Cel. Jesuíno e sua família. Fonte: Folhas Avulsas |
Coronel Jesuíno Sousa da
Piracuruca
José Pedro Araújo
Cronista, contista, historiador e romancista
Coronel Jesuíno Sousa era um dos
grandes fazendeiros de Piracuruca, dono de vastas fazendas situadas naquele
município e em Batalha, chegando seus limites a se entender até o município de
Barras. Homem inteligente e de visão apurada, não aprendeu a ler nem a
escrever, mas possuía uma capacidade excepcional para fazer contas de cabeça e,
acima de tudo, de visualizar o futuro. Nenhum cálculo mal feito lhe escapava à
percepção quanto pedia aos filhos que procedesse a alguma soma ou subtração. A
falta de aprendizagem nos bancos escolares, foi prontamente compensada com a
experiência de vida, a observação detida e o fino faro para os bons negócios.
Negócios honestos, lícitos, pois como sempre dizia ao final de uma transação, a
coisa só termina bem quando os dois lados ficam satisfeitos.
Esse homem sábio, nascido em um
lar pobre e de família numerosa, nunca se dobrou à sina comum aos que vem ao
mundo com esse viés hereditário, e logo se rebelou contra o estado de pobreza
que açambarcava a sua família: desde a sua infância dedicou-se com afinco ao
trabalho e aos negócios. Para exemplificar isto, vou contar um fato que ouvi
uma ocasião sobre a determinação deste homem de compleição física pequena, mas
sabedoria enorme. Certa vez, ainda muito jovem, ao atravessar a Fazenda Lagoa
do Saco, uma das grandes fazendas da região, tocando uma pequena tropa de
burros de um determinado cidadão a quem prestava seus serviços, prometeu que
ainda seria dono daquelas terras que tanto admirava. E de fato, muitos anos
depois, conseguiu comprá-la dos herdeiros do antigo proprietário. E não somente
esta, mas outras duas grandes propriedades que faziam limite com ela:
Cajazeiras e Santa Maria. As três somavam uma área contínua de mais de dois mil
e duzentos hectares de ótimas terras com pastagem natural abundante, várias
nascentes e extensos carnaubais. Nelas o coronel criava um numeroso rebanho de
gado vacum e uma grande quantidade de ovinos e caprinos, além de explorar seus
carnaubais.
Mas o início da sua história
começou na pequena Fazenda Cocal, situada no município de Batalha, lugar em que
estabeleceu a sua morada e criou a numerosa prole. Naqueles anos, a Carnaúba
embasava a economia do estado, e Piracuruca situava-se no centro do maior polo
produtor de cera, principal produto extraído desta palmácea. A Fazenda Cocal,
apesar de contar com terras boas para a agricultura (fruticultura em especial,
pois de lá retirava muitas carradas de laranja e banana para serem
comercializadas) e pecuária, não possuía um carnaubal rentável. E o coronel
acreditava que as grandes fortunas da região estavam baseadas na criação
extensiva de bovinos e na exploração de seus carnaubais. Fora disto, não havia
grandes oportunidades de enriquecimento, pois o comércio ainda era muito
incipiente e o que provinha da agricultura mal dava para o sustento das
famílias. Munido de grande determinação, o jovem Jesuíno instalou um pequeno
comércio na própria fazenda, e começou a trabalhar incansavelmente para
contornar o problema relacionado ao seu pequeno carnaubal: resolveu plantar
carnaubeiras por toda a extensão da sua propriedade. Era um trabalho pesado e
com resultados em longo prazo, visto que a árvore da carnaúba leva vários anos
até chegar ao ponto de permitir a extração das suas folhas. Estima-se em dez
anos esse tempo necessário, quando as palhas já podem ser retiradas para a
extração do pó que se transformará em cera.
Precisava ser um homem muito
determinado para acreditar que, através do plantio da palmácea, iria conseguir
superar a pobreza das suas terras em relação a este vegetal. Mas ele foi em
frente. Como até então ninguém havia feito isto, poucos acreditavam que ele
teria sucesso na sua empreitada. Com exceção dele, é claro. E foi assim que,
usando apenas a sua intuição, vez que não existia ainda uma técnica
desenvolvida para o plantio desta espécie cerífera, coube a ele fazer uma
seleção das plantas mais produtivas para povoar a sua fazenda. Depois foi só
esperar para colher os primeiros resultados. E eles foram dadivosos,
animadores, ao ponto de atiçar-lhe o ânimo para ampliar a quantidade de árvores
adotando o mesmo método.
E foi assim que ele - para
encurtar a história – com trabalho e muito empenho, começou a utilizar a renda
extra que obtinha com as suas atividades corriqueiras, para adquirir novas
propriedades. Como uma única exigência: teriam que possuir extensos carnaubais.
E assim, produzindo e vendendo cera de carnaúba, deu cumprimento a sua promessa
e adquiriu a Fazenda Lagoa do Saco. E depois muitas outras.
Seus rebanhos também foram
aumentando à medida que novas terras foram sendo adquiridas. Naqueles tempos, é
importante que se diga, criava-se extensivamente nas vastas áreas de pastagem
nativa existentes na região, sem a necessidade de grandes investimentos com
pastos, cercas ou aguadas. Isso, até que o arame farpado veio interromper esse
tipo de exploração pecuária. Naquela época também, os rebanhos se dispersavam
por toda a região e, muitas vezes, ultrapassavam os limites do próprio
município. E por conta disto, em épocas previamente definidas, como nos
momentos de vacinação, ou mesmo de escolha de amimais para a vendagem, os
vaqueiros saíam para campear por toda a região, trabalho que demorava semanas,
até mesmo meses.
Vaqueiro, nesse tempo, era uma
profissão respeitada e isso fazia com que muitos jovens se dedicassem a esse
tipo de trabalho. Um bom cavalo de sela, arreios vistosos e uma boa vestimenta
de couro (gibão, perneira, peitoral, luvas e chapéu de couro), transformava o
homem em uma figura quase mitológica, um herói das plagas nordestinas. E isso
encantava muitos jovens.
Certo dia, já avançado na idade e
residindo em Piracuruca, Coronel Jesuíno recebeu a notícia, por um de seus
filhos, de que um determinado novilho estava causando um verdadeiro alvoroço na
região de Batalha, onde o fazendeiro possuía várias propriedades. Isso começou
quando os vaqueiros saíram a campo para juntar a boiada que se achava no ponto
de venda para o abate. O gado, criado daquela maneira, às vezes oferece alguma
dificuldade na hora de juntá-los, nada, contudo, que atrapalhe o ofício
daqueles homens acostumado à sua corriqueira lide. Mas dessa vez havia
aparecido um boizinho que estava fazendo história: ninguém conseguia pôr as
mãos nele, apesar das inúmeras tentativas. Soube ainda que essa história já
havia corrido o mundo e transformara o boi em uma verdadeira entidade. Alguns
diziam até mesmo que ele tinha pauta com o demônio, era encantado. Tudo porque,
em várias ocasiões, tinha conseguido se evadir mesmo estando cercado por
numeroso grupo de vaqueiros em um capão de mato. E quando eles penetravam na
vegetação, não mais o encontravam lá. Havia sumido.
O fato é que a cada tentativa de
lançarem mão no boi, o arredio animal dava sempre um jeito de escapar aos seus
perseguidores e sumir no mato. Apesar de não ser um animal muito grande, o que
causou espanto à populaça foi que o Marruá fora criado junto à comunidade
Caraíbas, povoação próxima a Batalha, e era sempre visto no pátio de uma
determinada casa, onde habituou-se a passar a noite. Todavia, mal o dia
clareava, sumia sem que o seu paradeiro fosse conhecido.
Quando chegou a sua vez de ser
aprisionado para ser conduzido ao açougue, o boizinho se revelou e ninguém
conseguia pôr as mãos nele. Foi então que a história se espalhou na região e
chamou a atenção de inúmeros vaqueiros ansiosos por ganhar fama. E cada vez
mais homens vinham em busca do arisco animal, mas ninguém lograva êxito. Nem
mesmo os vaqueiros mais afamados da região. Ao tomar conhecimento da história,
e da verdadeira festa que estavam organizando para o final da semana seguinte,
um dos filhos do Coronel, munido de uma câmera para filmagem, desceu para o
local do acontecimento que estava chamando tanto a atenção de todos.
Lá chegando, já encontrou uma
multidão que ultrapassava a três centenas de pessoas, mas de cem deles afamados
vaqueiros determinados a capturar o boi fujão. A empolgação já era grande
naquele instante porque a noticia de que o animal fora visto em determinado
local se espalhara como um rastilho de pólvora. Naquele instante, os vaqueiros
já se dirigiam ao local indicado, cada um deles na expectativa de aprisionar o
animal fujão e ganhar o laurel de maior vaqueiro da região. O pessoal que
acompanhava atentamente o movimento postou-se em um beco, entre duas cercas, e
ficou à espera que, finalmente, o boizinho aparecesse conduzido por algum dos
inúmeros vaqueiros que seguiram em seu encalço.
Daí a alguns minutos, alguém
gritou para avisar que o boi vinha vindo. Causou o maior frisson quando bicho
surgiu na entrada do beco, em disparada, livre e com um grande grupo de
vaqueiros em seu encalço. O descendente do coronel, que havia levado um filho
pequeno, além da câmera para a filmagem do grande momento, quando viu que os
populares corriam assustados e procuravam a saída do beco, tentou proteger o
menino e também partiu em desabalada carreira. Seu propósito era se abrigar no
seu carro que ficara estacionado à sombra de uma árvore. Mal teve tempo de se
servir da proteção do tronco de outra árvore que encontrou pelo caminho.
Safou-se por pouco de ser atropelado pelo novilho. A câmera deixou registrada a
cena da sua fuga, e não o boi fugitivo.
Depois disto, o boi sumiu em meio
à vegetação e não mais foi encontrado. Decepção geral. Horas depois do
acontecimento, a vaqueirama já se mostrava derrotada mais uma vez, trazia o
semblante decaído e um enorme sentimento de frustração invadia a alma de cada
um deles. Foi quando se destacou do grupo um homenzinho, a pé, descalço, pés
largos e acostumados a palmilhar o solo quente da região e enfrentar os
espinhos que infestam o carrascal, seguiu sozinho no rastro do animal. Levava
com ele apenas uma velha corda de laçar atada ao ombro. Quem o visse naquela
pisada ligeira, jamais apostaria no sucesso da sua procura, uma vez que os
vaqueiros mais experimentados que havia por ali haviam falhado bisonhamente.
Outro filho do Coronel Jesuíno,
responsável pela operação de captura do boi, já se preparava para ir embora,
quando lhe chegou a notícia de que o boi havia sido encontrado pelo homenzinho
descalço, e provavelmente capturado. Surpresa geral. Quem já estava indo
embora, voltou atrás e ficou à espera do tal boi fujão. Não demorou muito e lá
vinha o boi mansamente conduzido pelo homem do laço. A pé, vinha seguido por
grande séquito, homens vestidos de couro e montados em seus cavalos de campo.
Ninguém acreditava que aquilo estivesse acontecendo. O animal escorregadio e
que todos acreditavam ser uma entidade espiritual, que há dias vinha fugindo
dos melhores e mais renomados vaqueiros, vinha agora manso e cordato pela
estrada, conduzido por aquele pequeno homem sem cavalo e sem fama de grande
vaqueiro.
Em Piracuruca, quando o Coronel
Jesuíno Sousa tomou conhecimento que o boi havia sido, finalmente, capturado,
enviou ordem expressa para que ninguém tocasse naquele animal. Justo, como
sempre fora, afirmou que o boizinho havia lutado bravamente, e por isso, ganhara
a sua liberdade definitiva. Mas a ordem, para seu desgosto, chegou tarde. Com
receio de que aquele animal fujão escapasse novamente, seu filho havia
determinado a sua execução e a carne fora encaminhada ao açougue para ser
comercializada. Triste fim para o boizinho que havia prendido a atenção do povo
de toda uma região por muitos dias, com a sua fama de aparição.
Esta é apenas uma das histórias
que cercam a vida do Coronel da Piracuruca, Jesuíno Sousa. Homem correto e
despido de luxos que criou numerosa família que hoje se acha espalhada por este
vasto país.
Se vivo estivesse, hoje estaria
festejando o seu 127º aniversário de nascimento!
Caro José Pedro,
ResponderExcluirCreio que na fotografia que ilustra seu texto, esteja o nosso bravo "coronel" dos magistrados inativos, Raimundo Sousa Lima, embora eu não o tenha identificado, pois já o conheci adulto e barbado.
Parabéns por sua matéria sobre um cidadão, que foi um homem de bem, pelas informações que me chegaram.