Elmar Carvalho visto por Gervásio Castro |
OS VAREIROS E A PARNAÍBA DE OUTRORA (*)
Elmar Carvalho
Estes escritos de Raimundo Souza Lima estiveram perdidos
durante alguns anos, após sua morte. Depois, foram encontrados e publicados em
1988, graças à “influência de poetas e escritores vinculados ao Grupo INOVAÇÃO,
junto ao professor universitário” Israel Correia, na época secretário de
Cultura, Desportos e Turismo do Estado do Piauí. Tenho orgulho de haver
pertencido ao jornal Inovação, fundado por Reginaldo Costa e Franzé Ribeiro, e
vibrei com a publicação deste livro, cujo autor cheguei a conhecer em 1976,
numa roda de cerveja, no Clube do SESC Beira Rio, em Parnaíba.
Mesmo assim a obra contém apenas menos da metade do que foi
escrito por Souza Lima, segundo informação de Raul Furtado Bacelar em discurso
na Academia Parnaibana de Letras, conforme está contido na apresentação do
poeta e escritor Alcenor Candeira Filho. A outra parte do livro talvez se
encontre extraviada para sempre, ou se encontre oculta em alguma esconsa
gaveta, à espera de algum garimpeiro de velhos papéis literários. Raul Bacelar
era o ocupante da cadeira 21, da qual é patrono Souza Lima. Indo minha família
morar em Parnaíba em 1975, conheci o farmacêutico Raul Bacelar, com a sua
indefectível e personalíssima gravata borboleta, em sua antiga farmácia de
manipulação, hoje transformada em museu, e o entrevistei, certa vez, para uma
das edições do jornal Inovação.
Esta edição, que agora estamos entregando à luz da
publicidade, é belíssima e bem-organizada, com elucidativas e bem escritas
páginas preambulares. Seu projeto gráfico foi elaborado com esmero, em papel de
ótima qualidade. Ao longo de suas páginas nos deparamos com pertinentes e
históricas fotografias, além de enriquecedoras ilustrações, de Iri Santiago. Portanto,
além de seu valioso conteúdo, o livro é uma verdadeira obra de arte; vale
dizer, é um objeto artístico em si mesmo. Esta segunda edição foi patrocinada
pelo Instituto Amostragem, cujo proprietário é o professor universitário e
estatístico João Batista Mendes Teles, que foi colaborador assíduo do jornal
Inovação, para o qual elaborou importantes pesquisas, em rigorosa metodologia
científica, para detectação e análise de mazelas sociais da cidade de Parnaíba.
Raimundo Souza Lima foi casado com Raimunda Amélia de Moraes
Lima, com quem teve os filhos Maria de Lourdes, Anchieta, Francisco das Chagas,
Paulo Roberto, Rita de Cássia e Raimundo, mais conhecido como Juca Lima. Dentre
eles, conheci o Francisco ou Chico Lima, que na época era um tanto boêmio e
brincalhão, com as suas piadas de circunstância; soube que depois veio a se
tornar pastor de uma igreja evangélica, e se afastou das lides etílicas. O Juca
Lima se tornou um excelente artesão, um verdadeiro mestre de esculturas de
madeira, em que alia a sua admirável criatividade com a sua esmerada técnica,
de lavor sutil e primoroso.
Nasceu o autor na cidade de Parnaíba, em 1911, onde faleceu
em 1976, portanto, aos 65 anos de idade. Consequentemente, foi contemporâneo do
apogeu e decadência da exploração da maniçoba e de nosso extrativismo do tucum,
do óleo de coco babaçu e da cera de carnaúba, em que nossa cidade alcançou o
seu fastígio e fausto, com a construção de esplêndidos solares, palacetes e
sobrados. Nessa época, a cidade sediava as maiores empresas do Piauí, entre as
quais cito: Moraes S. A., Casa Inglesa, Casa Marc Jacob, Pedro Machado, Poncion
Rodrigues, que depois entraram em declínio. Em Campo Maior e em Parnaíba,
conheci todas em plena atividade.
Em seus relatos e episódios, extraídos de sua memória, como
ele próprio o diz, o autor se reporta a essa época de muita movimentação comercial
no Porto Salgado e no entorno do Porto das Barcas, com o trabalho e burburinho
de embarcadiços, carregadores, comerciários, comerciantes e compradores. Nas
imediações, ficavam os prostíbulos da Munguba e da Quarenta. Em meu romance Histórias
de Évora (cidade fictícia, misto de Parnaíba e Campo Maior) tentei sintetizar
essa azáfama:
“As calçadas desses armazéns eram lisas, impregnadas pelo pó
que ia aos poucos se desprendendo dessas ceras, e eram alisadas pelo pisotear
constante dos transeuntes, que vinham fazer suas compras ou exercer suas
atividades laborais no centro comercial. Eram figuras emblemáticas os
carregadores, de forte compleição, que carregavam grandes sacas desses produtos
sobre a cabeça, protegida apenas por uma rodilha de pano, e os porcos d’água,
que atuavam no porto improvisado do Paraguaçu, com os seus pequenos trapiches,
toscos depósitos e acanhado guindaste.”
O guindaste, movido a vapor, um dia encrencou, numa manobra
arriscada; caiu sobre seu proprietário e o matou. A maria fumaça, vinda da
estação, seguia pelo meio da Rua Grande até esbarrar na beira do cais.
O autor presenciou esse grande tráfego de rebocadores,
alvarengas, vapores, barcos do tipo gaiola, chalanas, canoas e balsas de talo
de buriti, no Porto Salgado e no Porto das Barcas, ainda menino, quando ia
lavar o cavalo de seu pai no Igaraçu, e aproveitava para fazer suas traquinagens,
como nadar, dar tainhas e cangapés. Viu, certamente, as embarcações da Lloyd
Brasileiro e da Booth Line, e os hidroaviões da Condor, que pousavam no
Igaraçu. Nessa fase de sua existência foi vendedor de bolos de goma, produzidos
por sua mãe.
Adulto, pôde presenciar com mais acuidade esse movimento
comercial, quando exerceu suas funções de operário, ferroviário, comerciário,
contabilista e despachante. Como autodidata, adquiriu certa erudição e aprendeu
a falar a língua inglesa. Assim, conseguiu ser jornalista e tradutor de cartas
comerciais. Certamente, sendo Parnaíba ainda uma cidade pequena, deve ter
conhecido os professores, jornalistas, intelectuais, poetas e escritores desse
tempo, entre os quais citaria Benedito dos Santos Lima, o Bembém, R. Petit,
Alarico da Cunha e o célebre professor Amstein.
Reza a “lenda urbana” que Bembém lhe teria pedido um artigo
sobre Jesus Cristo, ao que o nosso autor, em evidente blague, lhe teria
perguntado: contra ou a favor? R. Petit, magnífico poeta, ao contrair lepra,
com medo de uma espécie de “prisão para tratamento” no leprosário, por sugestão
do alcaide da época, deixou Parnaíba para sempre, em 1944, esgueirando-se pelas
sombras e silêncio de certa madrugada melancólica. Alarico, que tirava o chapéu
para os espíritos que só ele via, e Amstein, mítico e mistificador, se tornaram
mitos em meus PoeMitos da Parnaíba.
O autor não alcançou sua cidade se tornar uma nova fênix,
quando Parnaíba se reinventou, através da prestação de serviços, sobretudo no
setor da Educação e da Saúde, do empreendedorismo turístico e da instalação de
novas e opulentas empresas comerciais, no setor de varejo e atacado, com inúmeras
pessoas de municípios da região norte do Piauí, do Ceará e do Maranhão vindo se
abastecer ou buscar prestação de serviços em nosso município.
Raimundo Souza Lima tinha o que contar e sabia contar, em boa
linguagem, em estilo fluente, escorreito, conciso, claro e objetivo. Soube
contar seus “causos”, soube relatar seus episódios, alguns jocosos ou
anedóticos, soube narrar as peripécias de sua vida e do que viu, soube traçar o
retrato e o panorama de uma época, de suas figuras miúdas, simples, populares e
folclóricas, com engenhosa arte.
No belo poema que serve de epígrafe ao livro e que tem o seu
título, o poeta Alcenor Candeira Filho pergunta: “homens e mulheres da beira
rio beira vida / sousalimamente falando / cadê os Vareiros do Rio Parnaíba?”
Respondo: ficaram encantados e redivivos nas páginas imortais
do livro de Souza Lima.
(*) Palestra proferida no dia 04/05/2024, na Academia
Piauiense de Letras, na solenidade em que foram lançadas as obras Almanaque da
Parnaíba, edição comemorativa do Centenário do periódico e dos 40 anos de
fundação da Academia Parnaibana de Letras, O que fazer com o militar –
anotações para uma nova defesa nacional, de Manuel Domingos Neto, e Vareiros do
Rio Parnaíba & outras histórias, de Raimundo Souza Lima. Foram seus
apresentadores: José Luiz de Carvalho, presidente da APAL, Elmar Carvalho e Felipe
Mendes. Também falaram Manuel Domingos Neto e João Batista Mendes Teles,
proprietário do Instituto Amostragem, editor de Vareiros (...).
Excelente, este resgate da obra de Siuza Lima.
ResponderExcluirMuito obrigado, irmão Francisco Almeida.
ExcluirLinda história de Parnaíba de Raimundo Souza Lima.
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