UM NOVO FICCIONISTA PIAUIENSE:
JOSÉ DE RIBAMAR NUNES
Cunha e Silva Filho
           Professor formado em Letras (UFPI),
com especialização  em Teoria do Texto
e  em 
Literatura de Língua Portuguesa, além de 
ser advogado e ex-funcionário do Banco do Brasil,  José 
de Ribamar Nunes,  já maduro,   lança um 
livro   de ficção, uma novela   para ser mais específico, cujo  titulo 
logo   espicaça a curiosidade do
leitor  pelo seu nome pitoresco  e sugestivo, caracterizando,   de início, 
uma  narrativa  definidora 
de um  determinado  espaço social e cultural  de Teresina, capital  Estado 
do Piauí: Morro do Querosene, Prefácio de Celso Barros Coelho (Teresina:
Academia Piauiense de Letras, 2019. 206 p. Coleção Século XXI, nº 24. Capa e
Revisão de Adriano Lobão Aragão.
     Por coincidência,    conheço 
o autor  e sei  que é uma pessoa  muito  
dedicada e  envolvida  com  a
vida literária e cultural   piauiense e,
por  essas razões, seria de se esperar
que,  a qualquer  tempo,  
viesse  a  publicar  
uma obra  de estreia  que, 
por suas  qualidades   de texto fluente  limpo, correto,  revela um 
novo  ficcionista    com domínio 
da história a ser contada, 
com   perfeita harmonia  no desenvolvimento  de seus capítulos,  de resto,  
muito bem  divididos e ainda mais
agradáveis à leitura  por serem   curtos na maioria, o mais extenso  não ultrapassando  umas três páginas.
      Ora, uma estratégia  dessas 
adotada pelo autor não é fácil de  
contentar o leitor   a menos
que  o capítulo  concentre em si  bem relatadas 
células narrativas,   nos dando a
sensação  da unidade  de cada   
peripécia e nos impelindo  a ler
com prazer os  relatos seguintes do
livro.
  
Nesse diapasão  de expor  seus vivíssimos, dinâmicos    e saborosos  
relatos, perfazendo ao todo 
cinquenta e um capítulos,  o
narrador nos instiga a conhecer  a vida
de bairros pobres teresinenses, alguns meus 
velhos conhecidos do  tempo de
menino  em Teresina,   como 
o Porenquanto a Vermelha, a Piçarra quando partia  com amiguinhos da minha infância e  começo da adolescência em direção  aos banhos do rio Poti,  ou 
quando passava  pelos  trilhos 
da velha Estação  Ferroviária, ou
pelo  velhusco  25 BC.        
     O enredo do Morro do Querosene  se desenvolve 
em torno  da vida de aperturas  financeiras da família  de dona Joana que, primeiro, morava  no bairro 
pobre do Porenquanto,  depois,
sendo obrigada,   por não poder pagar o
aluguel,  a fazer mudança para um
novo   bairro,  a Piçarra.
     Dona  
Joana, mãe dedicada  aos filhos,
empregada  doméstica,   ainda 
se virava em outras atividades   a
fim  de prover  o sustento da família  e ainda mais porque  o marido 
a deixara   sozinha à procura    de trabalho em outra terra.   Dos filhos pequenos, em número de
quatro,  um deles, o João Luís, vai  desempenhar papel  decisivo na 
história,  peça humana de menino a
fazer girar a história  e a mostrar o
quanto   a memória infantil-juvenil   é capaz de guardar  o bom 
e o ruim  da existência humana e,
se possível,  tentar  superar 
as vicissitudes.   O movimento dos
capítulos é acelerado, não havendo nem tempo 
para   o leitor  se sentir 
entediado, já que  a
narrativa  o empurra para a frente  e satisfaz 
o leitor  curioso  de conhecer novos e  palpitantes episódios  da novela.   
   
    Pode-se afirmar que  o personagem João Luís,  tão bem elaborado pelo autor, está fadado a
ser uma  criação literária   que seguramente    comporá 
a galeria de figuras 
infanto-juvenis  da história da
ficção piauiense (como aconteceu com Pedrinho, 
em Ternura (1993),  romance de
Francisco Miguel de  Moura). Sem tal
grandeza de  personagem, a narrativa  não teria o bom resultado  que, a meu ver, teve em termos  de composição   ficcional. João Luís é  um personagem 
que  salta do texto à vida  pelo convencimento de atributos  humanos  
que o autor nele infunde com naturalidade,  sem artifícios  nem jogos de marionetes. Outros  na narrativa até podem  ser 
rotulados  como apenas  figurações 
sem  suporte   ficcional.
     A ficção de autores piauienses tem  tido razoável fortuna  crítica 
em  romances  ou novelas  
vivenciados  na cidade de
Teresina. De autores do Piauí, posso bem lembrar aqui, no passado mais remoto
ou menos remoto, ou mesmo atual, O Manicaca (1909), de Abdias Neve
(1876-1928),  narrativa  ambientada na Teresina dos derradeiros anos
do século XIX, ou menos remoto,  parte de
Ulisses entre o amor e a morte (Teresina, Meridiano,1986),  de 
O.G. Rego de Carvalho, Rio Subterrâneo (Teresina: Meridiano, 8ª
edição,1888 ),  parte em Teresina, também
de O. G. Rego de Carvalho, ou mais atual, Entardecer (2007),  de José Ribamar Garcia,  Meia-vida (1999),  enfocando 
principalmente a área do troca-troca de Teresina, de Oton Lustosa, o
excelente romance Vozes da  Ribanceira,
no qual o cenário principal é o Poti (2003), também de  Oton 
Lustosa,   Sabor de vingança
(2015),  centrado no espaço da crescente  violência urbana  teresinense de Milton Borges.
    O narrador do  Morro do Querosene, em terceira pessoa,    apresenta um traço  singular: 
dando voz ao  pensamento  da 
perspectiva   de um personagem,  emprega, aqui e ali,  o discurso indireto livre,  o que 
reforça uma forma  multifocal
de  narrativa.  Mesmo quando 
falando  de João Luís,   a voz do narrador  se orienta 
pela perspectiva  ou  ângulo de visão  do pequeno  
João Luís. Sendo assim, é   
através sobretudo das aventuras infanto-juvenis desse personagem
encantador   que a novela  propicia 
uma visão por dentro  e por fora  da 
realidade social e cultural 
daquele  entorno   da Piçarra chamado Morro do Querosene –
lugar tão  badalado nas suas    peculiaridades   de ser 
o espaço da  prostituição e ao
mesmo tempo  de residências  populares 
das ruas  circunvizinhas.
      Duas observações  farei ao autor a seguir. Uma, de ordem de
construção  textual do primeiro
parágrafo   da narrativa, na qual
separaria com um  ponto final a frase
“Era um dia de domingo” e começaria com 
maiúscula  a frase seguinte: “Pela
manhã, de um mês de junho amenizava o calor 
abrasador de Teresina que só atingiria 
o ponto mais alto dali a dois ou três meses.”  A segunda observação  seria   
de ordem técnico-narrativa e  se
refere ao próprio narrador que se trai e se transforma, por um segundo de tempo
de leitura,  em autor, através do uso de
um dêitico, na expressão adverbial de lugar “aqui no Piauí” (p. 170). Desse
modo,  ele sai da condição de  narrador (elemento interno do enunciado ) e
passa à condição de autor (elemento 
externo à narrativa )  no fluxo
narrativo  em terceira pessoa. Bastaria
para contornar   isso,  eliminar 
o dêitico e a contração  “no.”
    O Morro seria um espécie de  centro nevrálgico da narrativa  -  uma
espécie de personagem   inanimado   dos acontecimentos,   das alegrias, das tristezas, das
tragédias,  dores, das desventuras,
dos  incidentes  hilariantes   
daquela  população  pobre 
que ali residia. Para trás, ficara 
definitivamente   o bairro
Porenquanto, ao qual, malgrado a pobreza, 
já estavam  habituados.
Deixaram   um travo   de saudades de amizades e  brincadeiras 
infantis.
     Por ouro lado,  o novo bairro da Piçarra começava a despertar
no  pequeno João, porque  oferecia mais espaço aberto,  a antevisão 
do principal  divertimento  da  sua
fase da infância e adolescência   - o
futebol  - símbolo de outros meninos  de várias gerações  de brasileirinhos   apaixonados por esse esporte, esse  “grande catalizador” assim definido pelo pensador
e crítico literário  Tristão de Athayde (
Alceu Amoroso Lima, 1893-1983). 
       A novela é igualmente uma  história 
que, se não fosse exemplo de 
honestidade   e de dignidade  de alguns de seus personagens
despossuídos,  caso houvesse
descambado  para  uma dimensão de personagens  desprovidas 
de dignidade,  bem poderia ser um  prato cheio para uma novela  neopicaresca  
tendo como  protagonista  as aventuras 
do menino  João Luís.
Entretanto,  o autor  perfilou 
um personagem   da envergadura
moral   desse menino  que, pelo comportamento   reto, 
bem poderia   se enquadrar  numa novela de formação (Bildungsroman) se a
continuidade do tempo  dos  episódios atingisse a maturidade  do herói. 
      A novela 
faz um recorte  temporal  que, grosso modo,  a situaria entre  os meados dos anos 1950 à primeira  metade dos anos 1960, numa Teresina ainda
não  tomada  pelos anos 
de modernização  mais  intensa 
e de formação de novos bairros 
com vida urbana    frenética    acossada pela violência. É nessa  Teresina 
que  a vida de João Luís se vai
consolidando  pelas diversas
experiências  e mudanças  físicas, psicológicas, sociais e      culturais, em especial a passagem
delicada de criança a rapazinho,  a
descoberta do sexo, o onanismo,   as
motivações,  ainda que  pueris, 
amorosas,   o aprendizado do  sexo com marafonas e outras experiências  com 
vícios  incentivados por más
companhias. 
       Da mesma forma, a visão social cedo
despertada   pela frequência do
protagonista na fase de crescimento  a
outros ambientes sociais  mais   elevados 
vai-se alargando  na consciência
do João Luís, mas sem que a narrativa 
entre no limiar da problematização 
das relações de classe.
      Não há esse intenção  pelo menos abertamente declarada. No
entanto,    o que  a narrativa 
exibir são realidades estratificadas, 
a dos despossuídos, dos remediados, 
dos ricos. Duas saídas se vislumbram 
para a mobilidade social:  a) por
inciativa própria  e grande
determinação  que possa  elevar  
alguém a uma posição socialmente melhor. Poderia ser aqui  o caso de João Luís;  b) pela via de um casamento melhor (Maria
Antônia, irmã de João Luís)  para um
filha de pais  humildes. 
      A importância da obra Morro do Querosene
se reveste nas descrições  e
narrações   precisas  e documentais 
de uma ficção de costumes   de um
bairro  periférico   de Teresina, de  situações 
da realidade  vivida e
presenciada  pela população  que ali 
vivia  à sombra  protetora ou não do Morro. O quotidiano desse
enclave social  radiografa, com mão
de  mestre,   o pequeno mundo de seus habitantes  sujeito 
às intempéries do dinamismo  
social avassalador. . A família da 
laboriosa  e honesta  dona Joana é apenas  uma  
amostra do que seja  um fiel  retrato social  de uma dada fase passada   da vida teresinense.
    Julgo que, com essa obra inicial,   José 
de Ribamar Nunes   se insere  de fato e de direito,   sem alardes nem   apadrinhamentos,   na história da ficção  atual do Piauí.