sexta-feira, 29 de maio de 2020

Pregado de panela




Pregado de panela

Pádua Marques
Romancista, cronista e contista

Agora era descer de vez daquela canoa e esquecer o que havia ficado pra trás. Estava na Parnaíba, terra onde ouviu dizer que corria dinheiro, tinha movimento e mais gente, onde podia estudar e seguir carreira num emprego bom sem ter que bater cabeça o resto da vida. E estava trazendo uma carta de recomendação de Benedito Cordeiro, amigo e compadre de seu pai, pra ser entregue a seu Zeca Correia, dono do Moraes, dono de carro de passeio e até de navio.

Se Deus quisesse havera de se arranjar num emprego naquela fábrica de sabão e de óleos. Se não desse no Moraes, que pelo menos fosse nalgum armazém na rua Grande ou nas próximas, aquelas ruas onde tinha mais comércio. Mas se também não desse, que fosse alguma colocação mais embaixo, porque depois e com muito trabalho, cuidado e coragem, iria chegar mais perto da porta de um escritório e de lá pra dentro era coisa de um pulo. Martinho Cardoso era de pouca leitura, mas era esperto.

Do porto Salgado com todo aquele movimento de início de tarde, Martinho foi direto pra uma pensão perto da igreja de Nossa Senhora das Graças e de lá se avistava também a igreja do Rosário dos Pretos, vizinha do Hotel Parnaíba, algumas casas de comércio, outras pensões e o Banco do Brasil. A pensão Nossa Senhora dos Remédios, de um velho de Buriti dos Lopes, Chagas Caetano, era pequena, mais barata que o Hotel Carneiro. Tinha uns seis quartos, um salão maior com mesas e cadeiras pras refeições, um banco com dois potes e seis canecos, uns quadros de santos e uns tamboretes espalhados pra quem quisesse  se sentar.

Depois de ser atendido na entrada por um rapazinho de uns quinze anos, de rosto azeitado e já apontando uma nuvem de bigode, Martinho foi informado que a dormida era em rede.  E ele trouxe a sua, larga e limpa, dois lençóis, pijama, três calças, cinco camisas, um paletó, seis cuecas, toalhas de rosto e de banho, pão de sabonete, escova de dente, uma flanela e escova pra lustrar os sapatos, dois pares de meias, pente de chifre, um potinho de brilhantina e uma navalha pra fazer a barba de vez em quando.

Martinho foi ver a cozinha lá no fundo de um corredor na esperança de encontrar ainda naquela hora alguma coisa pra comer. A canoa vindo de Araioses atrasou e o desembarque no porto Salgado foi demorado. Não queria ainda meter a mão nas economias por pouca coisa, tinha que regatear comida barata.  Os quartos, àquela hora da tarde, estavam com as portas abertas devido ao calor e ele viu outras pessoas, umas falando baixo. Num dos quartos um velho estava cochilando e a filha remexia numa mala.

E na cozinha lá no fundo, com algumas gaiolas de passarinhos, encontrou apenas uma mulher, a cozinheira, quase negra, e que quando ela perguntou o nome e de onde vinha, Martinho deixou ver que tinha os dentes estragados, as unhas escuras pelo trato com o carvão e as panelas, ficava se limpando todo tempo com um pano encardido, o sovaco descuidado e no pescoço, um rosário de contas azuis e brancas. A mulher puxou conversa e ofereceu os serviços do filho. O menino da entrada da pensão, também era engraxate perto do armazém de seu Franklin Veras, indo ter no porto Salgado, se precisasse.

Com o tempo Martinho ficou sabendo que o menino, o rapazinho fumava escondido da mãe. À tarde, quando servia o jantar dos hospedados e o sol mais frio descendo por trás dos carnaubais de Ilha Grande de Santa Isabel, a cozinheira e o filho iam embora tomando o rumo da Guarita, levando o sobejo limpo de algum prato ou o que havia sobrado de um galinha ensopada, guisado de panela, sopa, um pregado de arroz, panelada de bucho de boi com abóbora. A pensão ficava nos cuidados de Belarmino, sobrinho de Seu Caetano.

Em casa aquela comida era esquentada e servida pra os outros três meninos que ficavam o dia inteiro se entretendo na vizinhança e indo, quando muito, pra beira da linha do trem ou nas redondezas procurar gravetos pra acender o fogareiro, tão logo o irmão engraxate e a mãe chegassem do serviço. O marido? Esse a cozinheira largou havia tempo! Não queria nada, um vagabundo. Agora vivia amigado com outra mulher na Coroa. Até apanhava dela. Era o que ficava sabendo pela boca dos outros de vez em quando.

Martinho depois de arranjar com a cozinheira um café e um pedaço de cuscuz de milho, veio pra porta da pensão ver aquele movimento de fim de tarde na Parnaíba. Passavam agora automóveis no rumo da Nova Parnaíba, onde moravam os abastados, os ricos comerciantes e donos de indústrias, médicos, advogados e juízes. Outros desciam no rumo da rua Grande indo dar no Macacal. Seu Zeca Correia devia decerto ter um automóvel daqueles. E era esse homem que iria lhe estender a mão, tinha certeza.

Os dias passaram e Martinho ia se dando bem de ver a Parnaíba com aquele movimento todo do porto pra todas as ruas de cima e de baixo. Foi à missa na igreja de Nossa Senhora das Graças num domingo. Ficou olhando as pessoas importantes sentadas nos bancos da frente, as mulheres com as cabeças cobertas de véus, os terços de contas lustrosas, o perfume bom das roupas delas, as filhas, meninas silenciosas e muito bonitas, limpas e que em nada haviam de se comparar à cozinheira da pensão onde ele estava hospedado.

Conheceu um rapaz, de uns vinte anos pra cima, vindo dos Morros da Mariana, botador de água na pensão Nossa Senhora dos Remédios e nas outras, até na pensão de seu Nagib, o turco mão de vaca. Rapaz dado, falador, baixo, tinha o beiço de cima cortado, era fanho e gordinho. Sebastião o nome. E numa conversa e noutra o amigo novo de Martinho disse que, bem que gostaria de ser sacristão da igreja de Nossa Senhora das Graças. Ser sacristão deveria ser bom.

Iria comer do bom e do melhor e na hora certa, tomar banho de chuveiro, comer sentado em mesa com toalha de renda, beber em copo de vidro, trabalhar pouco, talvez até andar de carro, no muito, ajudar na missa uma vez na semana, fazer algum mandado, uma compra aqui e ali, conhecer e ficar perto de gente rica e importante como seu Zeca Correia, doutor Cândido, Mirócles Veras, Raul Bacellar, José Narciso e ainda podia mexer nos livros do padre. Tinha ambição de subir na vida. Talvez até desse para seguir carreira. Tinha família pobre que passava necessidade nos Morros da Mariana. 

Um comentário:

  1. Na narrativa de Pádua Marques, a raiz de nossas histórias, vivenciadas com tamanha semelhança por nossos antepassados. Parabéns, por retratar isso tão bem!

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