quarta-feira, 1 de junho de 2022

O COMPLEXO DE ÉDIPO NA OBRA DE O.G. RÊGO DE CARVALHO *



O COMPLEXO DE ÉDIPO NA OBRA DE O.G. RÊGO DE CARVALHO *

 

José Expedito Rêgo


Matéria publicado por Carlos Rubem em grupo de WhatsApp, que lhe pôs a seguinte nota:

Estaria, hoje (01.06.2022), completando 94 anos, o médico e escritor José Expedito Rêgo, oeirense de quanto costados. 

Em homenagem à sua memória, transcrevo, a seguir, o artigo:

 

 

Dizem que a Psicanálise está decadente. Pode ser. Mas os ensinamentos de Freud continuam influindo na Psicologia e na Psiquiatria modernas. Talvez tenha havido exageros em sua Teoria Sexual, mas ela, no fundo, permanece válida e atuante.

 

Patrick Mullahy, em seu livro “Édipo – Mito e Complexo”, edição de 1975, afirma: “Ao fundar e desenvolver a Psicanálise, Sigmund Freud iniciou um movimento que penetrou e enriqueceu tantos campos do pensamento e do comportamento que seria sobremodo difícil enumerá-los todos aqui. Alguns desse campos são, além da Psicologia e da Psiquiatria, a Sociologia, a Antropologia, a Mitologia, as Belas Artes, a Religião, a Filosofia, a Educação. Sua influência já se aproxima da de Darwin e Marx. E essa influência continua aumentando.

 

Todos os pós-freudianos subiram nos ombros dele. Se podem ver mais longe do que Freud – pelo menos alguns deles – foi porque ele lhes apontou o caminho, primeiro que ninguém.

 

Depois de mencionarmos semelhante fato, afirmar que Freud era um gênio parece quase trivial”.

 

Ainda Mullahy: “De modo geral, a teoria psicanalítica fez magníficos progressos nos cinqüenta ou sessenta anos de sua existência. Freud, evidentemente, permanece como a mais imponente figura individual, embora, como é sina de todos os grandes inovadores e pioneiros, muito de sua obra tenha sido ultrapassado por formulações mais refinadas”.

 

Recordemos a Lenda de Édipo, para os que não estejam de todo lembrados: Herói tebano, filho de Laio, rei de Tebas e de Jocasta, Édipo nasceu depois que um oráculo profetizou a Jocasta que o filho a desposaria, após assassinar o pai. Laio mandou abandonar  menino no monte Céteron, com os pés feridos, esperando que ninguém quisesse receber uma criança inválida; todavia, salvo por pastores, foi educado por Políbio, rei de Corinto, que ele julgava ser seu pai. Chegando à idade adulta, conheceu, pelo oráculo de Delfos, o destino a que estava prescrito; para evitá-lo, quis fugir de Corinto: no caminho para Fócida assassinou, após discussão, um viajor desconhecido, sem saber que estava matando Laio. Em Tebas, encontrou o país devastado pela Esfinge, que propunha enigmas aos que passavam e devorava aqueles que não conseguiam resolvê-los; o monstro propôs-lhe um enigma, que Édipo resolveu e, como prêmio, casou-se com Jocasta. Revelada a verdade sobre a relação incestuosa, Jocasta enforcou-se e Édipo, desesperado, vazou os próprios olhos.

 

Para Freud, o mito e o complexo de Édipo são universais. Westermarch não aceita esta universalidade, entre outros. De acordo com o mestre de Viena, esse complexo, pelo qual todo indivíduo passa na mais tenra infância, é superado na grande maioria das pessoas. A não superação resulta na neurose. Os psicanalistas freudianos pensam que o artista é um frustrado e a obra de arte, como a poesia, é uma sublimação. Não sabemos se o poeta cria porque é frustrado ou se é frustrado porque cria. Melhor dizendo, o poeta sublima seus desejos frustrados ou seus desejos são frustrados porque sublimes?

 

O complexo de Édipo é visível em autores de renome como Érico Veríssimo. Em Solo de Clarineta vemos o filho falar do pai irresponsável, pelo qual tem aversão e indiferentismo.

 

Orlando Geraldo Rêgo de Carvalho nasceu em Oeiras, “cidade colonial famosa por seus poetas, músicos e loucos” no dizer do próprio escritor. Em formoso poema, cheio de inspiração e sensibilidade, ele fala das “verdes quintas do Mocha’ que nãodeseja rever, para guardar melhor a imagem da infância. É o romancista piauiense de maior repercussão no Brasil e sua obra já é conhecida fora do país, ao menos em Portugal e nos Estados Unidos. Suas personagens são todas marcadas pela neurose e, em muitos trechos de sua notável obra literária transparece claramente a marca do que os psicanalistas chamam complexo de Édipo. Relendo seus três livros, Ulisses entre o Amor e a Morte, Rio Subterrâneo e Somos Todos Inocentes, anotamos algumas dessas passagens, em que o ódio ou o medo ao pai e o amor sexual à mãe aparecem nas relações entre ao personagens. Comecemos pelo primeiro.

 

ULISSES ENTRE O AMOR E A MORTE

 

Página 3 – “Pouco me importava o regresso. Queria estar logo diante de minha mãe para receber sua benção e, em seguida, me deitar”.

 

Página 4 – “A senda era íngreme, ora rompendo mato, ora pulando grotas e a percorri sem desfalecimentos, ansioso por abraçar mamãe. Esta se achava na porta esperando por mim.

 

...fui deslizando até a copa onde defrontei meu pai. Seus olhos fitaram-me sem brilho, e deles me tornaria presa, as mãos frias de medo, se mamãe não me empurrasse, chamando-me:

 

–Não quer cear, filhinho?

 

 

Notando-me indisposto ela me deu um copo de leite, ainda morno, ao mesmo tempo em que me beijou na testa.

 

 

Insone ainda, meu filho? – ecutei papai dizer, num de seus instantes de tranqüilidade.”

 

Página 9: Diálogo com o pai:

 

“– É verdade que nos deixa hoje? – inquiri – Mãezinha acaba de dizer.

 

Meu pai ergueu o corpo suado e me encarou, firme:

 

– Se disse é porque vamos mesmo.

 

A ver-me retirar em silêncio, chamou-me:

– Espere – falou mais brando – você não irá embora por isso, não é? Logo estarei de regresso, deixando de ser ruim”

 

Página 10: “Como nada restasse, ela me abraçou aconselhando que fosse bonzinho, no que foi imitada pela mana. Papai se despediu por último e, ao fazê-lo, se limitou a apertar-me a mão, fitando-me demoradamente.”

 

Ainda na Página 10:

 

“Passando apenas um segundo, eu sorria para abraçar os velhos. Apertei-os carinhosamente e esperando que houvesse júbilo de sua parte. Mas me enganei: nada disseram e se limitaram a beijar-me a testa.

 

– Sentem-se direito – falou a seguir minha mãe, contrariada ante nossa inquietude.

Que agradável ouvir sua voz novamente, pensei comigo.”

 

Página 18: Descrição da morte do pai:

“Quente era a manhã, em julho, quando meu pai se deitou, as pálpebras baixando. E puro, e distante e feliz, encarou o céu e o tempo.”

 

Às páginas 21 e 23 o menino passa a ter “aparições do pai, depois de morto”. Complexo de culpa?

 

RIO SUBTERRÂNEO

 

Segundo Homero Silveira, “este é o mais desesperado livro que se escreveu no Brasil”, Vejamos.

 

Página 3: “José, pai de Lucínio, não suporta ver o filho nas crises de loucura periódicas.”

 

Página 8: “Assustadora, a certeza de que aquela porta [do quarto do pai] nunca se abriria [para ele, Lucínio], enquanto seu  pai estivesse doente.”

 

Página 29:

“... Nada se movimenta no sítio, exceto a ramagem nova ou tenra, a cancela que range em surdina como se alguém a abrisse. Rápido, o cachorro desperta, levanta as orelhas e corre ao portão. Não late, nem estranha a figura silenciosa que vem na penumbra da aléia. Lucínio emociona-se, o medo imobiliza-o. Não pode ver o homem que se aproxima.

Sente: é seu pai.”

 

Página 37: (atração pela mãe da namorada):

“Ele olha para a Dona Judite, para o seu rosto moreno claro, a sua boca sumarenta, que sorri, o decote da blusa amarela, que realça os seios aparentemente duros, para os braços roliços, a pele sedosa como a de uma adolescente: e estremece, sentindo-se observado.”

 

Página 42:

“A mãe de Afonsina [Dona Judite] pegando na costura aconselha-o a ter prudência, a refletir: “Mulher se escolhe pela raça”. Ao que respondeu, com os olhos nos braço dela. “Quanto a mim, não me importaria se minha sogra viesse poupar-me a contingência durante a gravidez da filha”

 

Página 81:

“A missa está findando quando, bruscamente, aparece o pai de Landinho. Todos o vêem; um murmúrio corre a nave. O ébrio cambaleia entre a multidão e sobe as escadas. Uma vez tropeça e quase despenca. Ao acercar-se dos músicos, o coro emudece. Somente o menino continua cantando, alheio à presença do pai. Mas ao vê-lo ameaçador, olhos exorbitantes, riso escarninho, recua e empalidece, a voz esmagada no peito.”

 

´Página 119: (ainda Hermes e D. Judite):

“A voz e o perfume eram de Judite. A sua aparição inesperada encheu-o de júbilo; na presença dela mal se continha. Fitou-a enternecido. Um véu negro contornava-lhe o rosto suavemente, realçando-lhe a formosura. Não Judite com os joelhos à mostra, a despertar fantasias, senão uma Afonsina mais velha mais excitante, mais envolvente, olhos rasos de ternura.

– Afonsina já acordou? Eu ia agora pra lá.

Ela deu a mão, sorrindo afetuosamente.

– Matutava ali, sem vê-lo: por que Hermezinho nunca namorou? Alguma paixão secreta? Os estudos? Não compreendo, meu filho, que um jovem tão... Deixa-me chamá-lo de filho?

– Sim, mas numa condição.

– Proíbo-o de roer as unhas, não é?  Estão no sabugo.

– Não, Judite. Quero apenas que ao me tratar assim se esqueça de é mãe. Faça-o por carinho ou despreze – E brincando com as palavras: sinto que eu gosto de você.

Judite suspirou, empalidecendo. Arfava.

– Você está se declarando, Hermes! Que não diria Afonsina?

Ela se afastou, na emoção do momento.

– A culpa não é minha, Judite. Nem sua. Aconteceu. Não posso recusar o que me pede o coração. Há meses que me domino.

– Doido! Não vê que não é possível? Uma loucura.

– Que importa? – Prendeu-lhe as mãos úmidas. Se não me quer, ao menos me permita amá-la. E me perdoe.

Ela repetiu, sem um jeito de reprovação:

– Oh menino, que loucura...que loucura...”

 

Página 129:

“... Vira o colo [da mãe], reparara nele intensamente, comparando-o ao de Afonsina: um, peito murcho, o outro, em pleno viço. Com que propósito o fizera? Aparentemente nenhum. Todavia, porque só hoje desvendara o sexo da mãe? Cabeceou, para afastar o pensamento. Uma sensação de incesto, de desejo oculto no imo, angustiava-o, enchia de repugnância e medo.”

 

Página 164: (Complexo de Electra invertido: mãe que odeia a filha):

“Por isso nunca me afeiçoei a Helena, jamais a quis verdadeiramente”

 

SOMOS TODOS INOCENTES

 

Nesse livro as personagens femininas são todas dóceis, bondosas, carinhosas; há apenas uma velha rabugenta e de caráter dominante, mãe do herói da novela (caráter dominante das mães, é sabido, dificulta o rompimento do cordão umbilical psíquico e conseqüente superação do complexo de Édipo, trazendo a maturidade afetiva)

O herói do romance, um jovem médico chamado Raul é egoísta e sensual. Fica indeciso entre o amor de duas jovens da primeira sociedade. Engravida uma moça de família humilde e nega-se a casar com ela, por não ser da mesma laia. Sugere uma solução para o caso: o aborto criminoso.

 

As personagens masculinas do livro, principalmente as mais idosas, são todas homens rancorosos, mesquinhos ou caducos. Logo no segundo capítulo vemos José, pai de Dulce, inimigo figadal da família de Raul, namorado da filha, matar de cansaço uma égua, numa cavalgada desesperada da fazenda para a cidade, por sentir-se pobre e arruinado e morre de desgosto porque a filha vai a um baile na casa da família inimiga.

Vejamos agora algumas passagens:

 

Página 58: (variação do Complexo de Édipo):

 

Dr. João Mendes, Juiz de Direito, sente ciúmes da filha, Maria do Amparo, porque ela vai ficar noiva.

 

Página 119: (Cena entre Raul, o jovem médico e o avô doente. Caduco e guloso, querendo comer alimento proibido):

– Quer morrer? Pois então morra. (Ergue-se dramaticamente). Vou sair, mamãe, para providenciar o enterro.”

 

Página 157: (Cena de Sadismo): Seu Ernesto, velho farmacêutico, ao atender a moça que Raul infortunara, por ocasião de um aborto [espontâneo], deixa de dar anestesia, aplicando-a somente depois que a paciente sofre um bocado, alegando que ela precisava redimir-se dos pecados cometidos.

 

Página 166: O avô de Raul elogia o pai deste, dizendo que tinha uma têmpera de homem. Raul leva na troça o elogio ao pai e o avô parte com ele;

“– Cachorro o que você é! E ainda desfaz da família.

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 E ri, que desfaçatez1 Vive enganando as moças e nem respeita a memória do pai.”

 

Página 183: (Cena com Dona Nini – caráter dominador):

 Dona Nini, em frente ao sobrado, de vestido escuro, com um punhal no cinto. Seu semblante exprime ódio, decisão de lutar: a boca comprida, com o suor a escorrer no buço, os olhos semifechados, fixos em um ponto longínquo:

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“ – Nem pense. O senhor devia é ter vergonha de ser covarde. Um homem desse!”

 

São essas as anotações que fizemos da obra de O. G. Rêgo de Carvalho tentando mostrar a ocorrência do Complexo de Édipo nas personagens por ele criadas. Este não é um trabalho de crítica. Temos enorme admiração por este romancista oeirense, menino do nosso tempo na velha terra mafrensina  e, se algum mérito tiver este despretencioso alinhavado de estudo, que seja apenas o de divulgar o mais possível o nome desse piauiense ilustre, que não recebeu, ainda, de seus conterrâneos, a devida consagração.

 

Floriano, 11 de abril de 1980

* Inserto da Revista da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Regional do Piauí. Ano 1986 – nº 02.

Um comentário:

  1. Muitas vezes os filhos se dão melhor com as mães e as filhas com os pais, talvez seja um resquício do Complexo de Édipo!

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