quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A confissão do diabo e a água benta

Fonte: Google


A confissão do diabo e a água benta

Pádua Marques
Jornalista, romancista e cronista

Naquele sábado pela manhã do início de setembro o escravo Elias desceu as escadas e deixou a casa de morada de Simplício Dias da Silva pra ir até a igreja de Nossa Senhora da Graça, ali perto, buscar o padre Horácio Pereira de Menezes, que havia acabado de chegar de uma missão na Barra do Longá. A mando de dona Isabel Tomásia o padre foi chamado pra ouvir em confissão o coronel. Já quase que sem voz, manifestou desejo de ser perdoado pelos seus pecados pela Santa Igreja. Não queria morrer e depois arder no fogo do inferno pelo que praticou em cima da terra enquanto pode e teve poder e dinheiro.

Dentro de casa e nas ruas próximas a notícia era de que o coronel Simplício Dias da Silva ia de mal a pior e a família já não tinha mais grandes esperanças de sua recuperação. No início da madrugada, mal iniciado o cantar dos galos pra os lados dos Tucuns, Elias havia chegado do Buraco dos Guaribas, onde trouxe a benzedeira Joana dos Anjos pra ver de perto como estava o padrinho e benfeitor. Foi chegar e entrando de porta adentro mandou que fizessem um chá de mastruz pra ser bebido amargo e de um gole só. Era pra aliviar a tosse e botar pra fora o catarro preso no peito.

Dali por diante a cozinha ficou sob suas ordens. Negra velha de mais de sessenta anos, criada nas terras de Simplício Dias pra os lados do Testa Branca, Joana era curandeira e parteira de ganho afamada. Pegou Carolina, a filha do coronel, quando nasceu, hoje ali já beirando trinta anos. Era conhecida e respeitada até no Maranhão e no Ceará. Pelos serviços de parteira e curandeira, ela e a família ganharam um pedaço de terras pra os lados do Sossego e Volta da Pimenta.

Mas enquanto o padre não chegava iam chegando as senhoras pra rezarem as excelências. Depois de tomado o banho da manhã e o chá de mastruz receitado por Joana, Simplício Dias da Silva, num gesto da mão levando na direção da cabeça, deu a entender que queria se confessar. Joana foi tomando a frente de tudo. Organizou a entrada das mulheres, trouxe um jarro de água fresca e abriu as janelas do quarto, as que davam pra rua Grande na direção de onde nascia o sol. O coronel estava deitado numa rede grande e embrulhado até a altura do pescoço.

Pelo sinal da Santa Cruz, livre nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos. Uma excelência que Nossa Senhora deu a Nosso Senhor! Esta excelência é de grande valor! Pai Nosso que estais no céu, santificado seja Vosso nome. Venha a nós o Vosso reino. Seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu! Duas excelências que Nossa Senhora deu a Nosso Senhor! Esta excelência é de grande valor. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo!  A reza foi ficando forte dentro do quarto até que Elias veio avisar que o padre Horácio estava chegando.

Vieram as senhoras soberbas até a porta do quarto pra beijar a mão do padre, um tipo um tanto roliço, barba mal feita e quase careca. Pouco deu atenção pra aquele rapapé todo. Veio com os paramentos de dar extrema unção. As mulheres pararam de rezar e a um sinal de dona Isabel Tomásia, foram deixando o quarto. Padre Horácio Pereira de Menezes agora iria ouvir os pecados do coronel Simplício Dias ou pelo menos aqueles que ele teria ainda condições e coragem de contar. A voz do doente era muito baixa e pra ouvir o padre tinha que se curvar além do necessário. Parava e continuava. Contava passagens antigas.

As ambições, o luxo que fez com que gastasse além das necessidades, as intrigas com vizinhos, os crimes que acobertou, as vinganças por inveja de não ter nobreza no nome, os castigos a que submeteu seus escravos e agregados, o dinheiro que perdeu na política, as enrascadas em que se meteu indo pela cabeça de gente de dentro de sua casa, como o juiz João Cândido de Deus e Silva e a traição ao imperador dom Pedro I. Tudo isso ele ia contando com muita dificuldade. Chorava, dizia que tinha medo de morrer e descer aos infernos, feito tantos negros cativos que humilhou pela força.

Na cozinha Joana dos Anjos mandava e desmandava. As mulheres das rezas haviam ido embora e aos poucos toda a vila da Parnaíba haveria de estar sabendo que o coronel Simplício Dias já estava com a vela na mão. Elias ficou por perto, entre a porta e o imenso corredor que dava pra um terraço com janelas de treliça. Estava sempre pronto pra qualquer situação. Simplício poderia ter um ataque de tosse, se obrar todo, se mijar, qualquer coisa que causasse mais sofrimento. Dona Isabel Tomásia andava pelo andar de baixo arrumando umas peças de roupas.

O sol já ia alto no céu da vila da Parnaíba, o movimento vindo do porto Salgado tomava o de sempre, quando o padre Horácio Pereira de Menezes depois de rezar de olhos fechados e segurar a mão ressequida de Simplício Dias da Silva, tirou de uma bolsa de couro raspado e gasto, o aspersório de prata e pronunciando alguma coisa em latim lhe deu a absolvição. A água benta quando bateu no rosto caveiroso do coronel, formou algumas bolhas e que depois foram correr pelas rugas dos cantos da boca até chegarem ao pescoço.

Elias estava de olhos fechados acompanhando tudo e não pode conter o choro. Era talvez a primeira vez em tantos anos que soluçava em voz alta e na frente de seu senhor, embora ele já não tivesse mais condições de ver aquela compaixão. Depois de todo aquele momento o padre ainda permaneceu silencioso por um tempo sentado ao lado de Simplício Dias. Este, agora de olhos fechados, dava sinais de que não queria mais ser incomodado.

Mesmo às portas da morte e tendo sido perdoado um rasgo de tempo atrás por Horácio Pereira de Menezes, Simplício Dias da Silva ainda passava mesmo de olhos fechados uma soberba. Elias veio de forma bem devagar e ajudou o padre a se levantar da cadeira.  Estava encerrada a confissão dos pecados do coronel e dono da vila da Parnaíba a um representante de Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Agora era fechar os olhos, esperar a morte e o perdão de Deus.    

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