segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Sr. Tempo



Sr. Tempo

Wilton Gutemberg da Cruz Pires Jr.

Ou seria ‘‘contei’’, dado que esse texto já foi escrito no momento em que você o lê? Ou ‘‘contarei’’, dado que você ainda não o leu ou tampouco eu, no momento em que escrevo, cheguei a terminá-lo? Ou ‘‘contaria’’, dado que o futuro é incerto e pode ser que eu sequer chegue a concluir essas palavras? Acuse-me de fazer complicações desnecessárias, mas não como o honesto acusa a desonestidade. Haveria nisso uma hipocrisia inconsciente, porque em verdade você sofre da mesma ansiedade em relação ao que foi, ao que é e ao que pensa que será. É sobre a desnecessidade desse comportamento que escrevo (escrevi; escreverei; escreveria).

O Sr. Tempo é um trabalhador constante, daqueles que nunca perdem o foco. Ao relógio, que tenta acompanhá-lo, olha com desdém. E por todo esse foco não dialoga conosco, ignora nossos pedidos e possui franca indiferença aos nossos lamentos. Nunca poderemos acusá-lo, entretanto, de nos deixar sozinhos. Ao que depender dele, nunca conheceremos a solidão. Mas eu entendo, você bem que gostaria de ter alguns momentos de privacidade. Entretanto, não adianta implorar; cá entre nós, acredito que Deus fez do Sr. Tempo surdo, impassível ao choro mais escandaloso.

A mitologia grega ensinou-nos duas formas de lidar com esse companheiro inafastável. Por um lado, os gregos antigos conceberam Chronos: o titã monstruoso que engole os deuses no café da manhã. Destrutivo, faminto e que a tudo consome. Esta é a representação do tempo que envelhece, desgasta e a tudo torna pó. Por outro lado, os gregos antigos conceberam Kairós: um deus jovem e gracioso, sempre nu. Rápido, estava em fuga constante dos outros deuses, que tentavam alcançá-lo como em um pega-pega e que dificilmente era capturado. Esta é a representação do tempo que é instante oportuno, um palco na existência em que performamos a história. É o momento presente, em que devemos agarrar o agora e fazê-lo nosso.

Das duas tentativas de ilustrar o Sr. Tempo, prefiro a segunda. O tempo como Kairós evidencia que o tempo é, mas nunca foi nem tampouco será. Veja, o passado não existe. O que se passou deixou de existir. Já o futuro, esse que ainda não é concreto, ninguém entre os homens pode garantir que existirá. Portanto, passado e futuro são abstrações, de modo que trocar o presente por lembranças e expectativas não costuma ser um bom negócio.

Infelizmente, a maioria de nós permite-se seduzir pelo incômodo do que foi, reinterpretando o passado à luz dos nossos sentimentos, encantada por nossos próprios dramas. Quando não, roemos as unhas pelo que achamos que virá. Em ambos os casos, surgem conjecturas feitas de imaginação e impressões de realidade. Ocorre que, enquanto isso, o Sr. Tempo continua a trabalhar, fazendo passar instante após instante, precisamente aquele que poderia ser usado para remediar erros do passado e condicionar o futuro desejado. O instante que poderia ser o remédio para nossas preocupações.

Certamente, fazer do presente uma oportunidade não é fácil. Ora, parte importante do mito é a dificuldade de agarrar Kairós, a mais fugidia das divindades. Estar ciente do agora é profundo exercício do domínio de si mesmo, talvez impossível de ser contínuo. Resta tentar.

Mas apresse-se, pois as oportunidades para isso são finitas. Por menos simpático que seja esse aspecto, preciso reconhecer que o Sr. Tempo também é Chronos. Significa que o tempo que escorre entre nossos dedos é a nossa existência carnal, que inevitavelmente terminará. Cada instante é um passo para mais perto da morte. E preparando sua chegada, o vigor do corpo se esvai, rugas aparecem e a mente enfraquece. Assim, tudo que os mais vaidosos amam desaparece, deixando-os viúvos entristecidos, ao ponto de que alguns até desejarão que a morte se adiante. Há ainda o fato de que não nos é permitido saber exatamente quantos desses instantes ainda nos restam, obrigando-nos a gastá-los sem saber se resta algo na conta.

Mas, pensando bem, não dá esse aspecto ainda mais substância ao se encarar o tempo como valiosa oportunidade? A existência de um termo final para nossas vidas enche o ofício do Sr. Tempo, abstrato, de uma escassez própria daquilo que é concreto. Os instantes, que um dia pararão de chegar, tornam-se cada um uma pepita de ouro, que ao passar por nossas mãos poderá escorrer em vão entre nossos dedos ou, para os mais atentos, ser investida em algo que a dê algum significado mais elevado. Eis o peso sobre nossas escolhas acerca do tempo.

Prometi que combateria preocupações desnecessárias, mas receio que posso ter, ao invés disso, aumentado a neurose em alguns leitores. Mas a prudência, ao invés de usar desse raciocínio como mais um motivo para lamentar-se e desperdiçar o momento, o fará lição para se deliciar com o presente, reconhecendo seu caráter determinante tanto para o passado quanto para o futuro, enxergando a oportunidade renovada a cada instante. Porque o Sr. Tempo pode não ser dos mais simpáticos, mas é qual um minerador generoso, presenteando-nos com pepitas de ouro extraídas do desconhecido. Cabe a você ser um ourives, forjando delas as joias mais preciosas.  

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