segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Confissões do Anjo Andarilho




Falar de mim –– é arrepiante, porém não mais me perturba...

Os dias passaram tão jovens, os meses se aproximavam de si, os anos se despiram em suas galerias abraçados a enormes luas sonâmbulas... e eu nessa puerícia vivi como um louco, um santo, um profano, talvez por odiar tantas pressões convencionais. Mas nunca fui cheio de mistérios, apenas fui um andarilho solitário, sofrendo em cada lugar, a cada hora, um amor perdido... cruel despedida...

em cada instante, minha incompreensão escandalosa e provocativa, escrevia em manuscritos arcaicos os dias nos dias seguintes. Após as tormentas brincar de amar...

Minha insensatez era pura alegria, um jeito manso de viver e de ver o mundo num facho de luz. Juntava-me aos amigos de sangue e de luz para gozar de uma embriaguez gloriosa e fugir da saudade pelos meus prazeres ilícitos. Raízes e sangue já não existem, apenas o meu profético apelo à abstração.

Enfim cerro a porta de uma vida que foi tão breve, que tanto me esforcei para entender sua instabilidade e análise da minha própria vida. Fui um “eu” fugitivo de mundos e de mim, fugia para me libertar dos mistérios de um tempo que tanto se alonga e de vidas que eram tão sucintas. Aqui estou regressado ao lugar da minha essência.

O excesso das minhas emoções me violenta na fragilidade dos meus enigmas. Desço sobre mim um novo olhar quando vejo o meu corpo imóvel e calado para sempre estendido na tumba. Sinto-me fatigado, assustado e ao mesmo tempo feliz... e quando o gênio da noite adormece eu posso vislumbrar a chuva descendo com o ritmo da ventania, olhar as estrelas no céu fugindo perfumadas de saudade e eu a socorrer a tristeza da noite quase acabada...

É bom regressar e estar só para ouvir o rumor das minhas palavras cheias de ecos, ainda soltas escorrendo pelas ruas, becos e avenidas desertas, vagando sobre estradas de trilhos cegos, navegando em águas salgadas e desconhecidas, amando o entardecer quando a noite se avizinha.

Não mais existe esse “meu” corpo. Ele perdeu sua memória. Agora existe uma grande distância entre nós. Matéria e Espírito. Meu corpo pesado abrigava um espírito tão leve, avulso e frágil, dotado de uma necessidade oprimida. Não encontro lugar para deitar minha alma. Ela vive ainda uma vida dupla.

Meu coração, ainda sinto o seu pulsar... é uma metamorfose de um poema épico de cigano de terras distantes.

A morte prendeu meu corpo, jamais meus andarilhos e profanos pensamentos,
–– águas viageiras de mim.

Gilda Freitas.  

OBS.: O texto acima me foi enviado pelo Carlos Rubem, para que o publicasse no blog, com o seguinte registro, de sua lavra:

“A Gilda Freitas, oeirense nascida em São João do Piauí, ao aposentar-se como bancária (BNB), desembestou-se a escrever. Eclodiu toda sua força literária. Revelou sua espiritualidade. Mantém intensa atividade acadêmica em Fortaleza. Já lançou livros...

Tive a honra de fazer a ponte de amizade entre ela e o Joca Oeiras - o Anjo Andarilho, falecido há um ano. Ambos se corresponderam virtualmente.

Agora, ela nos brinda com as “Confissões do Anjo Andarilho”, em memória do nosso comum amigo, como se vê abaixo. Uma página de arrepiar!...”

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