quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Vida de Agrônomo (3) – O portentoso Araguaia

Fonte: Google


Vida de Agrônomo (3) – O portentoso Araguaia

José Pedro Araújo
Romancista, cronista, contista e historiador

Depois um pequeno período trabalhando na EMATER-MA, fui prestar meus serviços no INCRA, no Projeto Fundiário Araguatins, situado naquela cidade do norte goiano ( hoje Tocantins). Foi uma experiência incrível, dado às diferenças que encontrei por lá. Cidade pequena e isolada, assentada sobre os barrancos altos do rio Araguaia, a região ainda vivia sobre os efeitos da Guerrilha do Araguaia, movimento que acabou por causar muitos transtornos e dissabores à população da região em que os membros do PCdoB escolheram para lançar suas bases. Povo desconfiado, inquisidor, dizia-se que noventa por cento deles era originário de algum estado nordestino. E entre esses, alguns tinham ido parar ali para fugir de alguma pendência com a justiça do seu estado natal. Vem daí, talvez, o fato de não gostarem de estranhos transitando pela sua cidade.

Para desgosto de alguns, e felicidades de tantos outros, o INCRA se estabeleceu na região trazendo um contingente com mais de cem pessoas, a maioria jovens que ocupavam o seu primeiro emprego. Imaginem a algazarra que fizeram na cidade. Muitas repúblicas foram formadas pelos funcionários solteiros (a maioria deles), e logo os barzinhos que viviam às moscas, passaram a contar com um número grande de fregueses habituais. Acabou a calma da pequena comuna que viveu isolada do restante do mundo por mais de um século. Diante disto, era comum ouvir a frase “tu é doido ou trabalha no INCRA?”.

Quando cheguei à região, o projeto já havia sido instalado há mais de um ano. Ocupava um velho e imponente casarão situado bem na beira do rio. Gostei da energia que emergia daquele lugar logo de cara. As pessoas pareciam está no seu momento mais feliz da vida, e a alegria se irradiava pelo longo corredor que ia de uma ponta a outra do prédio. Essa alegria era multiplicada quando a sexta-feira chega e, após o expediente, a maioria dos funcionários se apropriava das mesas do Pigale, um barzinho com a proposta de ser uma boate, situado no outro lado da praça. Estava apenas começando o final de semana de muita bebida e brincadeiras. Alguns extrapolavam mesmo. Era moda soltar foguetes durante todo o dia, como se comemorassem a vida. O delegado da cidade teve que chamar os mais afoitos à razão para acertar um pacto de silêncio.

Enquanto não encontrava espaço em uma das várias repúblicas formadas, fiquei residindo em um hotel próximo ao trabalho: Mogno Hotel. Tratava-se de um edifício todo de madeira de lei (mogno, como evidencia o seu próprio nome), dois pisos, construído também sobre o alto barranco do rio, defronte a algumas mangueiras seculares que embelezavam uma calçada que beirava o Araguaia. Era um local muito bonito e aconchegante, e o seu proprietário um polonês que dizia ser primo legítimo do papa João Paulo II. Rigoroso com as normas que estabeleceu, o proprietário transformou o seu estabelecimento em local tranquilo e respeitável.

Em uma manhã de sábado, estava eu sentado na frente do hotel e tentava espantar uma exagerada calma que havia me trazido uma melancolia profunda. Para tanto, fiquei observando alguns garotos subirem nos altos galhos das mangueiras e se atirarem nas águas, de uma altura de mais de cinco metros. O Araguaia, para quem não conhece, é um dos mais belos rios deste país abençoado pela fartura das suas águas. Largo, corrente aparentemente calma, possui naquele ponto uma profundidade muito grande. Ao observar a atividade daqueles garotos, comecei a me preocupar com a segurança deles. Meninos muito pequenos seguiam o exemplo dos maiores e também se atiravam lá das alturas naquelas águas, despreocupadamente.

Estava assim, quando se aproximou de mim o polonês, homem alto e enérgico, que ao me ver assim tão interessado com o acontecia do outro lado da estreita rua, falou que aqueles meninos pareciam não ter pai nem mãe. Concluiu dizendo que quase todos os meses morria alguém afogado naquele rio, mais os genitores daqueles garotos pareciam não se importar com isso e largavam os filhos sozinhos naquela beira de rio.

Curioso, perguntei se o rio era perigoso mesmo. Ele me respondeu que aquela calma aparente do Araguaia já havia enganado muita gente. Que uma vez dentro dele era que se via que a sua corrente era vigorosa e traiçoeira. Aí então me contou uma história surpreendente, quase inacreditável. Havia criado seus filhos, quando pequenos, quase o tempo todo dentro de uma gaiola. E que, por esse motivo, passou por alguns problemas com a promotoria local. A população ficara horrorizada com o que ele fazia para proteger a família, e o denunciou à promotoria de justiça. E discorreu mais sobre o assunto:

Preocupado com a segurança dos filhos, uma vez que vivia o dia inteiro fora, enquanto a mulher tinha que cuidar da casa, construiu uma enorme gaiola de madeira, medindo três metros de largura e outro tanto de comprimento, que era içada através de uma roldana, depois de colocadas as crianças dentro. Pareciam pássaros presos em uma gaiola a um metro e meio do chão. Dentro da gaiola, deixava alguns brinquedos para eles se divertirem enquanto o tempo passava. E logo o povo da cidade passou a dizer que ele criava os filhos como se fossem pássaros. E depois de algum tempo a história chegou aos ouvidos do promotor de justiça que o convocou para dar explicações sobre o fato.

O polonês contava isso com paixão ainda, passados já muitos anos do ocorrido. Não me contive e perguntei a ele como se defendeu frente à autoridade judiciária. “Disse para ele que o método que eu empregava na criação dos meus filhos podia até parecer esquisito, mas estava mantendo todos vivos. E enquanto isso, todos os dias quase, algum menino se afogava no rio”.

Disse-me, por fim, que o promotor não aceitara as suas justificativas e ordenara que ele não prendesse mais os meninos na gaiola. E foi então que ele pensou em construir o hotel e mudou o tipo de atividade que ele desempenhava, de modo a ficar mais próximo dos filhos. Foi assim que surgiu o hotel Mogno.

Fiquei imaginando a inacreditável cena descrita por ele: três crianças presas em uma grande gaiola suspensa para impedir que se afogassem no rio. Efetivamente, dava para escandalizar. Mas, realmente, não dava para dizer que a saída encontrada por ele – a de proteger as suas crianças do rio - não possuía uma eficiência inquestionável.

Como afirmei lá atrás, o lado de Goiás possuía um barranco alto, enquanto que o outro lado, o paraense, era mais baixo. E quando o rio começava a encher, levava meses para atingir a cota máxima, uma vez que as águas se espraiavam no lado do Pará e deixavam o rio com uma largura de muitos quilômetros. E para fugir da enchente, muitos animais ferozes atravessava o rio à procura do lado mais alto. Em um ano de grande cheia, presenciei quando uma gigantesca onça pintada tentava alcançar o lado goiano do rio e foi caçada por algumas pessoas em um barco e abatida a tiros. Imaginei o problema que aquela onça criaria para os habitantes da cidade se tivesse conseguido chegar até a margem. Do mesmo modo, vi quando abateram um jacaré tão grande como eu nunca havia visto antes. Pareceu-me tão velho, que as costas do lagartão continha um limo esverdeado. E só conseguiram abatê-lo quando atiraram no olho do bicho, pois as balas não conseguiam perfurar o seu couro.

Quando as águas, enfim, superaram a barreira do lado goiano e entraram nas casas mais próximas ao rio, tivemos que evacuar o prédio da instituição, aonde a água chegou a mais de metro de altura.  E quando baixaram, depois de muitos dias, encontramos dentro do velho casarão uma grande quantidade de cobras, aranhas e outros bichos peçonhentos. Ficamos ilhados na cidade também. Por muitos e muitos dias não pudemos sair para qualquer outra cidade vizinha. E o desabastecimento fez encarecer muito os poucos produtos que por lá chegavam.      

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