O Ocioterapeuta
Fabrício Carvalho Amorim
Leite*
Hoje, discute-se sobre o que significa ser rico e feliz — uma conversa
que, não raramente, acaba
no instante em que a canseira toma conta. Acumular bens materiais? Trabalhar duas,
oito ou quatorze horas por dia? Ou será que a fortuna é algo além do tangível,
um estado de espírito que escapa à ampulheta e aos extratos bancários?
Confesso que, desde
sempre, fui fascinado por aquela figura (perdoem- me os que tem feroz ojeriza
pelos ociosos e pela ociosidade) que, em plena segunda-feira, repousa
com calma em sua rede de fibra da palmeira
tucum, estendida na sacada de uma casinha singela de tijolos carcomidos,
à beira de uma estrada poeirenta no sertão.
Ali, ela se balança
devagar, ora puxando
uma cordinha com as mãos, ora
empurrando a mureta com as pontas dos pés, enquanto sua maior ansiedade é
verificar, de tempos em tempos, se o benefício do “guverno” caiu na conta no
dia certo.
De longe, sei bem, a
outra margem do rio (ou estrada) parece sempre mais bela, mais verdejante, com serras vivas e ruivas,
como se tivessem sido
pinceladas pela pródiga mão da natureza. Porém, ao atravessá-la, sem a
romantização da miséria, a realidade logo se impõe, desvelando nuances menos
sedutoras. E não demora muito para desejarmos voltar ao nosso lado. Ainda
assim, é bom imaginar e bulir de invejar...
As histórias de quem
cai durinho no local de trabalho, consumido pelo abuso, sempre me causaram uma
perturbação profunda. No Japão, esse fenômeno
tem até um nome, que soa quase como um grito gutural:
karōshi
— a
morte por excesso de trabalho. E, nessa hora, eu só consigo imaginar São José Operário entrando
em cena, diligente, intercedendo pela alma da
criatura cujo único propósito na vida parecia ser conquistar, a qualquer custo,
o quase póstumo título de “funcionário do mês”.
Mas há quem
escolha o oposto. Tomemos João Lindo como exemplo. Um quase mito na cidade, João ostenta uma pele alva e imaculada, sempre protegida pela sombra das centenárias árvores da pracinha
e pela mistura de cajuína com cachaça — ou, como ele prefere
chamá-la em seus lampejos
poéticos, “a bebida dos deuses e da juventude”. Aos sessenta anos, ele se
gaba de não ostentar um grisalho, o peito estufado
como o de um mustang em seus melhores dias.
Ao contrário
daqueles que se consomem até o limite, como no Japão, João Lindo
segue um credo extremado. Orgulha-se de jamais ter trabalhado
um único dia. Nunca segurou um martelo, muito menos uma barra de sabão, e suas mãos,
livres de calos,
são um testemunho vivo de seu destino, mesmo sob os olhares reprovativos da cidadezinha
apinhada de operários.
“Sou o legítimo herdeiro do fidalgo Visconde das Caravelas”, proclama,
com a fiança de quem construiu
sua genealogia inteiramente no botequim da praça, baseada
em causos de um amigo
íntimo. Esse amigo,
cujo destino foi tragicamente
selado por uma cirrose etílica, parece ter legado a João, junto com suas histórias, a aura quase mítica de um ócio aristocrático, como se o inesgotável repouso, ornado de
dissimulação, graça, irreverência, galanteios, fosse uma arte, reservada apenas
a poucos eleitos.
João Lindo é, na prática, o monumento vivo da Ocioterapia Extrema, uma curiosa fusão de pseudo-psico-ciência e
misticismo, baseada em métodos que dispensam qualquer resquício de esforço ou dedicação. Ele se
orgulha, e muito, de ter conquistado sua posição nessa peculiar seita — ou seja lá como se possa titular tal
coisa — sem jamais recorrer ao mérito, ao trabalho ou ao empenho genuíno.
Por outro lado,
sua sobrinha, Teodora
— aquela menininha
que passava horas na pracinha,
fascinada pelos causos do argonauta tio — parecia, por uma dessas
ironias do destino,
ter transformado as histórias que ouvia dele em divisa para romper com a
indolência que marcava a tradição familiar. Certa vez, confidenciou, com um
brilho de orgulho que desafiava a apatia do tio, que havia conseguido um
emprego como menor aprendiz em uma biblioteca.
—
Tio, serei um Machado, uma Clarice, um Rosa ou, quem sabe, um Da
Costa e Silva! — Declarou, com a convicção de quem já sentia, nos ombros magros, o peso e o
prazer de construir histórias.
“Minha sobrinha,
estou decepcionado com você”, disse ele, com a voz grave e um olhar
preto-fosco, firme como uma sentença. Ela abaixou a cabeça, resignada, já precipitando a preguiça hereditária do tio.
Sem outra palavra, ele se virou com lentura
calculada, caminhou até a praça em frente à casa e, com a fleuma de quem
nunca foi amigo da pressa, içou sua suntuosa rede sol a sol entre duas
mangueiras.
Ao se deitar, ainda
sob o peso da discussão, João Lindo suspirou, como quem reafirma um credo ancestral: Repousar
é resistir. Mas, depois de seu
sono medonho, à boca da noite, um súbito pensamento cruzou sua mente: “Será que Teodora algum dia vai me
perdoar por ser quem sou? ”.
(*) Contista e cronista.
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