segunda-feira, 21 de junho de 2021

Presente a longo prazo



Presente a longo prazo 


Carlos Rubem


Antônio Nogueira Campos, o tio Campos, 86 anos, conheceu, nesta data (19.06.2021), o meu neto varão, Joaquim Miguel, 01 ano, nascido no início da pandemia. Este fato se deu na tarde de hoje, na casa dele, em Teresina.


Parte da minha infância, dormia na casa do vovô Joel com Antônio e Gerson Nogueira Campos (1934 - 1973), irmãos. Antes de caírem nos braços de Morfeu conversavam amenidades, cantavam e declamavam versos de poetas vários. Impreterivelmente, recitavam Nogueira Tapety,  tio materno de ambos.


Lembro-me de “O chato”, fesceninos versos de autoria do tio Gerson, paródia de “A ideia”, de Augusto dos Anjos, censurado por tia Amália quando do lançamento do livro “Sonetos & Retalhos”, obra póstuma, por mim editada (1979), que se inicia assim: “De onde ele vem, de que matéria imunda // vem o bruto, chato feio, horripilante // que habita o rego virgem da minha bunda // e não me deixa sossegado um só instante?”


Tio Campos sabia de cor longos poemas, inclusive da literatura de cordel, a exemplo de “A chegada de Lampião no Inferno”, da lavra de José Pacheco.


Estudante do extinto Ginásio Municipal Oeirense, nos anos cinquenta, por ordem do seu rígido Diretor, Padre Baldoíno Barbosa de Deus, com antecedência apenas de dois dias, tio Campos decorou “Navio Negreiro”, de Castro Alves e o disse, com muita desenvoltura, num evento cívico. 


Pedi ao tio Campos que recitasse algum poema oferecido ao JM, pois iria ser filmada a sua performance e que, quando o pequerrucho crescesse, irá tomar conhecimento dessa singela homenagem.


A princípio alegou que pelos achaques da vida; sequela de um câncer de garganta que superou; da sua precária memória; não saberia satisfazer meu propósito. Mesmo assim pronunciou “Senhora da Bondade”, de Nogueira Tapety, soneto adiante transcrito:


“Não te quero por tua formosura 

De rainha da graça entre as mulheres: 

Quero-te, porque és boa, porque és pura 

E inda mais, porque sei que tu me queres.


A beleza exterior nem sempre dura,

E a d’alma, estejas tu onde estiveres,

Ungirá de virtude e de doçura

Tudo em que a bênção deste olhar puseres.


Eu sou artista – encanta-me a beleza 

Em ti, porém, abstraio-a inteiramente,

E penso amar-te, assim, com mais nobreza,


Pois se te esqueço a forma e a mocidade,

É para amar em ti unicamente

A encarnação suprema da bondade.”


Oeiras – agosto – 1916  

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