sexta-feira, 7 de junho de 2024

Invisíveis

Fonte: Google


Invisíveis

*Fabrício Carvalho Amorim Leite

Casa grande, família à maneira colonial, lá seguia a patroa Leopoldina, com uma pequena escanchada no pescoço e outra prestes a nascer. Chegava e ia direto encontrar Isaura, minha amiga educada e econômica nas palavras, sempre em seu porão.

Na infância, enquanto descobríamos o mundo da cozinha e da despensa, acompanhados de cafunés, afagos e beijos, Isaura já vivia em esgotamento. Mesmo com as juntas ainda jovens, lavava e enxaguava muitas roupas por dia. Agora, anos depois, Isaura estava avoada, ofegante, e puída — a velha ampulheta lembrava seu cansaço.

Carteira assinada? Folgas? Nem pensar. E diziam que jamais foi bulida nesta vida do Nosso Senhor. Sobrevivia num quase-certo regime monástico, sem documentos e praticamente inexistente para o mundo real.

“Leopoldina, alivia o trabalho da velha criada, o mundo já foi muito exigente com ela. Há outras bem mais preparadas para isso,” dizia o Dr. Bustamante, seu rico marido e cúmplice, tentando soar compreensivo. Homem prático e direto, com uma dramaturgia oportunista. Sua voz era baixa e mansa, como querendo disfarçar a invisibilidade imposta a Isaura.

Observei Dr. Bustamante pegar uma pilha de roupas e começar a lavar como minha mãe fazia e como vovó ainda faz, aos seus oitenta anos. Meus pensamentos dúbios surgiram; era difícil não ver hipocrisia. Enquanto isso, Dona Leopoldina, alheia à cena, começou a olhar os anúncios da internet, como sempre fazia, consentindo silenciosamente a hipocrisia.

Voltei para casa refletindo como, na invisibilidade, uma certa ordem parecia ser trazida ao curso natural das coisas.

Na última visita, corri para ter com a amiga de infância. Olhei ao redor, mas só vi uma estranha. Ela aparentava ser contemporânea e autônoma, sem noção das penúrias da serva anterior. Seus direitos trabalhistas estavam estampados no rosto — que ironia! Será que Isaura havia sido trocada por alguém mais visível?

Descobri então que Isaura tinha sido despedida sem aviso. Ao ver o seu porão vazio, padeci de um sentimento de culpa. Porque não defendi Isaura, que sempre esteve visível para mim, mas parecia invisível para o resto mundo?

E, assim, inspirado por Graciliano Ramos sobre a arte das lavadeiras “Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja, torcem o pano, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes”, através da escrita, prometi tornar visíveis os invisíveis.

(*) cronista e contista.

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