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Vida de Agrônomo (3) – O
portentoso Araguaia
José Pedro Araújo
Romancista, cronista, contista e historiador
Depois um pequeno período
trabalhando na EMATER-MA, fui prestar meus serviços no INCRA, no Projeto
Fundiário Araguatins, situado naquela cidade do norte goiano ( hoje Tocantins).
Foi uma experiência incrível, dado às diferenças que encontrei por lá. Cidade
pequena e isolada, assentada sobre os barrancos altos do rio Araguaia, a região
ainda vivia sobre os efeitos da Guerrilha do Araguaia, movimento que acabou por
causar muitos transtornos e dissabores à população da região em que os membros
do PCdoB escolheram para lançar suas bases. Povo desconfiado, inquisidor,
dizia-se que noventa por cento deles era originário de algum estado nordestino.
E entre esses, alguns tinham ido parar ali para fugir de alguma pendência com a
justiça do seu estado natal. Vem daí, talvez, o fato de não gostarem de
estranhos transitando pela sua cidade.
Para desgosto de alguns, e
felicidades de tantos outros, o INCRA se estabeleceu na região trazendo um
contingente com mais de cem pessoas, a maioria jovens que ocupavam o seu
primeiro emprego. Imaginem a algazarra que fizeram na cidade. Muitas repúblicas
foram formadas pelos funcionários solteiros (a maioria deles), e logo os
barzinhos que viviam às moscas, passaram a contar com um número grande de
fregueses habituais. Acabou a calma da pequena comuna que viveu isolada do
restante do mundo por mais de um século. Diante disto, era comum ouvir a frase
“tu é doido ou trabalha no INCRA?”.
Quando cheguei à região, o
projeto já havia sido instalado há mais de um ano. Ocupava um velho e imponente
casarão situado bem na beira do rio. Gostei da energia que emergia daquele
lugar logo de cara. As pessoas pareciam está no seu momento mais feliz da vida,
e a alegria se irradiava pelo longo corredor que ia de uma ponta a outra do
prédio. Essa alegria era multiplicada quando a sexta-feira chega e, após o
expediente, a maioria dos funcionários se apropriava das mesas do Pigale, um
barzinho com a proposta de ser uma boate, situado no outro lado da praça.
Estava apenas começando o final de semana de muita bebida e brincadeiras.
Alguns extrapolavam mesmo. Era moda soltar foguetes durante todo o dia, como se
comemorassem a vida. O delegado da cidade teve que chamar os mais afoitos à
razão para acertar um pacto de silêncio.
Enquanto não encontrava espaço em
uma das várias repúblicas formadas, fiquei residindo em um hotel próximo ao
trabalho: Mogno Hotel. Tratava-se de um edifício todo de madeira de lei (mogno,
como evidencia o seu próprio nome), dois pisos, construído também sobre o alto
barranco do rio, defronte a algumas mangueiras seculares que embelezavam uma
calçada que beirava o Araguaia. Era um local muito bonito e aconchegante, e o
seu proprietário um polonês que dizia ser primo legítimo do papa João Paulo II.
Rigoroso com as normas que estabeleceu, o proprietário transformou o seu
estabelecimento em local tranquilo e respeitável.
Em uma manhã de sábado, estava eu
sentado na frente do hotel e tentava espantar uma exagerada calma que havia me
trazido uma melancolia profunda. Para tanto, fiquei observando alguns garotos
subirem nos altos galhos das mangueiras e se atirarem nas águas, de uma altura
de mais de cinco metros. O Araguaia, para quem não conhece, é um dos mais belos
rios deste país abençoado pela fartura das suas águas. Largo, corrente
aparentemente calma, possui naquele ponto uma profundidade muito grande. Ao
observar a atividade daqueles garotos, comecei a me preocupar com a segurança
deles. Meninos muito pequenos seguiam o exemplo dos maiores e também se
atiravam lá das alturas naquelas águas, despreocupadamente.
Estava assim, quando se aproximou
de mim o polonês, homem alto e enérgico, que ao me ver assim tão interessado
com o acontecia do outro lado da estreita rua, falou que aqueles meninos
pareciam não ter pai nem mãe. Concluiu dizendo que quase todos os meses morria
alguém afogado naquele rio, mais os genitores daqueles garotos pareciam não se
importar com isso e largavam os filhos sozinhos naquela beira de rio.
Curioso, perguntei se o rio era
perigoso mesmo. Ele me respondeu que aquela calma aparente do Araguaia já havia
enganado muita gente. Que uma vez dentro dele era que se via que a sua corrente
era vigorosa e traiçoeira. Aí então me contou uma história surpreendente, quase
inacreditável. Havia criado seus filhos, quando pequenos, quase o tempo todo
dentro de uma gaiola. E que, por esse motivo, passou por alguns problemas com a
promotoria local. A população ficara horrorizada com o que ele fazia para
proteger a família, e o denunciou à promotoria de justiça. E discorreu mais
sobre o assunto:
Preocupado com a segurança dos
filhos, uma vez que vivia o dia inteiro fora, enquanto a mulher tinha que
cuidar da casa, construiu uma enorme gaiola de madeira, medindo três metros de
largura e outro tanto de comprimento, que era içada através de uma roldana,
depois de colocadas as crianças dentro. Pareciam pássaros presos em uma gaiola
a um metro e meio do chão. Dentro da gaiola, deixava alguns brinquedos para
eles se divertirem enquanto o tempo passava. E logo o povo da cidade passou a
dizer que ele criava os filhos como se fossem pássaros. E depois de algum tempo
a história chegou aos ouvidos do promotor de justiça que o convocou para dar
explicações sobre o fato.
O polonês contava isso com paixão
ainda, passados já muitos anos do ocorrido. Não me contive e perguntei a ele
como se defendeu frente à autoridade judiciária. “Disse para ele que o método
que eu empregava na criação dos meus filhos podia até parecer esquisito, mas
estava mantendo todos vivos. E enquanto isso, todos os dias quase, algum menino
se afogava no rio”.
Disse-me, por fim, que o promotor
não aceitara as suas justificativas e ordenara que ele não prendesse mais os
meninos na gaiola. E foi então que ele pensou em construir o hotel e mudou o
tipo de atividade que ele desempenhava, de modo a ficar mais próximo dos
filhos. Foi assim que surgiu o hotel Mogno.
Fiquei imaginando a inacreditável
cena descrita por ele: três crianças presas em uma grande gaiola suspensa para
impedir que se afogassem no rio. Efetivamente, dava para escandalizar. Mas,
realmente, não dava para dizer que a saída encontrada por ele – a de proteger
as suas crianças do rio - não possuía uma eficiência inquestionável.
Como afirmei lá atrás, o lado de
Goiás possuía um barranco alto, enquanto que o outro lado, o paraense, era mais
baixo. E quando o rio começava a encher, levava meses para atingir a cota
máxima, uma vez que as águas se espraiavam no lado do Pará e deixavam o rio com
uma largura de muitos quilômetros. E para fugir da enchente, muitos animais
ferozes atravessava o rio à procura do lado mais alto. Em um ano de grande
cheia, presenciei quando uma gigantesca onça pintada tentava alcançar o lado
goiano do rio e foi caçada por algumas pessoas em um barco e abatida a tiros.
Imaginei o problema que aquela onça criaria para os habitantes da cidade se
tivesse conseguido chegar até a margem. Do mesmo modo, vi quando abateram um
jacaré tão grande como eu nunca havia visto antes. Pareceu-me tão velho, que as
costas do lagartão continha um limo esverdeado. E só conseguiram abatê-lo
quando atiraram no olho do bicho, pois as balas não conseguiam perfurar o seu
couro.
Quando as águas, enfim, superaram
a barreira do lado goiano e entraram nas casas mais próximas ao rio, tivemos
que evacuar o prédio da instituição, aonde a água chegou a mais de metro de
altura. E quando baixaram, depois de
muitos dias, encontramos dentro do velho casarão uma grande quantidade de
cobras, aranhas e outros bichos peçonhentos. Ficamos ilhados na cidade também.
Por muitos e muitos dias não pudemos sair para qualquer outra cidade vizinha. E
o desabastecimento fez encarecer muito os poucos produtos que por lá chegavam.
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