sábado, 3 de outubro de 2020

ARCA DE NOÉ II

 

Fonte: Portal Costa Norte

ARCA DE NOÉ II

 

Vitor de Athayde Couto

Cronista e ensaísta

 

Percebendo que não tinha mais o que fazer ali, o mico depositou um envelope lacrado nas mãos de Ching e se despediu dos bichos, com estas palavras:

  

– Dimêrma, só me resta desejar muito axé. Como a inspiração já transpira em mim, preciso voltar. Millôr Fernandes já dizia: baiano é quem nasce na Bahia, vai embora, e depois fica dizendo que está com saudade, querendo voltar. E é o que vou fazer agora. Fui, bandamel. Avisalá!

  

E assim, o mico-leão abriu suas asas de anjo e deixou a Amazônia. Sabendo que todos os biomas brasileiros estão ameaçados de extinção, pediu proteção a Ya-cy e seguiu sua missão: ajudar os bichos da Mata Atlântica, dos Cerrados, do Pantanal, dos Tabuleiros, das Restingas, das Matas de Cocais… Na Caatinga já não há mais o que queimar, mas o seu instinto primitivamente animal insiste em repetir: “faz a tua parte e confia”.

  

Com sete dias, um gavião-pinhém trouxe da Bahia um livro e notícias de Mãe Divina. Noticiou que o mico chegou bem, com saúde, sob a proteção de Ya-cy. Naquele mesmo dia, Ching leu “A revolução dos bichos”. Logo em seguida assumiu assumir o comando, dando início à sua missão, pois os “raios de abril” não avisam quando chegam. Ao perceber que muitos bichos tinham acreditado na fake baré e fugiram, determinou que apenas um casal de cada espécie ali presente se inscrevesse e participasse da construção da arca, com direito a embarcar. Naquele momento, viu-se um raio muito brilhante em pleno meio-dia. Seguiu-se um estrondo. Todos correram; uns, para a esquerda, outros, para a direita da trilha, cada um conforme a sua ideologia. Assim ficou provado que no incêndio da floresta todos os bichos se unem… menos no Brasil.

  

Acalmados os ânimos, Ching conseguiu estabelecer uma divisão animal dos trabalhos, separando sub-grupos por espécie, aptidão e força física.

  

Do alto do telhado do hospício, ops, do Arsenal da Marinha, agora transformado em oficina, Ching dava as ordens:

  

– Atenção, pica-paus-anões! Marquem as madeiras adequadas para a construção naval, entendido? Procurem as Copaíbas. Elas são oleosas e resistentes, inclusive ao bicho turu, o terrível cupim-do-mar. Bacuri também é boa madeira. Suas tábuas curvam-se ao fogo. Vi muitas dessas árvores perto dos rios Acará e Caraparu, o que já facilita o transporte dos troncos até aqui. Os castores cortarão…

  

– Olha! – disse a coruja Edwiges.

  

– O quê? – perguntaram todos.

  

– Um gnomio! – a assembleia riu litros.

  

– Como eu estava dizendo, os castores…

  

– Castores? Já não bastava mico-leão, chimpanzé e ratão do banhado? – interveio uma araracanga, indignada com a invasão de tantos estrangeiros na Amazônia. E tem mais: o que essa coruja australiana tá fazendo aqui? E o gnomio? Fazem parte dessa invasão de ONG nórdicas, com seus serezinhos metidos a protetores da floresta? Olha! Olha lá! Acabou de passar um leprenchau correndo atrás de um lutin. Não duvido se aparecer um duende falando espanhol, querendo mandar em todo mundo. E sempre zangado!

  

Enquanto a araracanga estava uma arara, Ching, sem perder a calma, retomou a palavra:

  

– Sim, são todos bem-vindos. Por que não os castores? – e prosseguiu, sem hesitação, com voz muito firme – Eu sou manauara, com muito orgulho! Pertenço à quarta geração de um casal de chimpanzés que embarcaram na Guiné-Bissau. Meus ancestrais foram vendidos para um circo…

  

(Continua) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário