, acessório revolucionário
de libertação feminina, lançado naquele verão tropical.
Na manhã de um dia recompensado
pela sequência do que viria, a colônia parnaibana houvera iniciado as
atividades domésticas, contando piadas, conversando qualquer coisa, interagindo
de maneira agradável com os ponteiros do relógio, a completar o ciclo diário de
transportar para o futuro sensações de momentos indescritíveis.
Seguindo a velocidade do
pingue-pongue verbal, audível da sala a área de serviço, alguém sugere feijoada
para o cardápio. Repentinamente, uma voz projetada de outro compartimento da
casa, propõe uma rodada de caipirinha, certamente na intenção do grupo filtrar
as emoções de mais uma semana de compromissos com a vida. Entretanto, da teoria
à prática, caberia uma questão de ordem, sobretudo, onde não sobra cascalho.
Nesse caso, nada mais eficaz que uma vaquinha, o que foi prontamente realizado.
Espontaneamente, o evento
ganharia forma e estilo próprios, incluindo a acomodação em círculo, no
aconchegante piso assoalhado da sala, onde todos deveriam compartilhar do
cachimbo da paz, na verdade, uma cuia, joia rara, disponibilizada não me lembro
por quem, abastecida com a bebida deliciosa. De boca em boca, todos saciariam a
sede, instante em que, adentra ao recinto, os visitantes da hora, Canindé
Correia e Milton Cherman, este, ex-morador daquele cafofo.
A partir de então, as conversas
seriam favorecidas por conteúdo divertidíssimo. Em cena, o piadista nato,
Umberto, escrito com “u”, sobressaindo-se na maneira de expor ao ridículo,
figuras consideradas folclóricas da vida parnaibana. E não escapavam à
lembrança, políticos, jornalistas, animadores culturais, gente do mundo de
fantasias das socialites. Para temperar a mistura, não poderia faltar a
essência especial do humor parnaibano, na figura do lendário Pacamão, com suas
tiradas engraçadíssimas.
Aquele endereço, simples e
acolhedor, adequado à visita de gente com energia favorável à harmonia entre as
pessoas, tinha como uma de suas referências o cidadão que atendia pelo nome
José do Egito da Costa (in memorian), parnaibano que se destacou pela
inteligência, bom humor e desprendimento, nitidamente ligado a tudo que é
sincero. Dessa maneira, rememorar aprendizagens marcantes nos remete a
recordações construtivas do amigo cujas maiores riquezas, a humildade e o
companheirismo, o tornam inesquecível. Esses detalhes, invisíveis aos olhos dos
que consagram o glamour dos reconhecimentos, muitas vezes circunstanciais,
dispensam estátua ou placa de bronze.
Após o encontro agradável, no Rio,
voltaria a conversar com Canindé Correia, somente em Parnaíba, no momento em
que procurava parcerias para o Jornal Inovação, quando fui visitá-lo no SESI,
onde exercia cargo relevante. Entre cordialidades, apresentei-lhe a 3ª edição
do nanico, acolhendo em suas mãos com surpreendente entusiasmo.
Identificando-se com o conteúdo, assumiu, inicialmente, a condição de
assinante. Não demorou, o movimento social ganharia um novo aliado nas lutas
por conquista de cidadania, protagonizando uma história diferente das elites
conservadoras cultural, social, política e economicamente excludentes; e eu, um
amigo inseparável, a compartilhar de inúmeras experiências, dinamizadas por
convivência testemunha do respeito e da decência, pautada por interesses
exclusivos ao campo das ideias.
Convencido de que o sangue a
percorrer em nossas veias carregava o DNA da indignação contra o moralismo
castrador e no recôndito dos nossos corações, sentíamos o mesmo desejo por
mudanças, em março de 1978, se integra, definitivamente, ao Grupo INOVAÇÃO,
quando me entrega um manuscrito protegido por capa improvisada em papel almaço,
para ser publicado na 5ª edição do jornal. Meticuloso, solicita minha atenção
para a leitura do texto.
Pertinaz, sobretudo, na defesa da
implantação do Distrito Industrial de Parnaíba, um dos cavalos de batalhas de
sua militância no jornalismo, direciona sua produção intelectual para convocar
a população e entidades de classe a se envolverem nas discussões pertinentes
àquele empreendimento que, aliado à interligação rodoviária do norte do
Piauí-Maranhão-Ceará e a definitiva construção do Porto de Luís Correia,
consolidaria o desenvolvimento econômico da região norte do Estado do Piauí,
assuntos incorporados por INOVAÇÃO, considerando o presente de incertezas e a
necessidade de conter o atraso, portanto, reivindicações consideradas de cunho
popular, e não de grupos historicamente vinculados à concepção individualista
de sociedade, que através de iniciativas burocratizadas se arvoram da autoria
de iniciativas mais sem o poder de articulação, para transformar sonhos em
realidade.
Contribuindo com o processo de
conscientização, Canindé Correia mexia com os brios do leitor, alertando para a
necessidade de reflexão sobre a inadiável necessidade de recuperação do poder
de influência da cidade como núcleo empreendedor, considerando inoportuno,
alimentar a discussão, sustentada pela nostalgia dos tempos em que o apito do
trem despertava as comunidades que usufruíam da ferrovia como meio de
transporte de cargas e de passageiros ou dos navios que zarpavam do Porto
Salgado rumo a Europa, sob o rótulo “Parnahyba Norte do Brasil”.
O que outrora alimentava egos, na
atualidade, em razão da mudança radical do perfil da economia brasileira,
enriquecia bibliografias específicas de pesquisa, por meio das quais,
acadêmicos e pesquisadores poderiam detectar a falta de visão das elites
parnaibanas, no que diz respeito aos novos rumos da economia, a partir do
momento em que o presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), consolidou as
estradas como elemento prioritário para o desenvolvimento nacional, em
detrimento do transporte fluvial e ferroviário, incorporados à história como
“símbolos do passado”.
Nitidamente contrastando com os que
consolidam o conhecimento no egoísmo, Canindé Correia acompanhava a dinâmica
dos fatos no âmbito do Jornal INOVAÇÃO, com ousadia. Entusiasta do
desenvolvimento econômico e social mantinha o tom elevado do discurso para
denunciar as estatísticas preocupantes da miséria, comentando entre amigos que
houvera chegado a hora de mudar o perfil da sociedade, cabendo ao movimento
popular encaminhar as alternativas de discussão coletiva com a participação
popular, as classes dirigentes, e por que não, da Associação Comercial de
Parnaíba e da Federação das Indústrias do Estado do Piauí, com sede em
Parnaíba, desde a sua criação em 1954, embora a FIEPI, à época, dominada por
grupos retrógrados e de onde prosperaria o projeto de desmembramento dos Morros
da Mariana do município de Parnaíba, iniciativa que o jornal se insurgiu.
Entretanto, o apelo jornalístico
jamais seria digerido no âmbito dessas e de outras entidades, muito
provavelmente porque, naquelas circunstâncias, não alcançaram a dimensão das
novas fronteiras que poderiam ser alcançadas a partir de campanhas de
valorização da autoestima, tendo em vista a superação da incômoda imagem de
“cidade do já teve”, lamentável condição em que Parnaíba, nas trevas da
ignorância feudal dos líderes políticos, estava inserida.
Com a convivência passei a
chamá-lo de “chefe”, em referência ao cargo que ocupava no Serviço Social da
Indústria. Por princípios comuns, discordávamos do amor livre e do uso de
drogas. Também não morríamos de amores pelo rock’n’roll. Entretanto, a Bossa
Nova, através das batidas de Badem Powel, Carlos Lyra e João Gilberto, combinou
com nossa personalidade e temperamento. Com o amigo com quem tive relação muito
pessoal, convivendo como sujeitos ativos da história, caminhamos e cantamos,
seguindo a canção de Vandré, buscando compreender as dores do mundo na
expectativa de uma sociedade solidária, alimentando utopias compatíveis à
esperança de quem visualizava um Planeta onde seria possível a todos viver em
condições de igualdade.
Espírito eminentemente
anticapitalista, Canindé Correia discordava da tendência humana ao consumismo
exacerbado, considerando a fragilidade das conquistas relacionadas ao prazer e
à felicidade, um reflexo do sistema politico e econômico que se apodera das
vontades, utilizando-se da mídia para estimular a cultura do descartável,
inclusive, os relacionamentos.
Atendo às necessidades de
evolução do movimento social, colocou o único transporte de sua propriedade –
uma moto Honda 125 – para servir de suporte às varias atividades do Grupo. No
auge da amizade, quando já circulava de automóvel, me visitava em casa todas as
manhãs. No silêncio do alvorecer das quatro estações, sua chegada era anunciada
ao acionar o freio de mão do seu Corcel II.
Coautores de notinhas, títulos e textos, fidelizávamos agilidade em
formular ideias com a habilidade de coordenar e encaixar as palavras nos
períodos. Chegar ao consenso, na busca de manchete atraente, compatível ao que
gostaríamos, era motivo de alegria.
Politicamente integrado à
dinâmica do tempo, Canindé Correia sabia analisar com conteúdo convincente
questões eleitorais em nível local, nacional e internacional, nutrindo paixão
especial pelos números estatísticos, aos quais se apegava como referência para
avaliações que superavam a visão contraditória dos pseudocientistas sociais.
Sem reivindicar o título de profeta, construía situações favoráveis para
fomentar a avaliação da realidade parnaibana, traçando parâmetros de comparação
determinantes das circunstâncias do atraso entre esta e outras cidades com as
mesmas características, e que, entretanto, apresentavam desenvolvimento
econômico e social satisfatórios.
Pela forma de ver os
acontecimentos à sua volta, intuído pela conduta humana irretocável, adotava,
como critério de avaliação, valores diferentes do comportamento habitual em que
bens materiais são colocados na balança como objeto de valorização do
indivíduo. Cauteloso ao escolher amigos, orgulhava-se dos poucos que
desfrutavam do seu círculo, preferindo qualidade à quantidade, afirmando gostar
de se relacionar com gente inteligente e de caráter. Por herança da genética
paterna, preferia a postura de mergulhar na boa leitura, a compartilhar de
relações sociais sustentadas pelas aparências.
Por suas convicções, a ligação
quase umbilical com o movimento popular não comprometeu o vínculo consanguíneo
de família tradicional. Em oposição aos laços familiares culturalmente
conservadores, revelou-se um parnaibano de visão terceiro-mundista,
identificando-se com as nações empobrecidas do Planeta, defendendo,
categoricamente, esses redutos de exploração do capital sobre o trabalho, com
comentários cortantes, principalmente, contra a grande mídia, em que alguns
articulistas direcionavam a notícia, desvirtuando a realidade sobre o
enfrentamento dos povos contra a burguesia, nas lutas por alternativas de poder
e, difundindo informações distorcidas sobre o acirramento das lutas por
liberdade.
Alvo de sua inquietude, as nações
que apresentavam os mais baixos índices de expectativa de vida, o fazia
vasculhar os catálogos das editoras. Sentindo a necessidade de estar informado
sobre o desenrolar dos movimentos de libertação nacional, especialmente na
Nicarágua, dos Sandinistas; em Cuba, de Fidel; em Moçambique, de Samora Machel;
em Zâmbia, de Kenneth Kaunda; e na África do Sul, de Nelson Mandela, solicitava
livros, revistas, assinava jornais, enfim, sabia alcançar o mundo à sua frente.
Imbuído do propósito de plantar
as sementes que germinariam a essência do seu discurso humanitário, certa
ocasião, foi a meu encontro com uma edição dos “Cadernos do Terceiro Mundo”,
uma das melhores publicações editadas no Brasil, fundada em setembro de 1974,
por Neiva Moreira, Beatriz Bissio e Pablo Biacentini.
Na opinião de Canindé Correia, o
INOVAÇÃO deveria assumir a publicação de textos em solidariedade aos povos do
Terceiro Mundo, numa “época em que se vivia uma História em movimento e uma
confrontação permanente de pensamentos antagônicos”, assim, o fizemos, embora
os conteúdos “comprometedores”, alimentassem a fúria dos opositores do
jornal.
De formação humanitária
absolutamente afinada com a evolução do homem, a partir da concepção de novas
mentalidades, Canindé Correia absorvia a leitura das obras de Alceu de Amoroso
Lima, Carlos Drummond de Andrade, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Frei Beto, Joel
Silveira, Nelson Werneck Sodré, Fidel Castro, Dom Pedro Casaldáliga, dos quais
compartilhava as ideias, queimando pestanas em horas incessantes de leitura e
reflexão. Navegando pelas fronteiras do conhecimento, repassava com entusiasmo,
o conteúdo do que lia, analisando de modo breve.
Não há como fugir da lembrança o
entardecer do dia em que, embalados por espiritualidade saudável, fomos
espairecer na beira-Rio, onde nos acomodamos no “Veleiro”. Chamariz de boêmios,
o bar estimulava prolongar a jornada, atravessando tardes e noites vadias.
Prazerosamente sentados, aquela brisa agradável na pele, o pôr do sol
refletindo seu encanto sobre as água do Igaraçú, e o violão, bem ali, colado ao
peito de Edson Rocha, que nos alegrava com a leveza de sua agradável companhia,
a deslizar os dedos sobre as cordas do instrumento, emitindo sons que
preencheram o ambiente de musicalidade envolvente.
Como num toque de magia, nos
entreolhamos, erguemos as taças, brindamos e consumimos de um gole só, a
primeira rodada de cerveja. Simultaneamente, o amigo violonista sinalizou com a
batida no violão para que eu o acompanhasse, fazendo vibrar o tom da música “O
amor em paz”, de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes. E eu cantei, com
alma, coração e muita vibração. Ao ouvir a sentença “o amor é a coisa mais
triste quando se desfaz” Canindé Correia, fascinado com a melodia a
penetrar-lhe n’alma, tremeu nas bases. Arrebatado emocionalmente para outras
dimensões, levanta-se da cadeira, estufa o peito, abre os braços, gesticula
para enfatizar o estado de euforia e pronuncia: – Isso é muito lindo! Isso é
muito lindo! O pensamento circular desconectou o amigo consciencioso, sobretudo
pela apurada sensibilidade de ver as coisas, o mundo e as pessoas. Como diria o
poetinha, em “Tomara”, das músicas que compôs sozinho, a coisa mais divina
desse mundo é viver cada segundo como nunca mais. É bom lembrar que em nenhuma
daquelas ocasiões desperdiçávamos o tempo com conversa miúda ou
particularidades inerentes à vida alheia. Os assuntos convergiam,
predominantemente, para troca de palavras no âmbito da conjuntura social,
politica e econômica. Enfim, a pujança de confraternizações daquela natureza
era uma maravilha: o entardecer, a cerveja gelada, o violão, a conversa
aflorando descontraída e envolvente.
No momento de colocar em pauta
algum tema para ser discutido democraticamente, Canindé Correia, formulava
propostas recorrendo à comunicação argumentativa, fundamentando o assunto
dialeticamente, articulando com habilidade, sem manipulações, concordando ou
mesmo discordando de outras opiniões. Dono de jeito muito pessoal de ser, se
habituou a conversar mutilando a substância fina e flexível das folhas de
papel, pelos cantos, cujos apêndices, dobrando e desdobrando, como se fora
diminutas sanfonas, eram manuseadas em câmera lenta, ao tempo em que
raciocinava progressivamente. Sem qualquer constrangimento, o documento
acessível sofria o crivo dos dedos habilidosos. A prática repetitiva, em que
não havia a intervenção da vontade de danificar documentos, faz parte da
coletânea de casos engraçados de José Ciríaco Lima, mestre na arte da imitação,
que detalhava, com naturalidade, os mecanismos da atitude de natureza
instintiva. Um simples olhar para a demonstração teatral acontecer, e a
sensação de riso emergia.
Motorista e fiel escudeiro de
outro José, o Hamílton Castelo Branco, Zéciríaco, familiarizado conosco, nos
transportou para paradas inolvidáveis, quando batia à minha porta, acompanhado
apenas do patrão ou de Canindé Correia, na certeza de que, independente da
hora, se com o sol a pino, emergindo no horizonte; ou em plena madrugada, de
lua cheia ou na escuridão das noites, o acolhimento teria a mesma
afetividade. Seguramente, no vigor de
manifestações de amizade sincera, movidas a muitos brindes, sem trincar
cristais, foi que se tornou possível, a saga de INOVAÇÃO. Portanto, sentimentos
de natureza humana, revestidos de adjetivos que qualificam atos e ações,
constituem a memória invisível, de altíssimo valor.
O tempo passou. Estávamos em
1992, quando o jornal já não existia. Entretanto, de tão importante, fazia
parte das nossas histórias. Por isso, juntamente com Canindé Correia, Elmar
Carvalho e Vicente de Paula Araújo, o Depaula, elaboramos uma edição
extemporânea, estimulados por dois motivos: homenagear o amigo e colaborador
Mário dos Santos Carvalho, desencarnado a 25 de novembro de 1991, e mostrar a
importância do Distrito de Irrigação Tabuleiros Litorâneos do Piauí, na pessoa
do gerente executivo, Vilmar Klein Ferreira, um dos entusiastas do projeto, em
entrevista exclusiva, que, ao ser convidado, demostrou indignação com a classe
política e a comunidade, por não haverem incorporado, nas suas plataformas de
lutas, a permanência do Centro Nacional de Pesquisa Irrigada (CNPAI), único
centro do gênero da América do Sul, instalado em Parnaíba, já que a
transferência do órgão estava sendo articulada para Teresina.
Enquanto o Jornal INOVAÇÃO
retorna às bancas, conservando o entusiasmo e consistência que marcaram a
existência do alternativo mais duro na queda do Estado do Piauí, no comando da
cidade, a mesma constelação de estrelas ilustres, sem perder a pose,
mantinha-se atrelada às glórias do passado, certamente para não comprometer o
sistema nervoso dos interesses que se resumiam na necessidade de manutenção do
poder pela aparência fútil da vaidade.
Representante da corrente de
pensamento em que as ideias avançadas devem ser discutidas construtivamente,
Canindé Correia se sobressaiu pelo compromisso de conscientizar pelo poder da
palavra e o comportamento ético em tudo que fazia: no trabalho, nas relações
sociais e nos compromissos com a sociedade. Parceiro de tudo aquilo que não
pode ser objeto de contestação, sem se arvorar de dono da verdade, nos momentos
em que as discussões efervesciam, sobretudo quando o assunto fazia referência à
Parnaíba, ativada a centelha da paixão pela terra natal, surpreendia pela
abundância de argumentos infalivelmente construtivos, despontando, da ave
dócil, de timidez proporcional à estatura, o galo de briga indomável.
Identificado com as lutas por
democracia, sua contribuição para a sustentação da linha editorial do Jornal
INOVAÇÃO e a consolidação do Movimento Popular, pautada pela plenitude do
conhecimento, foi de construção do ser humano integrado à vida pela grandeza de
seus valores e potencialidades.
(*) Professor e escritor.
Fundador, juntamente com Franzé Ribeiro, do Jornal Inovação.
Fonte do texto e da fotografia: Blog do B. Silva
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