sábado, 21 de novembro de 2020

Arca de Noé V (Epílogo)

 

Fonte: Google

Arca de Noé V (Epílogo)

 

Vitor de Athayde Couto

Cronista e ensaísta

 

O envelope contém um manuscrito, com pouquíssimas palavras. Edwiges, único bicho alfabetizado em inglês, por ter frequentado a escola de uma ONG ambientalista, lê a carta de mãe Divina, e traduz com dificuldade para a assembleia silente:

 

“Cinzas é o que nos resta

 

deste mundo inerte

 

e cremado.

 

Não se ouve um pio.

 

Os polos e a energia da Terra

 

estão invertidos.

 

Gravitamos

 

em torno da Lua.

 

A Terra é a lua da Lua,

 

filha da Lua,

 

com o mesmo solo da Lua.

 

Sem água, sem bio.

 

Cinzas é o que nos resta.

 

Divina cruz, na testa.”

  

Após 190 dias na água, conclui-se a expedição hidroviária “Anime”, sob o comando mono crático de Ching. Os bichos desembarcam sobre a cinza do chão sem vida. O solo ficou desequilibrado, pelo excesso de potássio. Ouvindo o silêncio eloquente das almas, buscam a terra prometida que o mico-leão havia anunciado. Caminham um dia e uma noite. Em meio às trevas, vislumbram alguma luz. Confiante e inspirado na sua experiência bíblico-escatológica, Cam sugere um caminho e sua proposta é acolhida:

  

– Transportei reis que seguiam a luz. Sigamos também a nossa luz interior.

  

As decisões mono cráticas do chimpanzé já não operam mais em terra firme.

  

Na madrugada ainda tenebrosa, o Sol começa a nascer por trás da miragem de um gramado verde. Cada vez mais próxima, a luz transfigura-se em aura, contornando um espectro com aparência humana. Alto, usando uma batina escura, o halo gênio não assusta os bichos. Pelo contrário, dele parece exalar uma afinidade eletrônica que atrai todos os animais, sem discriminação. Mais alguns passos e já se percebe que é apenas um homem muito simples, de barba. Segura cuidadosamente um objeto com as mãos. Sobre os seus ombros repousa um casal de arapongas-brancas-da-amazônia.

  

Ao verem os animais que sobreviveram à expedição, reunidos em volta da luz, as arapongas anunciam o milagre de São Francisco. Com suas mãos, o santo protetor dos animais protege um ninho recuperado de uma Muiracatiara centenária, carbonizada pelas queimadas sem controle na floresta primária. Os ovos no ninho simbolizam o recomeço da vida na Terra, mas o santo homem está triste e chora lágrimas de mistério.

  

Mais de perto, a miragem verde é, na verdade, uma mega plantação de soja transgênica, padronizada e tecnificada, que se estende até o horizonte. Devido à irrigação contínua e ao seu desenho genético artificial, a soja é o único vegetal que resiste a incêndios.

  

Equipado com placas solares, o cultivo é robotizado e autônomo em todas as suas etapas. Acionado por algoritmos de inteligência artificial, mostra-se infalível e durável. Monitorado por sensores de umidade do ar, e alimentado por energia fotovoltaica acumulada em grandes baterias, o sistema de irrigação permaneceu ligado e ativo durante todo o período dos incêndios, inclusive à noite.

  

Ocupando a plantação, movidos pelo instinto de sobrevivência, os bichos começam a comer folhas verdes, com sabor acrílico. Imediatamente o detector automático de pragas é acionado. Em poucos minutos, uma família de drones, terrivelmente de bem, ataca e lança veneno agrotóxico industrial sobre todos os bichos.

  

A Terra agoniza. Inverte-se a energia e os polos norte e sul são trocados. O exoplaneta passa a gravitar em torno da Lua. Agora, a Terra é a lua da Lua, com o mesmo solo cinzento da Lua. Sem água limpa, sem fertilidade, mas sobretudo sem vida reprodutiva. Vida que “até um dia, até talvez, até quem sabe” recomece em águas recicladas, com o que restar dos hidróbios. Se restar. O sistema solar ascende ao zênite da Era de Peixes. Seu fim, profetizado para o ano 2600, encerra mais um desses ciclos curtos do universo.

  

Mãe Divina bem que alertou:

  

– “Meus filhos… não haverá solução para os humanos, se depender das atuais gerações.”

  

Dissipa-se a aura e o halo do santo protetor dos animais. O príncipe das trevas refaz, lentamente, o teatro da primeira guerra do fogo. Mas já não restam humanóides. Sequer um australopiteco, terrivelmente fanático, a repetir aqueles mantras-mais-do-mesmo, que ecoavam nos templos antigos tornados pó: “glória a deus, aleluia, irmãos!”

  

Segundo José, o Saramago, “a morte é o não ser”, portanto, dízimo com quem andas que eu te direi quem não és.

  

E quem não viver, verá.

 

 (The End, como nos filmes antigos)

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