Praça da Graça, com os tapumes que escondiam os seus escombros |
DEPOIMENTO : Revivendo agosto na Praça da Graça
Reginaldo Costa
Nos tempos modernos, não houve manifestação semelhante aos
protestos contra a destruição da Praça da Graça, cuja culminância, com a queima
dos tapumes, há exatos 39 anos, completados no dia 31 de agosto de 2018, não
poderia, jamais, se perpetuar no esquecimento.
Tapumes que deram origem a revolta popular. Foto: arquivo
Inovação.
Em substituição a uma formação temporária da natureza,
deu-se início à implantação do logradouro que ganharia importância política e
social, ao longo da História. Acompanhando os acontecimentos de cada época, e em
algumas recebendo diferentes denominações, a Lagoa da Onça, em nome do
desenvolvimento, cederia o espaço das águas ao que seria, definitivamente, a
Praça da Graça. A princípio, duas áreas distintas, elegantemente separadas pela
Rua do Passeio, consolidadas em nome do Catolicismo: Jardim do Rosário e Largo
da Matriz.
Detalhes Marcantes
Não havia programa melhor do que frequentar a Praça da
Graça, nos fins de semana, lugar ideal para rever amigos, conhecer alguém
interessante, usufruindo as delícias dos ventos marítimos em agradável
sinfonia. De modo especial, durante o mês de agosto, o represente comercial
Jonas da Costa Santos, com residência em Teresina, vinha todos os anos a
Parnaíba, atraído pelas condições climáticas. Ouvia o parente querido comentar
com meus pais, que fumar um cigarro n’algum banco da praça, onde permanecia por
longas horas, era uma terapia, aliviando as dores do rolo compressor da luta
pela sobrevivência.
Circulando pela praça eu percebia as pessoas se comunicarem
alegremente, com brilho nos olhos e doçura nas palavras, sem contaminar o
primeiro contato pela irracionalidade da ostentação. Longe da correria dos dias
atuais, a prevalecer os contatos online, compartilhava dos acessos protegidos
por árvores frondosas, outros por palmeiras imperiais, a ornamentarem os
tapetes verdes de grama que dividiam as passarelas perpendicularmente às
tangentes, possibilitando o ir e vir sem conflitar vontades. No decorrer de
alguma conversa em grupo, os passantes cumprimentavam uns aos outros, e alguns
até se permitiam ficar por um tempinho. Sem demora, as conversas,
agradabilíssimas, na verdade desconectadas do mundo, facilitavam o
congraçamento. O cenário, de equilíbrio entre as pessoas e de afeição ao
logradouro, certamente encontraria nas artes plásticas, a dimensão da poesia
nas cenas de amor e reverência à vida, com vasta concentração de energia humana
a vibrar na sintonia da cordialidade. Inebriados pelo espetáculo dos movimentos
nessa direção, não havia o otário nem o espertalhão.
Do Coreto, ouvia-se a Charanga executar as marchinhas que
nem se ouve mais. Conservando os padrões da arquitetura admirável dos tempos em
que a cidade se tornou conhecida no Brasil e no exterior, pelo dinamismo de sua
gente, além da Catedral e igreja do Rosário, templos historicamente
catalogados, havia, no entorno, os prédios dos Correios, Banco do Brasil e Cine
Éden. Contrastando com a hegemonia de edificações que correram o mundo
estampadas em cartões postais, a AABB, clube simples mais acolhedor, em que
minha geração viveu noites sedutoras, consolidou a preferência, abrindo as
portas para repercutir na memória, o bem mais significativo: a oportunidade do
encontro.
A poucos metros, a Discolândia, do lendário Jairo Medeiros,
fazia parte da dinâmica do dia a dia da, tanto pelos decibéis da caixa de som
exposta na calçada, acima daquilo que a lei permite quanto pelo estilo de
comunicação do proprietário. Quantos não foram os meses de agosto, em que no
dia 12 meu pai adentrou ao recinto para comprar o presente de aniversário
predileto da única mulher que amou na vida? Debaixo do braço ele conduzia os
convidados especiais para a festa em família: Agnaldo Timóteo, Nelson
Gonçalves, Miguel ngelo, Núbia Lafayette e tantos outros, na forma de LPs,
compactos, ou “discos de cera”, aqueles que giravam na vitrola na rotação 78.
Jairo Medeiros foi das figuras envolventes que conheci. Na
noite do acidente que lhe ceifou a vida, ouvi o não irretorquível, quando
perguntei, da calçada do Lions Clube de Luiz Correia, se poderia oferecer
carona. Já no carro com a esposa, respondeu brincando: – Não, meu bem, ainda
vou dar uma voltinha! Sorri e mandei beijinho. Na manhã seguinte, fiquei
sabendo que a “voltinha” teria sido a última de sua existência.
Dos locais continuamente frequentados, a Pérgula, atraía os
olhares de contemplação pela beleza das pedras ornamentais, o corpo d’água,
moradia dos quelônios que se mantinham submergidos, mas vinham à tona, bailando
mansamente, a encantar, acima de tudo, o público infantil, despertando para a ligação
do homem com os seres de outras espécies, e o verde das trepadeiras que se
acomodavam de uma maneira elegante ao Caramanchão. Em meio a essa atmosfera que
impregnava o ambiente de romantismo compatível à ocasião, os casais de
namorados se abraçavam, em demonstração amorosa espontânea, sem a necessidade
de artificializar relacionamentos para exibir em selfs. O que não havia àquela
época.
Pérgula: inevitável nostalgia. Foto: acervo de Hélder Fontenele |
Ainda nas décadas de 60 e 70, sob os mais diversos aspectos,
a charmosa Praça da Graça, serviu como ponto de referência às gerações que
viveram momentos apaixonantes de períodos históricos distintos, convivendo em
harmonia com a paisagem, na leveza de um espaço público rico em detalhes
marcantes da vida de um povo. Certamente não vivíamos um conto de fadas. Tudo
aquilo era real, perceptível em imagens definidas com clareza!
A influência do Jornal Inovação
Na época em que aconteceu a demolição do logradouro
predileto da população parnaibana, circulava um jornal sem fronteiras no que
diz respeito à defesa dos interesses do povo e da cidade. De linguagem
contundente, assumidamente contrário às falas mansas da crônica social, o
Inovação se manteve coerente com o outro lado da História, questionando as
elites, o poder político, e as causas dos entraves que impediam o
desenvolvimento econômico e social.
Sem se perder nos clichês da imprensa tradicional, durante
os dez anos de existência, foi tribuna dos excluídos, e no pleno exercício da
rebeldia saudável da imprensa alternativa, colocou em prática o jornalismo com
a exata percepção da dinâmica do sistema que ampliava, em números astronômicos,
a distância entre pobres e ricos.
Por algum tempo, a redação do nanico considerado por
pesquisadores o mais importante do estado do Piauí, esteve de portas abertas no
cruzamento das ruas Riachuelo com Francisco Correia, ocupando o pequeno espaço
que se metamorfoseava em gigantesco ponto de encontro para onde afluíam jovens sonhadores;
sindicalistas renovados; adeptos de tendências religiosas; poetas, contistas e
cronistas abertos a várias correntes de pensamento; líderes de movimentos de
reivindicação; estudantes rebeldes; artesãos assistidos pela alta
espiritualidade a dimensionar em obra de arte a grandeza da existência;
agitadores culturais, em momento de vasta produção dispersa pela indiferença
das classes política e empresarial; intelectuais, ostensivamente favoráveis à
abolição de preconceitos; idosos, amantes da vida; ilustradores e cartunistas,
sobressaindo-se como profissionais de alto nível, nas páginas de Inovação, o
primeiro jornal parnaibano em impressão offset; músicos com os pés no chão,
superando invencionices e modismos; visitantes de várias partes do Brasil e
também do exterior, encantados com a coragem que aquela gente enfrentava os
problemas e os poderosos: de peito aberto e a imaginação nas ações afirmativas.
Inovação não era somente o jornal. Havia um grupo de gente
inteligente e esclarecida de várias gerações, representantes de diversos
segmentos, militantes com atuação relevante nos movimentos estudantil
(secundarista e universitário); nas associações de moradores; sindicatos; nos
núcleos de base da igreja Católica que através da corrente teológica cristã
progressista, pregava a opção preferencial pelos pobres, junto aos quais
desenvolvia atividades, conscientizando para a plenitude da vida, tendo por
base documentos do Concílio Vaticano II e conceitos extraídos das ciências
humanas e sociais a endossar a caminhada do que se tornaria popularmente
conhecida por Teologia da Libertação.
A partir dessas conexões, que não eram institucionais, o
jornal, com poder de articulação, penetrava nos ninhos do movimento social,
cada dia mais atuante, favorecendo alianças em torno de bandeiras de defesa das
causas indígenas; da ecologia e do meio ambiente; da mulher; do negro; pela
democratização da imprensa; por Diretas Já; por uma Constituinte livre e
soberana; pelos Direitos da Criança; por Reforma Agrária Já!; por uma Lei dos
Estrangeiros, enfim, por saúde, educação e trabalho. Nesse contexto, munido de
palavra favorável às lutas por justiça social e disposição de lutar,
influenciava com abordagens de conteúdo oposicionista, envolvendo pelo imenso
desejo de mudar o mundo, desconstruir mitos, ligando teoria à prática,
repercutindo o grito de uma geração de idealistas, tendo em vista as “rupturas
de uma sociedade cristalizada em normas antigas”.
As questões de âmbito municipal ocuparam algumas páginas.
Reportagens, artigos, pesquisas, entrevistas, crônicas, abrangiam os mais
diversos setores da sociedade, com conteúdos que correspondiam às exigências
dos leitores, despertando atenção especial, o Movimento Pró-Teatro e a
reconstrução da Praça da Graça, que desde as primeiras horas da destruição até
a publicação de nota no jornal “O Comércio”, do Rio de Janeiro, sob o título
“No Piauí a praça é do povo”, que dimensionaria nacionalmente a ocorrência, o
aguerrido Inovação estimulou a consciência popular.
Embora as diferenças façam parte da história da humanidade,
naquela noite, no exercício do pleno direito a manifestação, gente de todas as
procedências e concepções antagônicas do bem e do mal, mais que se sentiam
vítimas e cumplices dos mesmos sentimentos, se confraternizou com euforia, aos
gritos, abraços e brindes a lavar a alma, e em cada olhar, a expressão de paz
interior. O entusiasmo de dias e noites felizes na praça símbolo de uma época
de progresso e amor à cidade, houvera se transformado em cinzas!
Polícia protege as cinzas que restaram dos tapumes. Foto: arquivo Inovação |
Primeiro plano: Elmar Carvalho, Gláucio Resende, Bernardo Silva e Yure Gomes. Foto: arquivo Inovação |
Reginaldo Costa acenando para manifestantes eufóricos. Foto: arquivo Inovação |
Para registrar a ocorrência nos anais da História, o Jornal
Inovação (Nº 22, setembro/1979), ainda na fase do mimeógrafo, vai às bancas em
edição especial com tiragem de 1.200 exemplares, tendo como carro-chefe o
Editorial intitulado “31 de Agosto − Do Povo Parnaibano ao Povo Parnaibano”,
escrito pelo professor Benedicto Jonas Correia, intelectual de mente iluminada,
plenamente identificado com as causas de interesse da cidade e sua gente.
Credenciado para aquela tarefa, extravasou o sentimento de amor à terra natal.
Na mesma edição, transcrito de editorial do jornal “O Dia” (02/setembro/1979),
sob o titulo “Parnaíba e sua praça”; “Da praça à gasolina ou a inoperância dos
nossos políticos aqui e em Brasília”, de Depaula; “Carta aberta ao B. Silva”,
de Bernardo Silva; “Balada da Praça da Graça”, com assinatura de “O Povo”.
Robustecendo a edição, o renomado jurista Celso Barros Coelho, colaborou com o
artigo “O que se espera dos moços”.
Jornal Inovação e Revista Repaginando: publicações comprometidas com a História |
Reiterando o que escrevi para a primeira edição de
Repaginado, editada em Goiânia, em 2014, sob o titulo “Praça da Graça: do
romantismo ao muro da vergonha”, no dia 31 de agosto de 1979, o povo parnaibano
sentiu a desventura de encarar o fim de uma época. A derrubada e queima dos
tapumes desnudou uma crueldade sem precedentes, sustentada por argumento
mentiroso, sabendo-se de que não havia projeto muito menos recurso disponível.
Pena que àquela época, o IPHAN não era identificado pela austeridade na
observância de seus princípios como nos dias atuais.
Embora o mês de agosto seja considerado de maus presságios,
entre tantos em que se comemora o Dia da Parnaíba, alguns historiados pela
pompa das celebrações religiosas, cívicas e políticas, o de 1979,
diferenciando-se dos demais, teve o sabor da liberdade, do exercício da
democracia e passaria para a História como marco da consciência popular na luta
por direitos e respeito ao patrimônio cultural imaterial.
Acessível em depoimentos, artigos jornalísticos e
fotografias, a manifestação popular se mantem preservada na lembrança de todos
que vivenciaram a epopeia. Portanto, oportuno dispensar o sentimento de negação
dos acontecimentos, escondendo a verdade atrás de bandeiras, crenças ou
vontades. Afinal, fato é fato.
Fonte: Blog do B. Silva
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