sexta-feira, 4 de outubro de 2019

CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA BELA ESCULTURA




CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA BELA ESCULTURA

Elmar Carvalho

Vítima de brutal “engarrafamento”, na sexta-feira passada, fiquei preso no trânsito, exatamente no balão do cruzamento das avenidas Petrônio Portella e Raul Lopes. Em lugar de me debater e espancar o volante, ou proferir imprecações contra tudo e contra todos, como muitos fazem, optei por ficar observando, detidamente, a escultura instalada na rótula. Não tenho certeza, mas acho que ela foi produzida pelo grande artista Carlos Martins, falecido em 2013, autor de outras magníficas obras.

É feita de arame, peças de ferro e vergalhões metálicos. É bela e imponente em sua singeleza. É como se fora uma catilinária ou verrina metálica contra os conquistadores e os preadores e matadores de índios. O vencedor montado em grande e robusto corcel, em pose típica das estátuas equestres, puxa com uma corda um prisioneiro, naturalmente derrotado na refrega, e que será escravizado. O enorme corcel passa sobre corpos tombados. Seu chapéu produz grande efeito plástico, pois parece o próprio Sol com os seus raios incandescentes.

No simbolismo do monumento, o cavaleiro, na concepção dos nativos, poderia ser a própria encarnação do deus-sol, pois possuía o estrondo e o raio de armas de fogo. Conduz na destra enorme lança, que faz lembrar os heróis das pelejas medievais e os cavaleiros andantes da idade média. Mas apenas aparentemente, porque na verdade ele simboliza os chamados heróis da conquista, como os bandeirantes paulistas e os homens da Casa da Torre da Bahia.

Entretanto, hoje se sabe que muito do morticínio das chamadas conquistas se deve a doenças transmitidas aos nativos americanos pelos europeus, inclusive e talvez principalmente pelos espanhóis. Contudo, essa pecha de violência não é um “privilégio” e exclusividade de portugueses e espanhóis, mas também de ingleses, franceses, holandeses e outros povos, pois onde quer que tenha havido invasões, conquistas, houve entrechoque de civilizações, com a consequente reação dos invadidos, dos conquistados.

Hoje, como todo mundo sabe, o Brasil é essa fecunda miscigenação, com essa diversidade e riqueza cultural, e esse caldeamento de raças, que possibilitou o surgimento da beleza morena, que nos encanta e encanta o mundo. Não houvera acontecido o que aconteceu, hoje o Brasil seria, talvez, ainda um paraíso selvagem, intocado, com os indígenas caçando, pescando e colhendo suas frutas nativas. Foi pior? Foi melhor assim?

Deixo a resposta aos latifundiários da verdade, aos doutos, aos exegetas, aos proprietários das certezas absolutas. Aos que não aceitam o que somos ou o que nos tornamos, resta-lhes o consolo de que podem se despir, envergar uma tanga, armar-se de arco e flecha e tentar ser admitidos em alguma tribo do Xingu ou do Amazonas. No entanto, devo lhes recordar que o maior cantor indianista do Brasil, o grande bardo Gonçalves Dias, tinha orgulho de carregar em suas veias a mistura do sangue de três raças: a negra, a indígena e a branca.

Mas a bela e significativa estátua pode ser um libelo de fogo contra todos as formas de dominação, como o patrão que espolia o empregado, o marido que tiraniza a mulher, o pai que sevicia o filho, o governante que tripudia sobre o povo que o elegeu... Tenho a esperança de que algum dia todos seremos irmãos, sem dominadores e dominados, sem conquistadores e conquistados.

Ainda é possível sonhar e nutrir esperanças. No momento em que eu contemplava a escultura, um forte vendaval a fez oscilar, e tive a nítida impressão de que o cavalo, o cavaleiro e o prisioneiro ganhavam a vibração da vida. A vida que deve perpassar toda verdadeira obra de arte.   

22 de março de 2010

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