quinta-feira, 30 de outubro de 2025

DISCURSO DE LANÇAMENTO DE DIÁRIO INCONTÍNUO




DISCURSO DE LANÇAMENTO DE DIÁRIO INCONTÍNUO                              

Elmar Carvalho


Fui inoculado pelo vício da leitura aos nove ou dez anos de idade, quando, por um curto período, fomos morar numa zona rural de Campo Maior. Acostumado à movimentação e às diversões da cidade, fui acometido de forte tristeza. Voltei-me, então, para os livros da pequena biblioteca de meu pai, que depois, em suas viagens semanais ou quinzenais à cidade, me trazia outros volumes — tanto da biblioteca do Grupo Escolar Valdivino Tito quanto da de minha madrinha Mirozinha, prima legítima de minha mãe, que lecionava nesse colégio.

Em face dessas leituras, contraí a “vocação” de um dia ser escritor. Logo comecei a escrever pequenos textos em verso e em prosa, sobretudo crônicas e contos. Aos dezesseis anos, a pedido de meu pai, que mantinha boas relações com os diretores do jornal A Luta, de Campo Maior, tive algumas crônicas e contos publicados nesse periódico.

Entre as minhas leituras favoritas estavam obras de poesia e de ficção, inicialmente os textos que se encontravam nas antologias escolares de meu pai. Na pequena biblioteca paterna havia romances, contos e até mesmo um livro sobre a história da literatura brasileira. E havia o então célebre romance O Mártir do Gólgota, de Pérez Escrich, que narrava a vida de Jesus, baseada nos Evangelhos e na tradição — e, creio, também em evangelhos apócrifos.

Quando bem criança, consta que rasguei algumas páginas desse romance, de modo que, na época em que o li, parcialmente, ficava ansioso e triste por perder a sequência das histórias narradas. Papai tentou consegui-lo novamente, para que eu o lesse na íntegra, mas sem sucesso. Somente em plena maturidade consegui comprar um exemplar usado.

Embora tivesse interesse por vários temas, como história e ciência, ainda jovem senti que algum dia escreveria textos memorialísticos. Assim, para me adestrar nessa seara, passei a ler obras como diários, memórias, autobiografias e até mesmo autoficções — memórias fictícias e “quase memórias”.

Dessa forma, li, entre outros: Humberto de Campos, Pablo Neruda, Josué Montello, Pedro Nava, Gilberto Freyre, Sebastião Nery, Saulo Ramos, José Sarney, Jorge Amado e Gabriel García Márquez. Entre os piauienses, li Leônidas de Castro Melo, Carlos Augusto Monteiro e Higino Cunha.

Degustei Memórias, que considero um dos melhores livros no gênero, na segunda metade da década de 1970, por empréstimo de Alcenor Candeira Filho. No final dessa década, ou início da seguinte, visitei o professor, jornalista e escritor Antonio Gallas Pimentel e lhe disse que desejava reler o livro, mas não o encontrava à venda. Ele me mostrou uma coleção das obras quase completas de Humberto de Campos — bem impressa, em capa dura — e, generosamente, quis me ofertá-la. Relutei, alegando que era um presente de considerável valor, mas ele respondeu que, se eu não aceitasse, daria a outro. Não tive mais como recusar. Essa amizade me fora recomendada pelo professor Joaquim Furtado de Carvalho, primo de meu pai.

Três décadas depois, perto da Banca do Louro, encontrei o engenheiro e auditor-fiscal do Trabalho Paulo César Lima com um belo exemplar de Memórias e Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos, autografado pelo desembargador maranhense Lourival Serejo. Pedi-lhe para folhear; ao devolvê-lo, ele insistiu que eu ficasse com o exemplar, dizendo que me seria mais útil. Um ano depois, em 15/10/2011, o Fonseca Neto me presenteou com os dois volumes do Diário Secreto, do mesmo autor, publicado pelo Instituto Geia em 2010.

Nos gêneros da autoficção, das memórias fictícias e das “quase memórias”, tive o prazer de ler Fontes Ibiapina, Condessa de Ségur, Carlos Heitor Cony, Alberto da Costa e Silva, Machado de Assis, Syrie James (Os Diários Secretos de Charlotte Brontë) e Manuel Antônio de Almeida. Entre as obras de ficção de alguns desses autores estão Memórias de um Sargento de Milícias, Memórias de um Burro, Memórias de um Canário e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Com essas e outras leituras, além do estudo de teoria e crítica literárias, julguei-me preparado para escrever o meu Diário Incontínuo e o romance Histórias de Évora. Este último é uma obra de ficção, embora muitos leitores me perguntem se não existem passagens autobiográficas. É claro que sim — afinal, ninguém cria do nada. Acredito que nem mesmo Deus cria do nada, já que Ele é tudo, e tudo cria a partir apenas de Sua vontade.

O escritor, crítico literário e professor Cunha e Silva Filho, com sua reconhecida argúcia e faro quase detetivesco, ainda no início da publicação sequenciada e virtual do livro, percebeu e aplaudiu a diversidade temática e de interesses do Diário, inclusive quanto às artes plásticas. Postou, em 13/02/2010, o seguinte comentário:

“Por isso, gostei do seu comentário, revelador de um amplo interesse pelas artes em geral e, no caso específico, pela escultura e suas implicações com movimentos de vanguarda que deixaram marcas indeléveis nas múltiplas formas de criação artística. Sei também quanto aprecia a pintura — um Dalí, por exemplo. Não é verdade, amigo? Explore bem esse lado de crítica das artes; lhe cabe bem. Boa surpresa do seu intelecto.”

O Diário Incontínuo, apesar do título, é uma sequência de crônicas memorialísticas que escrevi de 17/01/2010 a 25/02/2016. Portanto, em grande esforço de disciplina e constância, produzi esses textos durante pouco mais de seis anos. Nos primeiros meses, escrevia três por semana; depois, reduzi para duas e, mais adiante, apenas uma.

Vejamos o que disse Carlos Evandro Martins Eulálio sobre o livro, em seu “luxuoso” e pertinente prefácio:

“As crônicas do Diário Incontínuo, marcadas pelo profundo exercício da memória, ocuparão um lugar de destaque na produção literária de Elmar Carvalho. Autor de uma obra em construção, como ele próprio insiste em afirmar, agora, como cronista de refinada sensibilidade de poeta, desvenda o texto como espaço de reflexão com discreto toque de ironia e acentuado requinte de bom humor, a partir de suas vivências e percepções acumuladas ao longo do tempo.”

Não quis, em meu livro, misturar verdade e invenção, realidade e ficção. Porfiei em dizer a verdade — ou, pelo menos, a verdade possível, porquanto, algumas vezes, incorporamos como memórias próprias fatos de que apenas ouvimos falar. São as chamadas falsas memórias. Entretanto, certas omissões são inevitáveis, tanto para não ferir os outros quanto a nós mesmos. A memória é seletiva — e um diário não comporta tudo.

O estopim para esses textos podia ser uma simples conversa, uma leitura, um sonho, uma lembrança insólita e imprevista ou um insight.

Para não me repetir, transcrevo o que escrevi em minha apresentação:

“Dessa forma, ao longo de seis anos (2010–2016), transpus para estas páginas muito da vida cultural, artística, literária e social do Piauí, motivado, como disse acima, por diferentes fatores. Narrei eventos artísticos e culturais, mormente os literários; comentei alguns livros lançados nesse período; referi-me a personalidades literárias e históricas, algumas ainda vivas, outras pertencentes a um passado mais remoto. Sem dúvida, alguns desses registros são quase resenhas de obras literárias e breves perfis biográficos, embora recheados de outros ingredientes e condimentos.

(...)

Em resumo, embora mantendo, assim espero, o formato de um diário, na realidade o que fiz mesmo foi uma sequência de crônicas, escritas durante esses seis anos, de diferentes tamanhos e conteúdos, referindo-se a tempos atuais e a tempos remotos, idos e vividos.

Algumas poderiam ser consideradas memorialísticas, confessionais, narrativas, contos, “causos”, críticas, breves ensaios, comentários, depoimentos, sonhos, devaneios ou simples relatos de fatos recentes ou antigos, alguns históricos.

Contudo, nenhuma poderia ser rotulada de ficção.” 

(*) Reconstituição de meu discurso, pronunciado a partir de roteiro mnemônico, no auditório da Academia Piauiense de Letras, em 25 de outubro de 2025.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

APRESENTAÇÃO DE O NÁUFRAGO, de Edilson Sousa Jr.

José Luiz de Carvalho, Edilson Sousa Jr., Elmar Carvalho, Claucio Ciarlini e Antonio Gallas


APRESENTAÇÃO DE O NÁUFRAGO, de Edilson Sousa Jr.


Elmar Carvalho

 

“Venho de longe a contornar a esmo, / O cabo das Tormentas de mim mesmo.” (Paulo Bomfim)

 

Sim, senhores, com esses versos de Paulo Bomfim quero lhes dizer que venho dos confins do início da segunda metade do século passado e já estou a contornar o cabo Bojador do primeiro quartel deste século XXI.

Conheci o autor, Edilson Sousa Júnior — médico, professor e educador exemplar —, graças à mediação do jornalista e escritor Zózimo Tavares. Edilson é médico do corpo, mas também da alma, por ser um ser humano acolhedor, bondoso e cordato. É um cidadão cordial, no sentido etimológico da palavra: age com o coração. Como professor universitário (UFPI), procura seguir o adágio mens sana in corpore sano, tanto em relação a seus pacientes quanto a seus alunos.

Recordo aqui uma anedota contada por meu amigo e poeta Alcenor Candeira Filho. Um jovem professor lhe disse, com exultação e certo orgulho, que nos seus primeiros meses de magistério nunca precisara fazer anotações ou esquemas mnemônicos para dar aula. Mestre Alcenor, com sua proverbial franqueza, respondeu que, em suas três décadas de docência, nunca deixará de preparar um roteiro para suas aulas.

Esse episódio me fez lembrar outro fato, presenciado pelo professor e escritor Carlos Evandro Martins Eulálio, que ouviu de uma antiga mestra de Didática Pedagógica o seguinte conselho: “Difícil não é preparar aula, mas dar aula sem preparar.”

Cito essas duas histórias verídicas para dizer que Edilson Sousa Júnior prepara suas aulas, embora seja um professor naturalmente preparado por sua experiência de médico e por seus altos estudos — doutorado e pós-doutorado.

Não quero fazer spoiler, e tampouco há necessidade disso, pois basta ler seu romance. Ele é um narrador competente, que elaborou a trama e as narrativas com clareza, sem ciladas, sem armadilhas e sem complicações sibilinas ou enigmáticas.

Também não desejo repetir o que já disse em meu prefácio. Todavia, julgo importante transcrever os dois trechos seguintes:

“De certo modo, vejo em sua envolvente narrativa — tanto no enredo principal como em muitos de seus entrechos — algumas pitadas do que se costuma rotular como romance histórico e romance-reportagem, porém sobressaindo-se sempre, e com muita ênfase, a imaginação e a criatividade do autor; vale dizer, sua inventividade de ficcionista. Todavia, que fique bem claro: este romance é uma comovente reflexão sobre os naufrágios que se manifestam em diferentes etapas da existência — sejam eles perda material, desilusão de sonhos ou o esmaecimento de uma era.”

“Faz uma verdadeira imersão na história e no cenário da Segunda Guerra Mundial. O naufrágio real do navio é, na verdade, uma metáfora do fator humano — com suas misérias, virtudes e vicissitudes — e da decadência da opulenta cidade de Parnaíba no apogeu do extrativismo econômico, quando essa urbe ergueu imponentes prédios empresariais e magníficos casarões solarengos e majestosos sobrados ou palacetes, que ainda hoje nos encantam, conquanto muitos se encontrem em estado de (quase) ruína.”

O romance tem como pano de fundo o início da decadência do extrativismo econômico, num recorte cronológico que se estende de 1942 a 1952, período em que o protagonista viveu em Parnaíba. Desejo traçar um paralelo entre ficção e realidade, evocando as lembranças que sua leitura me despertou — de leituras, fotografias e do que ainda pude testemunhar. O naufrágio do navio pode também ser lido como metáfora da decadência econômica da velha urbe, que mais tarde ressurgiria, de outro modo, como uma nova fênix nada mitológica.

Na obra há uma bela descrição da velha Amarração, atual Luís Correia, nos anos 1940. Renato Castelo Branco, em Tomei um Ita no Norte, descreve a Parnaíba dessa época, mas não menciona Amarração. Já Humberto de Campos, no capítulo “De novo em Parnaíba”, de Memórias Inacabadas, traça uma linda aquarela dessa povoação marítima, quando retornou de São Luís a Parnaíba por curto período.

Por falar nessa obra memorialística, li Memórias na segunda metade da década de 1970, por empréstimo de Alcenor Candeira Filho. No final dessa década, ou início da seguinte, visitei o professor, jornalista e escritor Antonio Gallas Pimentel e lhe disse que desejava reler o livro, mas não o encontrava à venda. Ele me mostrou uma coleção das obras quase completas de Humberto de Campos — bem impressa, em capa dura — e, generosamente, quis me ofertá-la. Relutei, alegando que era um presente de considerável valor, mas ele respondeu que, se eu não aceitasse, daria a outro. Não tive mais como recusar. Essa amizade me fora recomendada pelo professor Joaquim Furtado de Carvalho, primo de meu pai.

Três décadas depois, perto da Banca do Louro, encontrei o engenheiro e auditor-fiscal do Trabalho Paulo César Lima com um belo exemplar de Memórias e Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos, autografado pelo desembargador maranhense Lourival Serejo. Pedi-lhe para folhear; ao devolvê-lo, ele insistiu que eu ficasse com o exemplar, dizendo que me seria mais útil. Um ano depois, em 15/10/2011, o Fonseca Neto me presenteou com os dois volumes do Diário Secreto, do mesmo autor, publicado pelo Instituto Geia em 2010.

Quando fui morar em Parnaíba, em 1975, muitas das antigas empresas parnaibanas ainda funcionavam, embora algumas já estertorassem. Pertenciam a tradicionais famílias locais — Pedro Machado, Moraes S.A., Moraes Souza, Marc Jacob, Franklin Veras, Poncion Rodrigues e Palácio dos Móveis. A altíssima chaminé da Moraes já não soltava seu penacho de fumaça, e as demais também se extinguiram.

A Casa Inglesa, que pertencera a Paul Robert Singlehurst (o “Paulo Inglês”, de longa e frondosa barba profética), falira, creio, no final da década de 1960. No final do século XIX, passou a ser propriedade de James Frederick Clark, que a expandiu e fez dela a mais importante empresa do Piauí. Com sua morte, filhos e netos assumiram a direção. Em meados da década de 1970, um amigo — sobrinho de uma senhora com acesso à antiga sede — possibilitou-me visitá-la. Pude, então, vislumbrar o que era realmente luxo e opulência.

O “náufrago” do romance chega a Parnaíba em 1942 e hospeda-se na Casa Inglesa, cujos proprietários estavam em viagem. Dali podia observar o movimento de embarcações, vareiros, estivadores, porcos-d’água, embarcadiços, comerciários, comerciantes e aguadeiros. Perto dali, na Quarenta e na Munguba, ficavam os cabarés do chamado baixo meretrício — personagens que Assis Brasil retratou em Beira Rio Beira Vida e Souza Lima em Vareiros do Parnaíba e Outras Histórias. Sobre esta última obra escrevi:

“Em seus relatos e episódios, extraídos da memória — como ele próprio o diz —, o autor se reporta a essa época de intensa movimentação comercial no Porto Salgado e no entorno do Porto das Barcas, com o trabalho e o burburinho de embarcadiços, carregadores, comerciários, comerciantes e compradores. Nas imediações ficavam os prostíbulos da Munguba e da Quarenta.”

Descrevi essa movimentação no Postal III de meu poema 3 Postais de Parnaíba, que recito em homenagem ao amigo Edilson Sousa Júnior:

 

POSTAL III

Hoje o Porto Salgado

 sal’do nominal

 do naufrágio

de uma barcaça de sal

é salamargo na lembrança

dos vareiros e embarcadiços.

E a água do Igaraçu

é uma lágrima de saudade

 (ou sal’dade?)

do fastígio de outrora.

Os parcos barcos são

poemas de chegadas e partidas

e símbolos da decadência.

 

Em 1834, segundo a historiadora Júnia Motta Antonaccio Napoleão do Rego, havia dois estaleiros em Parnaíba para construção de embarcações — sumacas, escunas e brigues — que navegaram o Igaraçu em épocas distintas. Depois vieram rebocadores, alvarengas, canoas, vapores, barcos do tipo gaiola e balsas, que só faziam a viagem de vinda; após o descarregamento, eram desmanchadas para a venda dos talos de buriti.

Na segunda década do século passado começou a luta pela construção da Estrada de Ferro Central do Piauí (EFCP). Poucos quilômetros foram concluídos nos anos de 1915 e 1916. Em 1923 a maria-fumaça chegou a Piracuruca; em 1933, a Piripiri. Embora a estação de Campo Maior date de 1952, o trem só chegou efetivamente em 1966. Em Teresina, apenas no fim da década de 1960 — quando as rodovias já se consolidavam. Nosso trem, pode-se dizer, perdeu o bonde da história; mas isso já é outra história.

O protagonista trabalhou na estação ferroviária, onde conheceu Nestablo Ramos — aviador, pintor, desenhista e empresário, autor de ilustrações para o Almanaque da Parnaíba, fundado em 1924 por Bembém e ainda hoje publicado pela Academia Parnaibana de Letras. Nestablo era amigo de R. Petit, colaborador do anuário desde o primeiro número.

É plausível supor que, em seus deslocamentos, Anton — o protagonista, travestido de Pablo — tenha conhecido intelectuais como Antônio Otávio de Melo, R. Petit, Lívio Pacheco, Francisco Aires, Armando Madeira, Roberto Lopes, Jesus Martins, Benu Cunha, Edison Cunha, José Euclides de Miranda, Alarico da Cunha e Francisca Montenegro. Certamente teria ouvido as estórias do mitômano e mistificador professor Amstein, cujas narrativas lembravam as de Trancoso e do Barão de Münchhausen.

Nestablo, amigo do náufrago, tornou-se uma das grandes admirações de Edilson Sousa Júnior, que planeja escrever-lhe a biografia. Era um verdadeiro polímata, ativo nas artes visuais e musicais, no empreendedorismo e na aviação.

Membro do Aeroclube de Parnaíba, certamente conheceu o aviador Paulo — malabarista do espaço, que realizava loopings, “folhas secas” e voos rasantes, chegando ao cúmulo de passar entre as torres da Catedral de Nossa Senhora das Graças, na Praça da Graça. Por essas ousadias, segundo Tonga (Antônio da Cunha Miranda), ganhou a alcunha de Paulo Doido.

Nestablo nasceu em 27 de março de 1887, em Alcântara (MA), e encantou-se em 30 de julho de 1948, nos céus de Parnaíba, ao desferir seu último voo — vítima de infarto fulminante.

R. Petit (Raimundo de Araújo Chagas), desde o número inaugural, foi o poeta mais emblemático do Almanaque. Recentemente, o escritor e advogado Filadelfo Barreto, seu neto, produziu uma primorosa obra biográfica e crítica — de leitura agradável e atraente, quase um romance.

Aconselhado pelo prefeito de então, também médico, o poeta foi orientado a deixar Parnaíba, por haver contraído lepra (ou hanseníase, como se diz hoje). Caso contrário, seria internado compulsoriamente — à época, uma espécie de prisão perpétua.

Acredita-se que o vate, esgueirando-se pelas sombras e frestas de certa madrugada fria de 1944, tenha deixado sua muito amada Parnaíba para nunca mais retornar.

Em R. Petit: Vida e Poesia, Filadelfo Barreto cita Berilo Neves:

“Parnaíba jamais cometeu o erro de fazer do ouro a razão do seu destino e o fim de sua existência. R. Petit versejava entre dois embarques de cera de carnaúba e, por entre pilhas de fardos de algodão, explorava seu próprio talento.”

Assim, poetas e escritores inspiravam-se e transpiravam; cortejavam as musas e laboravam com afinco.

Tendo o protagonista chegado a Parnaíba em 1942, deve ter tomado conhecimento da construção do Canal de São José — uma arrojada obra do empresariado parnaibano, recentemente concluída. Era um sonho antigo, que visava encurtar a distância para Tutóia e tornar o Igaraçu mais caudaloso, melhorando, assim, a navegabilidade e permitindo o tráfego de embarcações de maior calado.

Consultei o confrade e amigo Felipe Mendes sobre quando o canal teria sido finalizado. O grande economista e professor, de forma diligente e rápida, enviou-me a seguinte transcrição da página 183 da primeira edição do livro Geografia Física do Piauí, de João Gabriel Baptista:

“Para encurtar a distância entre as cidades de Tutóia (MA) e Parnaíba (PI), o governo construiu, entre 1930 e 1940, o Canal de São José, cortando a Ilha Grande de Santa Isabel — canal este que Dodt e Iglesias haviam previsto como necessário. O antigo leito do Igaraçu, a montante do encontro com o São José, está se obstruindo e, em breve, esta parte da ilha estará incorporada ao continente, com uma pequena lagoa ribeirinha.”

Além do esforço dos comerciantes de Parnaíba, consta que o senador Joaquim Pires Ferreira, barrense, conseguiu repassar verbas federais para que essa notável e importante obra pudesse ser concluída.

Não fosse o Canal de São José, creio poder dizer que, hoje, o Igaraçu praticamente já não existiria — como já não existe em muitos trechos a montante de seu encontro com esse canal —, o qual deu perenidade, força e beleza ao velho Igaraçu, no trecho em que ele corta o bairro São José, a Quarenta, a Munguba, o Porto das Barcas e a glamourosa Beira Rio, em demanda do Atlântico e da lírica e bucólica Amarração.

Desse modo, eu poderia dizer que, se o Egito é uma dádiva do rio Nilo, o Igaraçu, tal como o conhecemos hoje, é uma dádiva do Canal de São José, que continua a lhe injetar água, vida, vigor e encanto.

Finalizando minhas palavras, posso afirmar que este romance foi feito com esmero e muita dedicação, posto que seu autor lhe concedeu muitos anos de pesquisa, de labor e de lavor em seu escrito. Sua linguagem é clara e direta, sem preciosismos estilísticos ou gramaticais. As frases são elegantes, fluentes, claras e objetivas, de modo que sua interpretação é quase sempre instantânea.

Médico respeitado, seguiu, na sintaxe e na urdidura da trama e dos entrechos, as melhores lições da precisão cirúrgica: seus períodos são precisos e concisos, com cortes e arremates aplicados no local exato, com suturas perfeitas, que terminam por lhe dar elegância e beleza.

(*) Reconstituição de meu discurso, pronunciado a partir de roteiro mnemônico, no auditório Testa Branca da Academia Parnaibana de Letras, em 17 de outubro de 2025.   

domingo, 26 de outubro de 2025

INSÔNIA

Criação: GPT


INSÔNIA


Elmar Carvalho

 

No silêncio abissal

da noite estagnada

a engrenagem pesada

do tempo se desenrola

e desaba sobre mim.

 

As botas cadenciadas

das horas marcham

– lentas lesmas –

marcham infinitamente

na noite sem fim...

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Discurso de Lançamento – Academia Parnaibana de Letra

José Luiz de Carvalho, Edilson Sousa Jr., Elmar Carvalho, Claucio Ciarlini e Antonio Gallas



 

Discurso de Lançamento – Academia Parnaibana de Letra

 

Discurso de lançamento do romance O NÁUFRAGO do SS Eugene Thayer – Parnaíba 1942 –, pronunciado pelo autor, o médico Edilson Sousa Junior, em solenidade da Academia Parnaibana de Letras, ocorrida no dia 17/10/2025. O auditório Testa Branca estava lotado, com a presença de familiares, amigos e admiradores do escritor, que é professor da UFPI e acaba de concluir o seu pós-doutorado.

 

Excelentíssimos membros da Academia Parnaibana de Letras, ilustres convidados, amigos, familiares e conterrâneos parnaibanos, é com profunda emoção que me dirijo a todos nesta Casa que é, mais do que uma instituição, um símbolo vivo da inteligência e da memória cultural de Parnaíba. A Academia, carinhosamente reconhecida como a Casa de João Cândido, abriga o espírito dos que, com a força da palavra e da sensibilidade, edificaram o pensamento literário e histórico da nossa cidade. Cada cadeira aqui representa um legado de resistência, de arte e de amor à terra, transmitido de geração em geração. Estar entre vocês é, portanto, mais que uma honra: é um reencontro com as raízes profundas da nossa identidade parnaibana, com a chama intelectual que continua a iluminar este Delta e a inspirar os que acreditam no poder transformador da cultura.

É com imensa emoção que retorno à minha terra natal (40 anos depois) , a querida Parnaíba. Como as tartarugas marinhas que, após longas travessias pelos oceanos, regressam à mesma praia onde nasceram para perpetuar a vida, também eu retorno agora ao berço que me formou, trazendo comigo uma desova simbólica: o fruto de anos de pesquisa, de escrita e de amadurecimento – o livro O Náufrago do SS Eugene Thayer – Parnaíba 1942.

Este momento representa não apenas a culminação de uma jornada literária, mas também um tributo à nossa terra, à sua história rica e aos fios invisíveis que tecem o destino de uma cidade e de seu povo. Permito-me, nesta ocasião, compartilhar com vocês os pilares que sustentam esta obra, exaltando o que me moveu a escrevê-la e as lições profundas que dela extraí.

 

 Motivação e Descobertas

 “Uma vida não examinada não merece ser vivida.” — Sócrates

O impulso que deu origem a este livro nasceu do meu desejo de compreender os mistérios da nossa Parnaíba. Como filho desta terra, sempre me intriguei com o fato de que, no início do século XX, nossa cidade era o maior entreposto comercial do Nordeste do Brasil — um porto efervescente, por onde navios de várias bandeiras escoavam a riqueza do nosso povo: carnaúba, babaçu e tantos outros produtos.

Mas, com o tempo, essa força se dissipou, como ondas que se afastam da praia. O que aconteceu? Por que perdemos essa posição privilegiada?

Foi essa interrogação que me impulsionou a mergulhar em arquivos, relatos orais e memórias esquecidas.

Neste livro, por meio da história fictícia — mas enraizada em fatos reais —do náufrago alemão Anton, sobrevivente do torpedeamento do petroleiro americano *SS Eugene Thayer* na costa do nordeste em 1942, busco compreender o declínio de um entreposto em meio às tensões globais da guerra e às transformações econômicas. Durante a pesquisa, redescobri fatos e pessoas até então desconhecida para mim e para muitos parnaibanos, como a presença espiritual de Nossa Senhora de Montserrat e a genialidade de Nestablo Ramos, polímata cuja memória ilumina a cultura parnaibana.

Ao longo dessa jornada, outras descobertas igualmente significativas emergiram — personagens, documentos e símbolos esquecidos que, reunidos, ajudam a reconstruir a tessitura histórica e espiritual de Parnaíba. Cada achado revelou-se uma peça essencial desse mosaico, e muitos deles estão detalhadamente apresentados neste livro, que busca não apenas registrar fatos, mas também despertar um sentimento de pertencimento e reverência à nossa herança cultural.

 

Transformação Pessoal

 

A criação desta obra foi uma travessia de treze anos — um período de profundas transformações. Nesse tempo, não apenas reuni fatos e documentos, mas vivi uma verdadeira odisseia humana. Conheci pessoas generosas( em saudosa memória: JOÃO RENOR FERREIRA DE CARVALHO, DIDEROT MAVIGNIER),  ouvi histórias que me tocaram e percebi que escrever sobre Parnaíba era, na verdade, escrever sobre mim mesmo. Assim como o náufrago Anton se reinventa em terras estranhas, também eu me reinventei ao redescobrir as raízes de minha origem. Este livro não apenas narra a história de uma cidade: ele registra minha própria reconciliação com o passado e minha celebração do presente.

Essa longa jornada revelou-se, de certa forma, um caminho de aprendizado interior. Descobri que o percurso da criação não é linear, mas feito de fluxos e pausas, encontros e desvios, todos com um sentido próprio. Caminhei, influenciei e fui influenciado por pessoas que cruzaram minha trajetória — mestres, amigos, leitores e anônimos que ajudaram a moldar minha visão de mundo e de mim mesmo. Entre arquivos empoeirados, silêncios fecundos e conversas transformadoras, aprendi que escrever é também desapegar — deixar que as palavras encontrem seu próprio destino. Ao final, não me vejo como um escritor pronto, mas como um aprendiz, alguém que segue o movimento da vida, aberto ao que ainda virá.

 

Gratidão e Homenagens

 

Nada disso seria possível sem o apoio e o amor da minha família, que compreendeu minhas ausências e partilhou meus sonhos.

Sou grato aos mestres que me guiaram em cada etapa da vida acadêmica — mestrado, doutorado e pós-doutorado — e, de modo especial, à minha primeira professora, Rosângela, que plantou em mim a semente do amor pelo conhecimento.

Professora Rosângela, sua influência perdura em cada página deste livro — obrigado por ser o farol inicial dessa jornada.

Que O Náufrago do SS Eugene Thayer inspire todos nós a refletir sobre o passado, valorizar o presente e sonhar com o futuro da nossa Parnaíba.

Assim como as tartarugas que voltam à praia onde nasceram, que possamos sempre retornar às nossas origens — não apenas para lembrar, mas para semear.

 

Muito obrigado pela presença de todos

 

Edilson Carvalho de Sousa Junior

domingo, 19 de outubro de 2025

ROMPIMENTO

Criação: IA Gemini


ROMPIMENTO (*)


Elmar Carvalho

 

Dedo em riste,

muito feroz e muito triste,

o homem, grosso e imundo, falou:

– Lembra-te, tu já lambeste meu cu!

A mulher, com gestos abstratos

feitos do mais singelo recato,

elegante e delicada, retrucou:

– Lambi, mas não lambo mais ...

O homem quedou-se transformado

em pesada estátua de pedra e dor.

A mulher se foi

          –  leve e evanescente –

anjo que se libertou. 

(*) Essa história teria acontecido com um coronel da carnaúba, nos áureos tempos do extrativismo econômico parnaibano. 

terça-feira, 14 de outubro de 2025

3 Poemas de JOAMES


Quando leio Elmar Carvalho 
Vejo novos horizontes,
Nuvens brancas assomando
Por trás da crista dos montes
E as águas murmurando
Fluentemente brotando
Da profundeza das fontes.
(Joames).


Sou meio desconfiado
Vendo um defunto partir
Num caixão ao cemitério, 
Não desejo nem carpir,
Porque já vi cidadão 
Pular fora do caixão, 
Se arrepender e não ir.
(Joames).   

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Crônica/missiva de Marcondes Araújo

 

Criação: AI Gemini

Estimado camarada Elmar,

Amigo, li atentamente sua crônica intitulada “Tempos republicanos” e me fez lembrar alguns momentos e outras sentimentalidades. Nunca morei em república, mas meu irmão Chico Wilson, morou numa em São João dos Patos, no Maranhão, quando foi assumir o cargo de bancário do BB nos anos 70. Portanto, quando eu ia de férias visita-lo ficava hospedado em uma república aos moldes talhados por você no seu texto.

Ainda sobre seu texto, creio que o cidadão Carlos a que você se refere deve ser o mesmo que foi meu colega de tralhado na Secrel. Tratava-se de um cidadão alto, claro e usava óculos, porém com mais destaque sobre sua postura proativa de se determinar aos afazeres profissionais. Salvo melhor juízo ele era contador e abdicou do emprego na Secrel para laborar por conta própria.

Sobre a Da. Mariema e o tenente Jaime da Paz, genitores do seu ex-colega de república, Jaime Filho, lembro desse casal visitando minha sogra, Maria Carmelita Sousa do Monte, aqui na cidade de Altos. A Da. Mariema, por coincidência dos fatos, foi colega de pensão da minha sogra, num casarão comandado por Da. Justina Ferreira, nos anos 60-70, cujo prédio situava-se na Rua Paissandu, frontal ao antigo Hotel Teresina e próximo do antigo quartel da Polícia Militar, na gregária Praça Pedro II, em Teresina.

Também passei a me situar melhor com esse texto, pois me lembro do seu poema “A Casa no Tempo”, um dos primeiros poemas de sua lavra que pude ler e meditar. Crio que até fiz um comentário sobre ele no seu blog. Agora, com mais descrições, me situo com mais precisão sobre suas intenções e a atmosfera de seu entusiasmo ao escrevê-lo.

Porém, queria me referir que ainda neste mês de setembro último recebi em minha chácara aqui em Altos, o amigo Adolfo Ferreira, casado com uma prima de minha esposa, chamada Fernanda, filha do saudoso contador Hugo Melo. Ele é policial civil e cidadão pacato, sereno e de boas conversas. É que ele morou na antiga Casa do Estudante, em Teresina, cujo casarão encravava-se próximo à antiga Penitenciária, a qual foi demolida para construção do ginásio de Esportes Verdão.

Em nosso diálogo tive a curiosidade de indagar justamente como funcionava aquela Casa do Estudante. Ele fez um relato curioso e instigante para uma boa pesquisa. Narrou sobre várias personalidades que vieram do interior do Piauí e do Maranhão e que, em vida estudantil, se hospedaram e moraram naquele recinto. Foram inúmeros e variados os destaques que “venceram na vida” e eram egressos daquela saudosa república de estudantes. Segundo ele, alguns desses destaques foram: Professor Cineas Santos, atual vice-reitor da UFPI, Nouga Cardoso ex-reitor da UESPI, atual superintendente da CEF, médicos, professores, etc.

Sem buscar qualquer destaque em cargos relevantes ou de status social, entendi o quanto aquele prédio abrigou de gente que se destacou posteriormente em vários cenários da vida produtiva do Piauí ou se tornaram pacíficos citadinos que contribuíram para a vida útil da nossa região.

Acertei com o Adolfo que voltaremos a nos encontrar para debater mais sobre esse período, sobre os mecanismos de seleção dos estudantes, sobre a vida cotidiana dos estudantes e a respeito do desfecho profissional da maioria, entre outras coisas. Talvez buscando informações (entrevistas) com outros remanescentes daquele período, fosse útil reacender e fustigar a curiosidade histórica daquele albergue de estudantes, hoje enterrado na memória da cidade de Teresina.

Quiçá, muitos dentre eles, igualmente a você, possam trazer episódios de grande importância histórica e, quem sabe, também possam suscitar “nas músicas passionais de algum boteco / criando ressonâncias que repercutem / insistentemente como eco”.

domingo, 12 de outubro de 2025

ETERNO RETORNO

Criação: AI Gemini

 

ETERNO RETORNO


Elmar Carvalho

 

memória:

lâmina de desassossego

cornucópia insana insaciável

a jorrar o passado

que não morre nunca

sempre ressuscitado

no eterno regresso

a nós mesmos.

 

ó emoções redivivas

e ampliadas

das sensações

de nervos expostos

nas carnes pulsantes

de um passado

sempre lembrado.

 

recordações

que dão e são vida

de becos escuros, sem saída

de amores

            hoje boleros

                     bolores em flores

de ilusões perdidas

que se fazem dores

na florida ferida da saudade.

 

evocações

de dribles esquecidos

de gols frustrados e acontecidos

de um jogo que nunca termina

de uma malsinada sina sinuosa

de lágrimas caudalosas

incontidas, vertidas

das vertentes profundas

do peito – porto

sem tino e sem destino

feito somente de desatino.

 

as mulheres amadas

na juventude fugaz

            não envelhecem

            não se corrompem

            não morrem jamais

preservadas intactas e belas

na câmara ardente

incandescente da memória.

 

recordações de fantasmas

que já nos abandonaram

de amigos mortos

que nos acompanham

cada vez mais vivos

de sustos e gritos

de proscritos e malditos

de agouros e assombrações

de desdouros e sombras vãs, malsãs,

oriundos dos porões escavados

nos subterrâneos dos sobrados

       subterfúgios e refúgios

da memória.

 

O passado poderoso e renitente

retorna e continua vívido e presente

se contorcendo se retorcendo

       e se reacontecendo.

               Teresina, 23.12.94

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

TEMPOS REPUBLICANOS

Criação: IA ChatGPT

Criação: AI Gemini


TEMPOS REPUBLICANOS


Elmar Carvalho

 

Nesta temporada de final de ano, em Parnaíba, estive com os meus compadres Gelvan e Neide. Ela é filha do sr. Anísio, que foi comerciante e vereador. Ocupa chefia importante da Caixa Econômica Federal na Paraíba,  na qual ingressou através de concurso público. É minha conhecida desde os tempos em que residi em Parnaíba. Conheci o Gelvan em 1983, quando ele, na qualidade de administrador postal da ECT, recém-formado pela ESAP, foi lotado na diretoria regional da empresa no Piauí. Era natural de Paulo Afonso, Bahia. Moramos na mesma casa. Era uma república, mas república séria, de muito respeito, e não uma república de estudantes boêmios e gazeteiros, nem tampouco uma republiqueta de bananas da América Latina.

 

Quando assumi meu cargo de fiscal da SUNAB, em Teresina, no dia 10.08.1982, fui inicialmente morar no hotel da dona Maru, instalado num antigo palacete da avenida Frei Serafim, perto da igreja de São Benedito. No mesmo apartamento, morei com o conterrâneo e amigo Jaime Filho, rebento da professora Mariema e do tenente Jaime da Paz, probo e dinâmico ex-prefeito de Campo Maior. Em menos de dois meses fui convidado pelo Carlos Cardoso, velho amigo da adolescência e também conterrâneo, para morar na república da qual ele era membro proeminente.

 

Explicou-me as regras, os direitos e deveres da confraria. Disse-me que a casa ficava situada na avenida Jockey Club, onde hoje funciona um colégio. Imediatamente aceitei o convite e tratei de me mudar. Moravam na república dois administradores postais, o Umberto Nadal, paranaense, e o Robério Maia de Oliveira, cearense, o Antônio Maria, comerciante, e o Carlos, contador, um dos chefes da empresa SECREL, sediada em Fortaleza. Portanto, éramos cinco republicanos.

 

A casa dispunha de uma boa piscina. Em quase todos os domingos havia comilança e libações. Participei de poucas festas, uma vez que nessa época costumava, pelo menos duas vezes por mês, passar o final de semana em Parnaíba, porquanto meus pais e minha namorada, hoje minha mulher, ali residiam. Tomei conhecimento de que um frequentador desses churrascos se tornou demasiadamente assíduo, dando-se ao luxo de ainda trazer vários convidados, mas sem nada trazer em contrapartida, nem mesmo refrigerantes, quanto mais bebida e mantimentos de boca.

 

Diante dessa “esperteza” os colegas republicanos resolveram adotar uma estratégia contra esse abuso. Certo dia, quando o espertinho chegou com os seus convidados, encontrou o fogo apagado. Dois membros da república o convidaram a ir até um supermercado, onde compraram os suprimentos líquidos e comestíveis, e o “intimaram” a pagar a conta. Foi a última vez que esse mui amigo apareceu na república.

 

Nessa casa escrevi o meu poema Egocentrismo, que nasceu de um insight, já pronto e acabado. Eu acabara de acordar, quando, ao ficar sentado na rede, espirrei numa réstia que iluminava a escuridão do quarto. As gotículas do espirro, viróticas ou não, fizeram surgir um pequeno arco-íris. Instantaneamente o poeminha foi escrito em minha mente, com os seus versos que falam em arco-íris, em arco-do-triunfo, em velocino dourado e em coroas de louro e de ouro. Sou muito grato a esse espirro, que funcionou como uma musa ou como inspirado e inspirador lampejo.

 

Dessa residência, nos mudamos para uma outra, na rua Rui Barbosa, situada no início da ladeira, após a qual começa a avenida Barão de Gurgueia. Nesse período, já nos haviam deixado o Antônio Maria e o Carlos; este havia adquirido uma casa, e já se preparava para se casar. O Robério, hoje juiz do trabalho, casou-se e foi morar em casa própria. Em seu lugar entrou o Gelvan. Foi uma turma boa, composta por pessoas responsáveis e cumpridoras de suas obrigações. Como o dono dessa casa tenha precisado dela, para fazer um depósito de sua empresa, fomos morar em outra, localizada na rua Areolino de Abreu, perto da Caixa Econômica.

 

Era um casarão antigo, meio fantasmagórico, onde antigo morador, um engenheiro, havia suicidado. Numa das portas, fora escrito um belo, porém elegíaco, melancólico poema da autoria de meu amigo Hardi Filho, em que a tinta parecia escorrer, como gotas de sangue. Nesse vetusto solar, de história trágica, escrevi o meu poema A Casa no Tempo, infestada de esgarçantes rasga-mortalhas, de esvoaçantes e lúgubres morcegos, de almas penadas, de correntes arrastadas, de gemidos e ruídos misteriosos.

 

Nessa casa, hoje demolida, a república foi extinta, em virtude de casórios e do retorno do Nadal ao Paraná, sua terra natal. Mas, em minha saudade, a casa com a república, como digo no meu poema, “... sempre persistirá / nas músicas passionais de algum boteco / criando ressonâncias que repercutem / insistentemente como eco”. 

04/01/2011 

domingo, 5 de outubro de 2025

AUTOAPRESENTAÇÃO

 

Criação: IA Gemini

AUTOAPRESENTAÇÃO


Elmar Carvalho

 

eis como sou

            neste instante único

            (após o qual já

            serei um outro):

 

um homem que rema

            no seco contra

            a corrente das águas

 

um homem que usa

            a gravata como

            se fora um baraço

            nas horas de opressão

 

um homem que escreve

            torto por

            linhas certas

 

um homem que sobe

            e teima contra

            a lei da gravidade

 

            eu sou aquele

que aprendeu

a pecar para

ter a humildade

de não ter uma

virtude

 

            eu sou aquele

que jogou roleta

russa com o tambor

cheio de balas e

apostou contra a

sorte

           

           eu sou aquele

            que lutou para

            não ser

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

HISTÓRIA & ESTÓRIA



HISTÓRIA & ESTÓRIA


Elmar Carvalho

 

Estive conversando com o historiador e empresário Vicente Miranda. É quase um sósia de seu parente, o cantor e compositor Belchior, que andou sumido por um bom tempo, ao que parece embebido em meditações e reflexões místicas e artísticas nas altitudes dos Andes. Vicente empreendeu um rigoroso trabalho de pesquisa sobre a história de sua família, de que resultou um notável livro de várias dezenas de páginas.

 

Foi um empreendimento que lhe custou muito tempo, esforço, dedicação, despesas e uma disciplina verdadeiramente espartana. Isso porque as fontes estavam espalhadas em diferentes municípios do Piauí e do Ceará. Tendo o nosso estado sido vinculado, em diferentes épocas, administrativa, eclesiasticamente e/ou judicialmente ao Maranhão, Ceará, Pernambuco e Bahia, alguns documentos e outras fontes de pesquisas somente poderão ser encontrados nessas unidades federadas.

 

No seu entendimento, as fontes são muitas, o que falta é ânimo ou condições outras de o pesquisador realizar o seu trabalho. É sabido que historiadores da estirpe de Odilon Nunes e monsenhor Chaves gastaram muito de seu tempo em paciente trabalho de pesquisa em arquivo público, para que pudessem trazer novidades à História do Piauí, bem como para desfazer equívocos e dirimir dúvidas. Isso exige disciplina, dedicação, esforço, paciência e tempo.

 

Mesmo em casos polêmicos, como o da datação da igreja do povoado Frecheira da Lama, no município de Cocal, Vicente Miranda não faz a sua interpretação de forma apaixonada, baseada apenas no subjetivismo do desejo pessoal, mas analisa o contexto histórico da região e da época, além de fazer o cotejo com documentos correlatos ou afins, para elaborar a sua tese, com o uso da lógica e do bom-senso, e não no afã de descobrir supostos pioneirismos. Busca a verdade, e não o ufanismo “patriótico”, que chega ao ponto de distorcer a verdade ou de fabricar forçadas e esdrúxulas interpretações, sem respaldo em provas consistentes, irrefutáveis.

 

Para escapar ao cansativo, silencioso e solitário trabalho de pesquisa, muitos pretensos historiadores fazem apenas uma obra de divulgação; escrevem livros que apenas repetem o que os grandes pesquisadores e historiadores já escreveram. Ou seja, apenas chovem no molhado, apenas pisam no já repisado. Não lhes tiro o mérito da divulgação; apenas digo que nada estão criando, que não trazem novidades.

 

Portanto, não espancam dúvidas e nem extirpam os erros e equívocos, acasos existentes. Outros, querendo ser modernos e de ideias avançadas, apenas se comprazem em atacar figuras históricas, em cega iconoclastia, sem fazer a devida contextualização de época, levando na devida conta os costumes, a moral, as leis, a ética, as crenças e as crendices dos tempos idos.

 

Ainda outros, em suas monografias, ensaios e dissertações, reduzem a temática e usam um corte cronológico em que haja mais fontes e mais bibliografia, o que lhes facilita sobremaneira o trabalho de pesquisa, que quase fica restrita a simples leitura de obras já publicadas. Outros vão além, e adotando certas teorias atuais da historiografia, pretendem fazer obra historiográfica através de simples especulações, conjecturas e ilações baseadas em obras de arte, como pinturas, artesanatos e esculturas.

 

Creio que estes farão apenas ensaio especulativo, interpretativo e subjetivo. Acredito que o trabalho de um verdadeiro historiador há de ser objetivo, calcado na verdade trazida por provas, em que haja, pelo menos, um grau razoável de certeza, e não mera suposição interpretativa, fundamentada em frágeis indícios. Finalmente, alguns enveredam pela história imediata ou pela história do cotidiano, mas aí já é outra história.

 

Vicente Miranda para escrever a longa história de sua família esteve em diferentes paragens e estados; visitou cemitérios campestres, arquivos públicos, acervos documentais de cartórios, igrejas e delegacias de polícia. Em Piracuruca, para poder consultar antigos processos judiciais, teve que ficar entre o forro e o teto da serventia, pois era ali que dormiam os velhos autos.

 

Em Barras, os velhos feitos estavam quase se desmaterializando, o que requeria cuidado e atenção especiais; tanto que um soldado de polícia, que lhe presenciou o manuseio desses documentos, exclamou que os carcomidos papéis não aguentariam “outro reboliço” daqueles.

 

Por tal razão, esse historiador entende que esses processos deveriam ser transferidos para o arquivo público estadual, que poderia executar um melhor serviço de guarda e conservação, sobretudo agora em que o Poder Judiciário marcha de forma firme e irreversível para a virtualização do processo, em que haverá, certamente, economia de tempo, espaço e de meios físicos, como papéis, grampos, plásticos, depósitos e outros materiais; em que as petições e as comunicações poderão ser enviadas através da internet.

 

Além do mais, isso facilitaria a vida dos pesquisadores, historiadores e simples consulentes, pois os documentos ficariam concentrados na capital, sob a responsabilidade de um único órgão especializado no serviço. Disse-lhe que, quando tivesse oportunidade, abordaria esse assunto junto ao desembargador Edvaldo Moura, presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, que é um intelectual e escritor, tendo presidido a Academia de Picos por vários anos, quando lá serviu como juiz de Direito. 

29 de dezembro de 2010