Vi-o muitas vezes a percorrer as
ruas e praças de Évora. Metido em velhas fardas que lhe davam, algumas vezes
esfarrapadas e amarrotadas, não andava, marchava. Com um velho quepe na cabeça,
parecia participar de um desfile na caserna. Certa feita, em meados de 1980,
entrou em minha repartição. Os colegas mais brincalhões foram logo tirando
lorotas com ele, chamando-o de soldado, que para ele tinha uma conotação
pejorativa e de menoscabo. Vendo que eu não sorria, veio até onde eu estava e
disse baixinho: “Eles não sabem quem eu sou... Sou alta autoridade do planalto”.
Pedi-lhe, então, que lhes perdoasse, tendo ele assentido. Perdi-o de vista;
achei que tivesse ido para outra cidade. Muitos anos depois soube que passara a
morar no abrigo para idosos. Fui visitá-lo. Recebi a informação de que fugira,
dois dias antes. Como certos animais que voltam para morrer no lugar em que
nasceram, o velho Marechal fora morrer em seu pago, no meio dos seus.
Roberto Carlos
Seu nome era Raimundo, mas desde que
enlouquecera, dizem que por causa de uma paixão não correspondida, adotara o
“nome artístico” de Roberto Carlos. Um dia, em minha adolescência, vi-o nas
calçadas altas da Zona Planetária, bem na esquina de Júpiter, o principal
“planeta”. Fazia mímicas para ninguém ou talvez para o vento ou para espíritos
que só ele via. Simulava segurar um microfone; acenava para a turma do
gargarejo e para “ouvintes” do fundo da inexistente plateia. Fazia meneios,
trejeitos e requebros dignos de um pop star.
Julguei fosse mais feliz do que eu, imerso na ilusão de sua loucura. Muitos anos depois perguntei ao acadêmico e psiquiatra Humberto Guimarães se o Raimundo, o nosso popular Roberto Carlos, não seria mais feliz do que qualquer um de nós, porquanto ele viveria na melhor realidade que imaginara para si. Humberto disse-me que não, pois quando um louco melhora de sua doença e volta a piorar, e sente que vai perder a consciência de si mesmo, sofre muito. Em minhas palavras e interpretação: é como se ele sentisse o aniquilamento de seu mais profundo eu; é como se fosse a morte da consciência de seu verdadeiro eu.
Tobago
A primeira vez que o vi, ele se encontrava no
Bar Carnaúba. Fazia gestos e esgares. Acenava e fazia reverências, como se
estivesse cumprimentando alguma pessoa no recinto. Não o conhecia e jamais
ouvira falar dele. De repente, olhou em minha direção, e acenou. Respondi-lhe,
mas notei que ele não me via. Com efeito, seus olhos vagos fitavam o vazio,
talvez o infinito de algum ponto imaginário. Informei-me a seu respeito, e
soube que, de segunda a sexta-feira, era um funcionário exemplar do Banco do
Brasil, rigorosamente pontual e que nunca faltava, sempre monossilábico,
introvertido, ensimesmado. Mas no final de semana se transformava naquele
excêntrico e sociável boêmio, a cumprimentar espíritos ou, talvez, os fantasmas
de si mesmo. Ou talvez fosse apenas um esquizofrênico dos finais de semana, a
evadir-se da rotina e do tédio.
Paru
Quando o ricaço Roland Jacob se deslocava para a capital ou de lá retornava, estacionava seu Land Rover na frente de sua filial da velha urbe. Paru, então, doido manso, ia limpar o carro. Quando indagado a respeito, invariável e laconicamente respondia: "Estou lavando meu carro." Tinha o sonho de ser o prefeito da cidade. A principal meta de sua plataforma eleitoral consistia em levar o riacho Pintadas para Parnaíba e em recompensa trazer o "mar da Parnaíba", como ele dizia com ênfase, a abarcar o mundo com os braços bem abertos. Sem se despedir de ninguém, desapareceu da cidade, como por encanto. Filho da estrada e do vento, nunca se soube de onde vi/era, nunca se soube para onde foi. Ou talvez tenha ficado - encantado.
Contos muito bem escritos! E essa visão benevolente da loucura, até mesmo saudosista, nos faz ver com bons olhos esses andarilhos da sorte!
ResponderExcluirDiz o ditado: "De perto, ninguém é normal." Parabéns aos escritores, que transformam essa verdade em histórias.
ResponderExcluirMuito obrigado, caros amigos.
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