quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O CRONISTA TURUKA E A GERAÇÃO LITERÁRIA DE 1970

 

Antonio Andrade Filho, Irmão Turuka. Foto cedida por Simão Pedro Andrade, filho do escritor


O CRONISTA TURUKA E A GERAÇÃO LITERÁRIA DE 1970

 

Celson Chaves

Escritor, historiador e professor

 

O Jornal A Luta foi o principal veículo de informação impresso de Campo Maior no século XX. Sua importância mede-se não apenas pelo número de edições publicadas e o longevo período de circulação, mas pela proeza de reunir um seleto grupo de escritores, uns jovens, outros nem tanto; num movimento de divulgação da literatura local. Em torno do periódico, formou-se uma geração literária.

 

O A Luta foi responsável por um movimento literário espontâneo nunca mais repetido no jornalismo de Campo Maior. Da poesia ao romance. Dos vários gêneros literários contemplados, a poesia se sobressaiu pela variedade e quantidade. Muitos escritores iniciaram a atividade literária no A Luta. Diversos talentos revelados. O poeta Elmar Carvalho e o cronista Antonio Andrade Filho (Irmão Turuka) foram uns deles.

 

Dos cronistas atuantes no periódico, vale ressaltar, Antonio Andrade Filho, José Francisco Bona, Marion Saraiva e Teresinha de Jesus Oliveira Nascimento. Os cronistas anônimos também fizeram presentes no jornal escondendo-se por trás de pseudônimos para denunciar os problemas da cidade de ordem urbana e social, comportamentos supostamente imorais e crítica às autoridades municipais.

 

Mesmo vivendo sob o manto da censura militar, nenhum escritor sofreu perseguição política por conta do que escreveu. Eles evitavam comentar sobre política nacional. Até certo ponto, a Geração do A Luta foi conservadora, sobretudo no aspecto político. Pouquíssimos opinavam sobre o impacto político do regime militar na vida das pessoas. Escrever era perigoso, publicar mais ainda. Muitos campo-maiorenses já tinham sido importunados pela polícia, presos ou interrogados por expressarem opinião contrária à ditadura militar. Até escritores e jornalistas mais afoitos, como Raimundo Antunes Ribeiro e Zeferino Alves Neto não ariscaram cometer tão grave erro.

 

Muitos dos escritores da Geração do A Luta eram ecléticos. Escreviam um pouco de tudo. Marion Saraiva e Teresinha de Jesus Oliveira Nascimento enveredaram para a poesia, crônica, conto e história. As mulheres tiveram uma participação significativa no periódico. Eram dinâmicas, intimistas e criativas. Dentre os homens, destaca-se Elmar Carvalho (poesia), José Cunha Neto (cordel), José Miranda Filho (romance), José Francisco Bona e Irmão Turuka (crônica).

 

A Geração do A Luta caracteriza-se por um grupo de escritores e jornalistas focados nos problemas da cidade, preocupados com questões política e social de cunho local, ideológica, questões religiosas, assim como os centrados apenas na literatura.

 

Era rico o cenário literário estampado nas páginas do jornal A Luta. A frenética década de 1970, com suas inúmeras novidades e atrativos assustavam os escritores mais conservadores. A modernidade em curso não quebrava apenas a rotina da pacata cidade, mas abalava os alicerces e os costumes de uma sociedade extremamente religiosa.

 

Campo Maior saia do isolamento. A prosperidade econômica do município atraia todo tipo de forasteiro. Novas visões de mundo foram implantadas. O cineteatro, os clubes, a zona do meretrício, o namoro nas praças, às tendências subversivas na moda, na música e na própria literatura abriam o horizonte da juventude campo-maiorense desejosa por novidades e aventuras.  Os anos rebeldes dos anos 50 chegavam tardio a Campo Maior.

 

A crônica campo-maiorense da década de 1970 refletiu tudo isso. Porém, seu papel maior foi na construção de um repertório literário para a história local. Um rico manancial de informações sobre Campo Maior da primeira metade do século XX. O sentimento saudosista da historiadora Marion Saraiva e do cronista Irmão Turuka foram responsável por parte dessa produção. Hoje, toda essa massa documental está sendo largamente utilizada em pesquisas acadêmicas.

 

Antônio Andrade Filho participou da geração literária do A Luta numa linha ideológica mais próxima de Marion Saraiva, Cunha Neto e, sobretudo Octacílio Eulálio, quando o assunto era salvaguardar o catolicismo e os bons costumes das tentações do mundo moderno, do avanço do protestantismo.

 

Irmão Turuka era maçom kardecista. Sua religiosidade refletia na produção literária. A Geração do A Luta era composta por católicos, maçons e kardecistas. Não havia protestantes. O grupo era coeso, apesar da existência de pensamentos diferentes. O respeito intelectual prevalecia entre os membros do jornal.

 

A participação do Irmão Turuka no jornal A Luta restringiu mais a crônica que o jornalismo propriamente dito. Publicou trinta e dois textos, segundo o historiador José Ribamar de Sena Rosa (2015). De narrativa simples, seus escritos são fontes da memória prodigiosa do cronista bairrista. Para ele “Recordar é Viver”. Suas crônicas revelam o lugar onde nasceu. São recordações afetivas, memórias de uma cidade velha.

 

O roteiro histórico-sentimental do cronista interiorano é traçado em três pontos: lugares, personagens e episódios. Irmão Turuka não fazia acepção de pessoas ou classes em seus textos. Independente da condição social, todos são personagens de uma mesma paisagem.

 

Ainda não há estudo específico sobre as crônicas de Irmão Turuka. Porém, coube aos historiadores Reginaldo Gonçalves Lima, Francisco Assis Lima e José Ribamar de Sena Rosa tratarem da biografia e obra de Turuka. O primeiro resumiu a vida do escritor, sem adentrar muito a crítica e análise dos textos; o segundo fez um completo levantamento das crônicas, de textos dos colegas de jornal do autor e perfis biográficos sobre ele. Todos publicados na íntegra. O terceiro foi o único até agora a realizar um estudo mais crítico de algumas crônicas de Turuka numa dissertação de mestrado sobre o jornal A Luta.

 

Muito louvado como humanitário, pouco reverenciado como escritor. Esse aspecto biográfico é bem característico em Irmão Turuka desde as primeiras homenagens recebidas no ano do seu falecimento, em 1970, pelos colegas de jornal A Luta até Reginaldo Gonçalves Lima, o primeiro historiador a traçar um perfil biográfico de Turuka. Reginaldo Lima, contudo não conseguiu aprofundar o estudo sobre a faceta literária do autor. O texto traz ligeiras notas e citações das principais crônicas publicadas por Turuka nos jornais O Estímulo, A Luta e o Tombador. Todos de Campo Maior.

 

Ao contrário de Reginaldo Lima, penso que a literatura em Irmão Turuka não foi fruto de um autodidatismo e sim resultante de uma educação esmerada. Para os padrões da época, ele teve uma boa formação educacional, leu bons livros e estudou nos melhores colégios de Campo Maior (Valdivino Tito e Ginásio Santo Antônio) e do Piauí (Colégio Diocesano).

 

A obra de Turuka expressa à voz do povo. Do mais simples até a fina estirpe. “Bem Aventurados os simples” dizia ele uma de suas crônicas. O rico imaginário popular com histórias e lendas perpassam os textos do escritor. Ele amava contar reminiscências de uma Campo Maior esquecida pelo povo. Os beatos e seus dons milagrosos, oralidades revestidas de um verniz cultural e secular. O lado folclórico da escrita abrangem tudo isso e um pouco mais. Turuka salva o povo da sua própria banalidade. Típico cotidiano rasteiro.

 

Campo Maior torna-se cheia de poesis. O autor tira a cidade da trivialidade. Tudo bem elaborado, minuciosamente descrito. Com temas extremamente sugestivos, ele envolve a mente do leitor na trama de homens de dons “sobrenaturais”, os médiuns e os profetas do sertão. Adepto do espiritismo kardecista, tema como a morte sempre lhe devotava tempo e atenção. Seus textos publicados no jornal A Luta são crônicas e algumas notas trazem curiosidades sobre diversas situações do cotidiano e da cultura humana, a exemplo do “listão de São Silvestre”.

 

O cronista também teve seus momentos de historiador, quanto teve a percepção crítica de levantar o passado da cidade com olhar perspicaz. Ele atualizava nossos dramas. Entendia a história como mestra da vida. O papel de cronista é o mesmo do cidadão historiador.

 

Dos cronistas do Jornal A Luta, Irmão Turuka foi o único a enveredar para a crônica musical. A maioria dos jornalistas e escritores ficou na crônica esportiva. Ele teve a incumbência de cobrir todo o contexto cultural da década de 1930 a 1970, em que brilharam grandes bandas e talentosos músicos em festas estonteantes.  São três as crônicas que versam sobre essa temática: “Lyra de Santo Antônio”, “Serestas e Seresteiros” e “Eu Vi a Banda Passar” publicados originalmente nas páginas do Jornal A Luta, depois reproduzidas na íntegra nos livros Geração Campo Maior -anotações para uma enciclopédia (1995) e Recortes de Campo Maior (2008) dos respectivos historiadores Reginaldo Lima e Assis Lima.   

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